A POSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO DE PARENTES DE SERVIDOR OU DIRIGENTE DE ÓRGÃO OU ENTIDADE CONTRATANTE EM CERTAME COM CLÁUSULAS UNIFORMES

25/01/2019

INTRODUÇÃO

O presente artigo visa abordar sobre a possibilidade de participação de parentes de servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante em certame com cláusulas uniformes.

Conforme será exaustivamente demonstrado ao longo deste trabalho, não existe norma no ordenamento jurídico vigente que proíba que os parentes de servidor ou de dirigente concorram em certames com cláusulas uniformes, promovidos pelos Entes nas quais os licitantes interessados mantém laços de parentesco com servidores.

Insta destacar que a Lei nº 8.666/1993 em seu artigo 9º, inciso III, veda tão somente a participação direta ou indiretamente de servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação, não fazendo alusão aos parentes dos servidores ou de dirigentes de órgãos ou entidade contratante.

A Lei nº 10.520/2002, que regulamenta a modalidade pregão, também não traz vedação no que tange a participação de parentes de servidores, de dirigentes de órgãos ou de entidade contratante no certame, ou seja, as normas que disciplinam o instituto licitatório não trazem qualquer vedação, não podendo o intérprete introduzir vedação não instituída pelo legislador ordinário.

Cabe registrar que somente a União tem competência para criar vedação no que tange a participação de parentes de servidores em certame licitatório, não podendo outro Ente Político ou mesmo o intérprete inovar no ordenamento jurídico no que tange às normas gerais de licitação de contratação, consoante as disposições contidas no artigo 22, inciso XXVII, da Constituição da República de 1988.

 

A UNIFORMIDADE DAS CLÁUSULAS NAS MODALIDADES TOMADA DE PREÇOS, LEILÃO, CONCORRÊNCIA E PREGÃO

De início, cabe registrar que o Edital de licitação nas modalidades Tomada de Preços, Leilão, Concorrência e Pregão revestem-se de cláusulas uniformes a todos os interessados que desejam celebrar contrato com a Administração, até porque as cláusulas editalícias são previamente fixadas pela Administração, sendo que o licitante interessado somente pode impugnar o edital quanto a eventuais vícios que atentem contra as normas de regência.

Apenas a modalidade Carta Convite não pode ser considerada como modalidade com cláusulas uniformes a todos os interessados, até porque a publicidade de tal modalidade é restrita, o que acaba por retirar a uniformidade das cláusulas do Convite. Já nas demais modalidades é necessário dar uma publicidade ampla em jornais de grande circulação, com isso, um maior número de pessoas terá ciência da intenção da Administração licitante em contratar com o particular. Sendo assim, eventuais irregularidades constantes nos editais serão facilmente controladas pelos interessados ou por qualquer cidadão, consoante as disposições contidas no artigo 41 §§ 1º e 2º da Lei nº 8.666/1993.

No mais, as cláusulas prefixadas no instrumento convocatório devem ser observadas por todos os interessados, não podendo tais cláusulas trazer privilégio ou favorecimento em favor de determinado concorrente, sob pena de violação aos princípios da legalidade, da impessoalidade e da isonomia. Como os editais nas modalidades acima mencionadas revestem-se de cláusulas uniformes, não faz o menor sentido que os parentes de servidores ou de dirigentes sejam proibidos de firmar contrato com a Administração, até porque a Lei nº 8.666/1993 em seu artigo 9º, inciso III, veda tão somente a participação direta ou indiretamente de servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação, não fazendo alusão aos parentes dos servidores ou de dirigentes de órgãos ou entidade contratante.

O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, ao responder a Consulta nº 646.988, tendo como Relator o Conselheiro Elmo Braz Soares entendeu ser possível a participação de parente de servidores no certame, desde que sejam obedecidos os ditames contidos na Lei de Licitações e que a licitação seja com cláusula e condições uniformes. Senão vejamos:

LICITAÇÃO. PARTICIPAÇÃO DE PARENTES DE SERVIDORES OU DE DIRIGENTES. LEGALIDADE DESDE QUE O PROCESSO LICITATÓRIO OBEDEÇA CRITERIOSAMENTE AOS PRECEITOS DA LF 8666/93, COM CLÁUSULAS E CONDIÇÕES UNIFORMES. (TCE-MG - Consulta nº 646.988, tendo como Relator o Conselheiro Elmo Braz Soares). (Grifos).

Ademais, conforme dito acima, o edital de licitação nas modalidades Pregão, Tomada de Preços, Leilão e Concorrência revestem-se de cláusulas prefixadas pela Administração, ou seja, constituem-se de cláusulas uniformes a todos os interessados.

O Egrégio Tribunal Superior Eleitoral já teve a oportunidade de enfrentar a questão da uniformidade das cláusulas contratuais na modalidade Pregão. Senão vejamos:

Inelegibilidade. Desincompatibilização. Contrato administrativo. Pregão. O contrato firmado com o Poder Público decorrente de pregão obedece, em geral, a cláusulas uniformes, motivo pelo qual se aplica a ressalva da parte final do art. 1º, II, i, da Lei Complementar nº 64/90, não havendo necessidade de desincompatibilização. Recurso especial provido. (Recurso Especial Eleitoral nº 23763, Acórdão de 11/10/2012, Relator(a) Min. ARNALDO VERSIANI LEITE SOARES, Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Data 11/10/2012. (Grifos). 

EMENTA: RECURSO ELEITORAL - REGISTRO DE CANDIDATURA -SUBSTITUIÇÃO - IMPUGNAÇÃO DO REGISTRO POR NÃO DESINCOMPATIBILIZAÇÃO NO PRAZO LEGAL - SÓCIA DE EMPRESA QUE FIRMOU CONTRATO DE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS COM O PODER PÚBLICO - CONTRATO DE LICITAÇÃO, NA MODALIDADE PREGÃO, POSSUI CLÁUSULAS UNIFORMES - REGISTRO DEFERIDO - RECURSO DESPROVIDO. (RECURSO ELEITORAL nº 7737, Acórdão nº 36.605 de 24/03/2009, Relatora GISELE LEMKE, Publicação: DJ - Diário de justiça, Data 15/04/2009). (grifos).

O Egrégio Tribunal Regional Eleitoral – TRE/MG, também tem decidido no sentido que a modalidade licitatória do pregão, nos moldes da Lei nº 10.520/2002, obedece, em geral, a cláusulas uniformes. Senão vejamos: 

Recurso Contra Expedição de Diploma. Inelegibilidade. Desincompatibilização. Pedido de Cassação de Diploma. Vice-Prefeito. Art. 1º, II, "i", da Lei Complementar nº 64/90. Sócio. Empreendimento hoteleiro. Contrato com a Prefeitura.

Preliminar de inadequação da via eleita/preclusão, arguida pelo Procurador Regional Eleitoral e pelos recorridos. Rejeitada. As inelegibilidades, ainda que infraconstitucionais e preexistentes ao registro de candidatura, podem ser arguidas a qualquer momento do processo eleitoral, inclusive após a fase do registro de candidatura. Ainda que a ausência de desincompatibilização configure inelegibilidade infraconstitucional conhecida ao tempo do registro de candidatura, inexiste impedimento para que seja considerada e analisada e - ainda - que surta os efeitos previstos em lei, tudo em nome do interesse público que permeia a matéria. Não incidência dos efeitos da preclusão.

 Mérito. Candidato eleito ao cargo de Vice-Prefeito. Existência de contrato firmado, na qualidade de sócio, com o Poder Público. Vulneração ao contido no art. 1º, II, "i", da Lei Complementar nº 64/90. Não ocorrência. Cláusulas Uniformes. Definição. Disposições nas quais a Administração, previamente e de modo unilateral, estabelece a forma e as condições em que toda a contratação é encetada. A modalidade licitatória do pregão, nos moldes da Lei nº 10.520/2002, obedece, em geral, a cláusulas uniformes. Precedentes. Indeferimento do pedido. (RECURSO CONTRA EXPEDIÇÃO DE DIPLOMA nº 9777, Acórdão de 13/03/2014, Relator(a) ALICE DE SOUZA BIRCHAL, Publicação: DJEMG - Diário de Justiça Eletrônico-TREMG, Data 28/03/2014 ). (grifos).

Do mesmo modo já decidiu o Tribunal Regional Eleitoral da Pará – TRE/PA:

REGISTRO DE CANDIDATURA. ELEIÇÕES 2014. CARGO SENADOR. PRELIMINAR DE AUSÊNCIA DE CAPACIDADE POSTULATÓRIA. REJEITADA. PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE. REJEITADA. IMPUGANAÇÃO. IMPROCEDENTE. DESINCOMPATIBILIDADE. CONTRATOS PREGÃO. CLÁUSULAS UNIFORMES. DEFERIMENTO. A legislação eleitoral determina que o candidato deva se desincompatibilizar de empresas que detenham contratos com o poder Público, desde que estes não sejam feitos sobre Cláusulas Uniformes. Contratos na modalidade Pregão exige que o contratado adere as cláusulas predeterminadas. Ação de Impugnação de Registro de Candidatura improcedente. Registro de candidatura deferido. (TRE-PA - RCand: 106024 PA, Relator: JOÃO BATISTA VIEIRA DOS ANJOS, Data de Julgamento: 02/08/2014,  Data de Publicação: PSESS - Publicado em Sessão, Volume 15hr22min, Data 02/08/2014). (grifos).

Por derradeiro, apenas para fins de elucidação, em uma remota hipótese do contrato administrativo não ser considerado uniforme, o que não pode ser admitido, mesmo assim, é possível afastar eventual vedação com amparo na técnica da ponderação na aplicação dos princípios.

Diante da suposta colisão existente no caso em epígrafe dos princípios da impessoalidade, da moralidade e da probidade administrativa versos os princípios da razoabilidade, da adequação e da proporcionalidade, faz-se necessário lançar mão da técnica da ponderação na aplicação dos princípios, técnica esta desenvolvida pelo alemão Robert Alexy, tendo a melhor doutrina nacional, bem como a jurisprudência dominante acampado sua tese, sendo que tal método de interpretação principiológica visa adequar os princípios a cada caso concreto, objetivando impedir a supremacia de determinado princípio.

Segundo Alexy, o julgador deve buscar uma decisão “racional” diante de conflitos entre princípios constitucionais que asseguram direitos e garantias fundamentais, tendo como parâmetro a análise do princípio da proporcionalidade — que se subdivide em adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito — e fazer a opção pelo princípio que contenha o mandamento que proporcione a satisfação de um dever ideal, já que princípios são comandos de otimização e, como tal, pressupõe que algo seja realizado na maior medida possível. Nesse caso, para Alexy, estamos diante da “lei da ponderação” que consagra que quanto mais alto for o grau de descumprimento de um princípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro princípio que está em conflito (ou seja, a proporcionalidade em sentido estrito). O detalhe é que para mensurar tal situação é necessária a incidência de uma carga de argumentação[1]. (Grifos).

 

Do mesmo modo advoga Ricardo Maurício Freire Soares:

O juízo de ponderação é construído a partir da própria concretização do entendimento extraído de um determinado princípio, ocasionando, portanto, a densificação da referida norma in concreto. Desta forma, a prática da ponderação não gera a desqualificação e não nega a validade de um princípio preterido, mas, tão-somente, em virtude do peso menor apresentado em determinado caso, terá a sua aplicação afastada, não impedindo, portanto, a sua preferência pelo jurista em outra lide[2]. (Grifos)

Destarte, conclui-se que os princípios, mesmo aqueles de índole constitucional não são supremos, cabendo unicamente ao intérprete fazer a adequação/ponderação dos princípios que estão em conflito, para saber qual o princípio deve sobressair e, com isso, ser aplicado.

Com amparo na técnica da ponderação, assemelha-se razoável que a suposta vedação de parente de servidor concorrer ao certame com cláusula uniforme, seja afastada, tudo isso visando prestigiar os princípios da razoabilidade, da adequação e da ampliação da concorrência.

 

A POSSIBILIDADE DE PARTICIPAÇÃO DE PARENTES DE SERVIDOR OU DIRIGENTE DE ÓRGÃO OU ENTIDADE CONTRATANTE NA LICITAÇÃO COM CLÁUSULAS UNIFORMES

Insta destacar que a Lei nº 8.666/1993, em seu artigo 9º, inciso III, aduz que “não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários: (...) servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação”.

O Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, ao responder a consulta nº 862.735 do TCE-MG, tendo como Relator o Conselheiro Sebastião Helvécio, entendeu que a contratação de parentes próximos de servidores ou de agentes políticos não encontra vedação na Lei nº 8.666/1993. Senão vejamos:

CONSULTA - LICITAÇÃO - CONTRATAÇÃO DE PARENTES PRÓXIMOS DE SERVIDORES OU AGENTES POLÍTICOS - INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO EXPRESSA NA LEI 8666/93 - POSSIBILIDADE EM TESE - DEMONSTRAÇÃO DE OBSERVÂNCIA DOS PRINCÍPIOS NORTEADORES DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA - DECISÃO UNÂNIME. 1) Responde-se ao questionamento do consulente no sentido de que, em que pese ser possível, em tese, a contratação de parentes próximos de servidores ou agentes políticos, por meio da participação em procedimento licitatório, entende-se que a hipótese não prescinde da observância dos princípios da moralidade, isonomia, impessoalidade e da maior competitividade possível, sendo recomendável que, nessa espécie de contratação, o gestor deve demonstrar, nos autos do procedimento licitatório, de forma consistente, que foram respeitados esses princípios, de modo a se afastarem possíveis questionamentos sobre a ocorrência de influências nocivas na condução dos certames. 2) Precedentes sobre o questionamento apresentado: Consultas n. 646988 (15/12/2001), 448548 (08/10/1997), 162259 (15/05/1994) e 113730 (30/09/1993). (Consulta nº 862.735 – TCE-MG – Relator: CONS. SEBASTIÃO HELVECIO - publicado em 15/04/2013). (Grifos).

Conforme aduziu o Conselheiro Elmo Braz Soares, ao relatar a consulta nº 646.988, as vedações no que tange ao impedimento de servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação participar do certame encontra-se respaldo nos princípios da isonomia, impessoalidade e moralidade. “Entretanto, não existe na lei qualquer dispositivo que impeça de participar de contratação com a Administração parentes de servidores ou de dirigentes de órgãos, desde que o contrato obedeça às cláusulas uniformes e seja precedido do procedimento licitatório nos termos regidos pela Lei nº 8.666/93”.

Segundo o doutrinador Uadi Lammêgo Bulos, o artigo 9°, inciso III, da Lei nº 8.666/1993 lista, de forma taxativa, as hipóteses de vedação de participar de certame licitatório, não podendo a Administração criar outras vedações, sob pena de afronta ao texto constitucional. Senão vejamos:

O art.9º, da Lei 8.666/1993 lista, taxativamente, o rol de hipóteses, com base numa ordem numerus clausus, pelas quais pessoas físicas ou jurídicas encontram-se impedidas de participarem, direta ou indiretamente, de licitações, nos termos ali previstos. Neste particular, só o Poder Legislativo, e mais ninguém, poderá regular a matéria, sob pena de ofensa direta ao disposto no art.22, XXVII, do Texto Magno. Assim, presentes os pressupostos lógico – pluralidade de objetos e de ofertantes; jurídico – atendimento ao interesse público; e fático– presença de vários interessados em disputar o certame, nada poderá invalidar, do ponto de vista jurídico, a licitude e a legitimidade do certame licitatório. O contrário disso seria empreender interpretação inconstitucional de leis constitucionais[3]”. (Grifos).

Destarte, incluir parente de servidor do Ente licitante dentre as vedações contidas no inciso III, do art. 9º, da Lei nº 8.666/93 estaria o exegeta interpretando extensivamente o dispositivo, quando sua matéria exige interpretação estrita, do contrário, o texto constitucional em seu artigo 22, inciso XXVII, estará sendo flagrantemente violado.

Conforme acertadamente já decidiu o Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, os licitantes que mantêm parentesco com servidor ou dirigente do órgão contratante não podem ser impedidos de participar de certame com cláusulas uniformes, haja vista que não existe legislação que proíba a participação de tais pessoas.

Por derradeiro, cabe consignar que o Colendo Tribunal de Contas da União Acórdão 1019/2013- Plenário, TC 018.621/2009-7, tendo como relator Ministro Benjamin Zymler, de forma equivocada, decidiu que a participação de licitante que mantém vinculo de parentesco com servidor da entidade licitante afronta, por interpretação analógica, o disposto no artigo 9º, inciso III, da Lei nº 8.666/1993. Senão vejamos:

A participação de empresa cujo sócio tenha vínculo de parentesco com servidor da entidade licitante afronta, por interpretação analógica, o disposto no art. 9º, inciso III, da Lei 8.666/1993. A alteração do contrato social no curso do certame não descaracteriza a irregularidade e constitui indício de simulação e fraude à licitação.

Representação apontou possível irregularidade na Concorrência 001/2007, promovida pela Fundação Universidade Federal do Piauí - FUFPI/MEC, objetivando a contratação de empresa para a prestação de serviços de publicidade e propaganda. Segundo a representante, a participação no certame e posterior contratação de empresa cujo sócio – detentor de 30% do capital social – pertencia ao quadro de pessoal da promotora da licitação (FUFPI) configurou afronta ao disposto no artigo 9º, inciso III, da Lei 8.666/1993, bem como ao item 5.1 do edital, que assim dispôs: “5.1. Não poderão participar da licitação as empresas que tenham entre seus dirigentes, gerentes, sócios detentores de mais de 5% (cinco por cento) do capital social, dirigentes, responsáveis e técnicos, servidor ou dirigentes de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação e empresas em consórcio.” A unidade técnica destacou que, no curso da licitação, o servidor da FUFPI retirou-se da sociedade, sendo substituído por sua filha. Destacou ainda que a referida empresa teria sido beneficiária de 21 processos de dispensa de licitação depois do ingresso do referido servidor no quadro societário. O relator, em consonância com a unidade técnica, rejeitou as justificativas apresentadas pela empresa e pelo servidor, ao concluir que a alteração efetivada no contrato social da empresa teve por objetivo afastar o impedimento tipificado no art. 9º, inciso III, da Lei 8.666/1993.  Apontou ainda a ocorrência de simulação com o intuito de fraudar o procedimento licitatório. Argumentou que "mesmo ao se considerar lícita a alteração do contrato social, não se afastou do impedimento constante do art. 9º, inciso III, da Lei 8.666/1993". Isso porque, "consoante a jurisprudência desta Corte, as vedações explicitadas nesse dispositivo legal estão sujeitas a analogia e interpretação extensiva ..." . Ou seja, "qualquer situação que não esteja prevista na lei, mas que viole o dever de probidade imposto a todos os agentes públicos ou pessoa investida desta qualidade, deve ser proibida, por ser incompatível com os princípios constitucionais da impessoalidade e da moralidade”. (Acórdão 1170/2010-Plenário). Especificamente em relação à participação de parentes em licitação, citou o Acórdão 607/2011-Plenário, no sentido de que “mesmo que a Lei nº 8.666, de 1993, não possua dispositivo vedando expressamente a participação de parentes em licitações ..., vê-se que foi essa a intenção axiológica do legislador ao estabelecer o art. 9º dessa Lei, em especial nos §§ 3º e 4º, vedando a prática de conflito de interesse nas licitações públicas ...".Ao se reportar ao caso concreto, destacou que a influência do servidor sobre os gestores da FUFPI foi determinante para a ocorrência das sucessivas contratações diretas da empresa. Ponderou, contudo, que a imposição de penalidades deveria ocorrer somente sobre a empresa, uma vez que não houve débito e que a conduta do servidor escapou à jurisdição do TCU por ter sido "praticada na condição de sócio da empresa e não como gestor de recursos públicos ... ". Em relação aos membros da comissão de licitação, ressaltou que "esses responsáveis tiveram conhecimento de que a empresa possuía, de forma relevante, em seu quadro societário parente de servidor da entidade". O Tribunal, ao acolher a proposta do relator, decidiu em relação a essa irregularidade: a) declarar, com fundamento no art. 46 da Lei 8.443/1992, a empresa inidônea para participar de licitações promovidas pela Administração Pública Federal pelo prazo de três anos; b) aplicar aos membros da comissão de licitação a multa prevista no art. 58, inciso II, da Lei 8.443/1992; c) encaminhar cópia da decisão àFUFPI para que averigue a pertinência de instauração de processo administrativo disciplinar para apurar eventuais desvios de conduta praticados pelo servidor.Precedentes mencionados: Acórdãos 1.170/2010 e 607/2011, todos do Plenário. Acórdão 1019/2013- Plenário, TC 018.621/2009-7, relator Ministro Benjamin Zymler, 24.4.2013. (Grifos).

Em que pese a posição adotada pelo Colendo Tribunal de Contas da União, no julgado acima colacionado, o referido Tribunal não agiu como de costume, haja vista que as decisões deste Tribunal têm se pautado no sentido de que as normas de licitações devem ser interpretadas visando propiciar a ampliação da competição. Ao analisar o julgado acima transcrito, percebe-se que o Tribunal de Contas andou mal ao criar uma vedação ao seu bel prazer, e com isso, restringir a competitividade na licitação.

Conforme é conhecimento de todos os operadores do direito, a interpretação do texto legal, para ser válida, deve ser coerente e responsável. Valendo-se das palavras do professor Lenio Luiz Streck, a interpretação “em um contexto de constitucionalismo pós-guerra, não pode extrapolar os limites semânticos do texto[4]”, haja vista que este limite é condição para a existência do próprio Estado Democrático de Direito. O renomado doutrinador continua aduzindo que “o respeito ao texto quer dizer compromisso com a Constituição e com a legislação democraticamente constituída[5]”.

Outrossim, segundo Friedrich Müller, o teor da norma apresenta-se como algo imprescindível para o Estado de Direito, especialmente diante do cenário jurídico atual, isto é, o texto normativo determinará os extremos de possíveis variantes de significado, assegurando, pois os limites necessários ao intérprete[6].

Para o mestre Carlos Maximiliano, a interpretação de uma norma não pode levar a um absurdo, nem uma solução frouxa ou inexequível. A norma deve ser interpretada para alcançar sua eficácia, ou seja, deve ser interpretada coerentemente.

(...) O direito deve ser INTERPRETADO INTELIGETIMENTE: não de modo a que a ordem envolva a um absurdo, prescreva inconveniências, vá ter a conclusões inconsistentes ou impossíveis. Também se prefere a exegese de que resulte eficiente a providencia legal ou válido o ato, à que torne aquela, sem efeito, inócua, ou este, juridicamente nulo[7]. (grifos).

Com base nas considerações lançadas acima, pode-se concluir, sem sombras de dúvidas, que o intérprete não pode acrescentar, por analogia, outras vedações ao artigo 9º da lei nº 8.666/1993, tendo em vista que é dever do hermeneuta respeitar os limites semânticos do texto legal. Ademais, na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito não é admitido decisionismos e arbitrariedades interpretativas perpetradas pelo intérprete ou julgador, sob pena de afronta à norma criada democraticamente. Ademais, em um Estado Democrático de Direito não há espaço para a figura do “juiz solipsista[8]”, onde o julgador decide, não segundo as normas vigentes, mas segundo a sua consciência e conveniência.

O intérprete ao vedar, por analogia, a participação de parentes de “servidores” no certame licitatório com cláusulas uniformes a todos os interessados, não está interpretando o texto, mas sim atuando como um legislador positivo, criando regra de acordo com suas conveniências. Esse fato, segundo Friedrich Müller, atenta contra o Estado de Direito, pois no paradigma democrático o texto legal determinará os extremos de possíveis variantes de significado, logo, criar a vedação de parentes de “servidores” participarem de licitação jamais pode ser considerada uma variante de interpretação, nesse caso o hermeneuta está inovando no ordenamento jurídico vigente, o que não pode ser aceito.

Conforme dito anteriormente, a lei de licitação deve ser interpretada visando propiciar o aumento da concorrência, e não o contrário. Portanto, interpretar analogicamente um dispositivo das normas de licitação para ampliar a concorrência é perfeitamente possível e louvável, mas querer interpretar os textos legais para criar vedações e, com isso, frustrar o caráter competitivo do certame não pode ser aceito, pelo menos na atual conjuntura jurídica, até porque a frustração do caráter competitivo do certame constitui ilícito, consoante as disposições do artigo 90 da Lei nº 8.666/1993.

Dessa forma, faz-se necessário que o posicionamento adotado em alguns julgados, quanto à vedação de participação de licitantes parentes de servidores da Administração licitante, seja revisto imediatamente, haja vista que ao criar vedação não prevista pelo legislador constitucional e infraconstitucional está o intérprete atentando contra o paradigma do Estado de Direito, onde o texto normativo fixa os limites extremos de possíveis variantes, ou seja, a interpretação não pode extrapolar os limites semânticos do texto legal.

Segundo Lenio Luiz Streck, o Direito é o resultado de uma construção coletiva, intersubjetiva, e não o produto da consciência individual ou de um colegiado. O mesmo autor continua aduzindo que “a legitimidade jurídica num ambiente democrático requer outra justificação, que inclui, sobretudo, o respeito aos limites semânticos dos textos constitucionais/legais[9]”.

Para autor acima mencionado, “o juiz pode amar ou odiar algo, mas na hora da decisão os seus preconceitos devem ficar suspensos”, pois em um Estado Democrático de Direito não é admitido decisionismos e arbitrariedades interpretativas, aqui o intérprete ou o julgador não pode extrapolar os limites semânticos do texto legal, pois ele é uma condição para a existência do próprio Estado de Direito. Querer o intérprete criar regra ao seu bel prazer não passa de um delírio e arbitrariedade interpretativa, haja vista que inexiste espaço para tal conduta no ordenamento jurídico. E mais: em um Estado Democrático de Direito “o texto jurídico tem que ser levado a sério[10]”, portanto, a interpretação do texto legal não pode se dar de maneira irresponsável e incoerente.

Insta destacar que os princípios são retirados da interpretação de determinado texto legal, portanto, o hermeneuta não pode criar determinado princípio que seja contrário à norma vigente, haja vista que, se ocorrer eventual conflito entre a lei e um princípio, devem prevalecer as disposições contidas na lei. Aqui não se pode utilizar a ponderação a que se refere o filósofo alemão Robert Alexy, tendo em vista que a técnica por ele desenvolvida somente deve ser utilizada quando conflito ocorrer entre princípios e não entre um princípio e um dispositivo de lei.

Com base nas considerações lançadas no parágrafo acima, pode-se concluir que os princípios da moralidade, da isonomia e da impessoalidade não podem servir de fundamento para impedir que os parentes de servidores participem de licitação na Administração licitante no qual os servidores mantêm vínculo funcional, pois a norma contida no artigo 9º, inciso III, da Lei nº 8.666/1993 veda tão somente a participação direta ou indiretamente de servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação, não fazendo referência aos parentes dos servidores ou de dirigentes de órgãos ou entidade contratante.

Por derradeiro, cabe registrar que adotando esse entendimento aberrante, vários licitantes serão impedidos de participarem de certame licitatório, especialmente em cidades pequenas, onde a maioria dos servidores mantém laço de parentesco com os sócios das pessoas jurídicas e com as pessoas físicas que participam dos certames instaurados pelos Entes licitantes da localidade. Assim sendo, adotando tal entendimento, vários licitantes serão impedidos de participarem de certame licitatório, o que inviabilizará futuras contratações, especialmente em cidades pequenas.

Por tudo o que foi abordado ao longo deste artigo, pode-se concluir que não assiste razão aos que defendem que os parentes dos servidores devem ser impedidos de participar de licitação na Administração licitante em que seus parentes mantêm vínculo funcional, pois se fosse intensão do legislador colocar os parentes dos servidores na condição de impedidos de participar de certame, o faria de forma expressa, como não consta tal vedação nas normas vigentes não pode o intérprete criar tal vedação ao seu bel prazer.

Ademais, a competência para legislar sobre normas gerais de licitação e contratação é privativa da União. Sendo assim, a vedação de participação de parentes de “servidor” somente pode ocorrer se o legislador federal introduzir tal vedação no ordenamento jurídico brasileiro, até que isso não aconteça continua perfeitamente possível a participação de licitantes, pessoa física ou jurídica (sócios), que são parentes de servidores ou agentes políticos da Administração licitante.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por tudo que foi exposto ao longo deste artigo, conclui-se que participação de parentes de servidor ou dirigente de órgão na licitação, com cláusulas uniformes, é perfeitamente possível, haja vista que não existe vedação na legislação constitucional ou infraconstitucional. Aplicar tão somente as vedações contidas explicitamente no artigo 9º da Lei nº 8.666/1993 não pode ser entendido como posicionamento positivista, até porque não são admitidas interpretações que acabem em decisionismos e arbitrariedades, pois o hermeneuta deve respeitar os limites semânticos do texto legal, sendo esta uma condição indispensável para que a interpretação tenha validade no atual paradigma do Estado Democrático de Direito.

Ademais, o ato de vedar a participação de licitantes parentes de servidores no certame licitatório acaba por restringir o caráter competitivo do certame, fato este que aniquila a ampliação da concorrência e, por consequência, a busca do menor preço fica prejudicada.

Conforme dito ao longo do texto, se fosse intenção do legislador pátrio incluir os parentes de “servidores” como pessoas vedadas a participarem de certame, o faria de forma expressa. Como o legislador foi silente, não pode o hermeneuta criar a seu bel prazer novas vedações, até porque a competência para inovar no ordenamento jurídico não é do interprete ou do julgador, e sim do Poder Legislativo.

Assim sendo, pode-se concluir que o entendimento de que os parentes de servidores estão impossibilitados de participar de licitação na Administração nos quais os servidores mantêm vínculo funcional é totalmente absurda e desproporcional, haja vista que além de não existir vedação neste sentido, os editais de licitação, como regra geral, revestem-se de cláusulas uniformes a todos os interessados que desejam celebrar contrato com a Administração, onde as cláusulas editalícias são previamente fixadas pela Administração, portanto, não há que se falar em eventual violação aos princípios da moralidade, impessoalidade e isonomia.

Somente será vedada a participação de licitantes parentes de servidores quando restar comprovado que o licitante foi beneficiado em razão do parentesco com o servidor. Caso comprovado o favorecimento, deve o licitante ser alijado do certame, pois aí sim estaria ocorrendo violação aos princípios da isonomia, da impessoalidade e da moralidade. Do contrário, não há que se falar em vedação, pois o parentesco não pode ser presumido como privilégio.

Cabe consignar, por fim, que a interpretação das normas de licitação deve ser feita visando prestigiar a ampliação da concorrência, para que a Administração possa adquirir o produto ou serviço pelo menor preço, ou seja, a interpretação deve privilegiar a ampliação da concorrência.

 

Notas e Referências

ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.

BULOS, Uadi Lammêgo. Licitação em caso de parentesco. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1855, 30 jul. 2008.

MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 6 ed. Rio de Janeiro, Saraiva, 1957

Melo, Celso Antônio Bandeira. Curso de Direito Administrativo, 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 1994.

MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução á teoria e metódica estruturantes. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009.

SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e Interpretação JurídicaSão Paulo: Saraiva, 2010.

STRECK, Lenio Luiz. Os limites semânticos e sua importância na e para a democracia. Revista da  AJURIS – V. 41 – n. 135 – Setembro de 2014.

[1] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008

[2] SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e Interpretação JurídicaSão Paulo: Saraiva, 2010,p. 69

[3] BULOS, Uadi Lammêgo. Licitação em caso de parentesco. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1855, 30 jul. 2008.

[4] STRECK, Lenio Luiz. Os limites semânticos e sua importância na e para a democracia. Revista da AJURIS – V. 41 – n. 135 – Setembro de 2014,  p. 174.

[5] STRECK, Lenio Luiz. Idem. p. 174

[6] MÜLLER, Friedrich. O novo paradigma do direito: introdução á teoria e metódica estruturantes. 2. Ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 32.

[7] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito, 6ª ed. Rio de Janeiro, 1957, p. 210

[8] De acordo com o Dicionário Oxford de Filosofia (Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, p.367), solipsismo é “a crença de que, além de nós, só existem as nossas experiências. O solipsismo é a consequência extrema de se acreditar que o conhecimento deve estar fundado em estados de experiências interiores e pessoais, e de não se conseguir encontrar uma ponte pela qual esses estados nos deem a conhecer alguma coisa que esteja além deles. O solipsismo do momento presente estende este ceticismo aos nossos próprios estados passados, de tal modo que tudo o que resta é o eu presente. Russel conta-nos que conheceu uma mulher que se dizia solipsista e que estava espantada por não existirem mais pessoas como ela.”

[9] STRECK, Lenio Luiz. Os limites semânticos e sua importância na e para a democracia. Revista da AJURIS – V. 41 – n. 135 – Setembro de 2014,  p. 176.

[10] STRECK, Lenio Luiz. idem,  p. 180.

 

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