INTRODUÇÃO
O presente artigo visa abordar sobre a possibilidade do Poder Judiciário realizar o controle do mérito do ato administrativo. Conforme é sabido por todos, como regra geral, é vedado ao Poder Judiciário imiscuir-se no mérito administrativo, entretanto, caso ocorra violação aos limites explícitos e implícitos fixados na lei, bem como violação aos princípios constitucionais fundamentais, será permitido ao Poder Judiciário realizar o controle do mérito do ato administrativo, haja vista que a violação aos mencionados princípios culminará na ilegalidade do ato discricionário.
Trata-se de tema complexo, sendo que muitos militantes da área apresentam resistência quanto à possibilidade de controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário. Entretanto, a melhor doutrina e a jurisprudência vêm admitindo que o Poder Judiciário realize o controle de juridicidade e legalidade do mérito do ato administrativo.
Insta destacar que os conservadores defendem a impossibilidade de controle do mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário ao argumento de que não é dado a este o poder de reexaminar o mérito do ato administrativo, sob pena de afronta ao princípio da separação dos poderes insculpido no artigo 2º da Constituição da República de 1988.
No transcorrer do presente artigo será demonstrado que, diferentemente do alegado pela doutrina e jurisprudência tradicional, a análise do mérito do ato administrativo não atenta contra o princípio da separação dos poderes, até porque o texto constitucional em seu artigo 5º, inciso XXXV infere que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Portanto, quando houver lesão ou ameaça a direito atrairá para o Judiciário o dever de enfrentar o caso, o que inclui a possibilidade de análise do mérito do ato administrativo.
Cabe registrar que a Administração Pública não pode valer de seu poder discricionário para praticar ato que atente contra os princípios constitucionais, até porque discricionariedade não se confunde com arbitrariedade. O administrador público, como o particular, também deve obediência à Lei, portanto, o Poder Judiciário pode realizar o controle de legalidade e juridicidade do mérito do ato administrativo, para fins de verificar se o ato administrativo está em conformidade com a norma vigente.
MÉRITO ADMINISTRATIVO
De início, é necessário conceituar o Ato Administrativo, que para o professor José dos Santos Carvalho Filho é “a exteriorização da vontade de agentes da Administração Pública ou de seus delegatários, nessa condição, que, sob o regime de direito público, visa à produção de efeitos jurídicos, com o fim de atender ao interesse público[1]”. Ou seja, o Ato Administrativo é a exteriorização da vontade do agente público, na qualidade de representante do Ente que representa, sendo que o referido ato visa produzir efeitos jurídicos para atender interesse público.
A doutrina aduz que o ato administrativo, para ter validade, deve possuir determinados elementos, quais sejam: competência, finalidade, forma, motivo e objeto, sob pena do ato ser considerado inválido.
O ato administrativo também possui atributos/características que são inerentes aos atos administrativos, sendo que a doutrina majoritária defende que o ato administrativo possui os seguintes atributos: presunção de legalidade, imperatividade, auto executoriedade e tipicidade.
Insta destacar que os atos administrativos podem ser vinculados ou discricionários. Nos atos vinculados, o administrador está estritamente vinculado à previsão legal, não tendo margem para realizar a valoração da conveniência e da oportunidade, ou seja, o administrador deve seguir estritamente o que está previsto na lei. Já nos atos discricionários, o administrador possui certa liberdade para a prática do ato, devendo ser observado os limites expressos e implícitos traçados pela lei, bem como a vinculação principiológica, ou seja, trata-se de uma discricionariedade regrada, haja vista que o administrador não pode praticar o ato discricionário segundo seu “bel-prazer”, nem de modo arbitrário, em razão dos limites acima mencionados.
Feitas essas considerações sobre o ato administrativo, passamos a fazer uma breve análise sobre o instituto do mérito administrativo.
Para o saudoso Hely Lopes Meireles o mérito administrativo consubstancia-se “na valoração dos motivos e na escolha do objeto do ato, feitas pela Administração incumbida de sua prática, quando autorizada a decidir sobre a conveniência, oportunidade e justiça do ato a realizar[2]”.
O mérito administrativo nada mais é do que o poder conferido pela lei ao administrador para que este decida acerca da conveniência e oportunidade sobre a prática de determinado ato discricionário, ou seja, é conferido ao administrador margem para realizar a avaliação da conveniência e da oportunidade relativas à prática do ato.
Entretanto, há elementos do ato discricionário que são vinculados à previsão legal, quais sejam: a competência, a forma e a finalidade. Quanto a esses elementos, o administrador sempre está vinculado à previsão legal, apesar do ato ser discricionário. O Administrador somente pode avaliar a conveniência e a oportunidade quanto aos elementos motivo e objeto, haja vista que a competência, a forma e a finalidade são sempre vinculados.
Nesse sentido, advogam Marcelo Alexandrino e Vicente Paulo:
Nestes atos discricionários, vinculam-se, invariavelmente, à expressa previsão legal:
a) a competência (qualquer que seja a espécie do ato, somente poderá ser validamente praticado por aquele a quem a lei confira tal atribuição);
b) a forma (uma vez prevista em lei, também deve ser estritamente observada pelo administrador, sob pena de ter-se declarada a nulidade ao ato; e
c) a finalidade (esta, por óbvio, jamais discricionária, uma vez que a finalidade de qualquer ato sempre será o interesse público)[3].
Ante o exposto, conclui-se que o Administrador ao praticar o ato discricionário possui liberdade para realizar a avaliação da conveniência e da oportunidade, desde que essa valoração se dê nos limites expressos ou implícitos contidos na Lei e/ou em consonância com os princípios fundamentais. Portanto, apesar da discricionariedade para a prática do ato, o Administrador não possui discricionariedade ilimitada, ou seja, discricionariedade sem controle, haja vista que a valoração para a prática do ato deve se dar dentro dos limites expressos ou implícitos da lei, bem como estar vinculada aos princípios que regem a atividade administrativa.
Na atual conjuntura, não é admitido ao administrador praticar ato discricionário ou vinculado sem fundamentação, com base em alegações vagas ou ambíguas, sob pena dos atos praticados com essas anomalias atentarem contra os princípios fundamentais da Constituição da República de 1988. Nesse sentido, advoga o mestre Juarez Freitas:
Desse modo, para ilustrar, anulações e revogações, atos vinculados e discricionários, já não podem ser levados a termo sem fundamentação lançada no pertinente processo administrativo, muito menos com base em alegações vagas ou ambíguas de interesse público ou simples alusão a dispositivos legais. Com efeito, nas relações de administração, a persistência de fórmulas vazias, maculadas por veemente nulidade, representam a negação dos objetivos fundamentais da República[4].
O autor continua aduzindo que todos os atos administrativos que afetarem direitos ou interesses legítimos têm de ser levados a efeito com inteiro resguardo no dever de fundamentação consistente no devido processo, antes da tomada da decisão. Ou seja, na prática do ato discricionário ou vinculado o administrador deve apresentar uma fundamentação consistente e justificável racionalmente, em respeito ao sagrado princípio constitucional do devido processo legal.
Destarte, o Administrador, ao praticar o ato discricionário, deve obediência à lei, bem como aos princípios constitucionais fundamentais que norteiam a atividade administrativa, sob pena do ato praticado ser questionado na via judicial.
Portando, apesar da liberdade conferida ao Administrador para a prática do ato discricionário, essa liberdade é regrada, pois para os que defendem o controle do mérito administrativo a discricionariedade encontra limites explícitos e implícitos fixados pela lei, bem como vinculado aos princípios fundamentais, devendo o ato discricionário ser motivado e justificável racionalmente.
Outrossim, eventual constatação de desproporcionalidade, de desvio de finalidade, de excesso de poder ou de arbitrariedade na prática do ato deve ser objeto de controle pelo Poder Judiciário, até porque não pode ser excluída da apreciação do Judiciário lesão ou ameaça a direito, em detrimento do princípio constitucional da inafastabilidade do controle jurisdicional.
Por fim, cabe registrar que o ato discricionário não pode ser confundido com ato arbitrário, este sempre será inválido. Conforme dito acima, na prática do ato discricionário o administrador possui liberdade para emitir juízo de conveniência e de oportunidade, devendo a prática do ato se dar dentro dos limites expressos ou implícitos traçados pela lei e em observância aos princípios fundamentais.
Feitas essas considerações, adentraremos sobre a possibilidade de controle do mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário.
A POSSIBILIDADE DE CONTROLE DO MÉRITO DO ATO ADMINISTRATIVO PELO PODER JUDICIÁRIO
Conforme dito nas notas introdutórias, a melhor doutrina e a jurisprudência têm admitido que o Judiciário realize o controle do mérito do ato administrativo, ao argumento de que o referido controle não viola o princípio da separação dos poderes, até porque o texto constitucional em seu artigo 5º, inciso XXXV infere que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
A tese da possibilidade de controle do mérito administrativo deve prevalecer na atual fase do direito, haja vista que todos nós devemos obediência à lei, inclusive a Administração Pública. Portanto, deve prevalecer o entendimento de que o mérito do ato administrativo (conveniência e oportunidade) pode ser objeto de controle judicial, até porque somente com a análise do mérito do ato administrativo poderá o Judiciário concluir se o ato praticado se deu em razão do interesse público ou se o interesse foi camuflado para beneficiar determinada pessoa.
Na atual conjuntura do Estado Democrático de Direito não podemos admitir que a Administração ou o particular se blindem com determinadas artimanhas para retirar do Poder Judiciário sua função constitucional na apreciação de “lesão ou ameaça a direito”, até porque todos nós devemos obediência à ordem jurídica. É verdade que a Administração Pública possui discricionariedade para praticar determinados atos, mas a discricionariedade não pode ser ilimitada, devendo todo ato administrativo, vinculado ou não, obedecer à ordem jurídica, sob pena do ato ser declarado nulo por violação às regras ou princípios constitucionais que norteiam a atividade administrativa.
Segundo a melhor doutrina a discricionariedade pode ser conceituada como:
(...) a margem de liberdade de decisão, conferida ao administrador pela norma de textura aberta, com o fim de que ele possa proceder, mediante a ponderação comparativa dos interesses envolvidos no caso específico, à concretização do interesse público ali indicado, para, à luz dos parâmetros traçados pelos princípios constitucionais da Administração Pública e pelos princípios gerais de Direito e dos critérios não positivados de conveniência e de oportunidade: 1º) complementar, mediante valoração e aditamento, os pressupostos de fato necessários à edição do ato administrativo; 2º) decidir se e quando ele deve ser praticado; 3º) escolher o conteúdo do ato administrativo dentre mais de uma opção igualmente pré-fixada pelo Direito; 4º) colmatar o conteúdo do ato, mediante a configuração de uma conduta não pré-fixada, porém aceita pelo Direito[5].
Dessa forma, o Judiciário poderá verificar se o administrador, ao praticar determinado ato que lhe permite atuar com discricionariedade, observou os princípios fundamentais, como por exemplo: obediência aos princípios da moralidade, impessoalidade, publicidade, probidade, eficiência, proporcionalidade, razoabilidade, dentre outros.
A melhor jurisprudência tem admitido o controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário, ao argumento de que todo ato administrativo deve ser submetido ao crivo do Poder Judiciário para análise a legalidade, proporcionalidade, razoabilidade, ou se ocorreu desvio de finalidade, haja vista que a violação a estes princípios ou aos demais princípios correlatos a atividade administrativa culminará na ilegalidade do ato que foi praticado sob o manto da “conveniência e da oportunidade”.
Para o professor Juarez Freitas, o ato administrativo discricionário ou vinculado “encontra-se vinculado cogentemente ao direito fundamental à boa administração pública”, tornando-se a administração eficiente, eficaz, bem como cumpridora de seus deveres com a transparência, a motivação, a imparcialidade e o respeito à moralidade. Portanto, tanto o ato administrativo vinculado como o ato discricionário encontram-se vinculados aos princípios fundamentais. Logo, diante da vinculação dos atos discricionários aos princípios fundamentais, pode-se concluir que o mérito dos atos administrativos (ato discricionário) deve ser objeto de controle jurisdicional, devendo o Judiciário investigar se o ato, objeto de análise, foi praticado em sintonia com os princípios fundamentais da Administração Pública.
Quanto à possibilidade de controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário já decidiu o Egrégio Tribunal Regional Federal da Primeira Região – TRF1. Vejamos:
ADMINISTRATIVO. PROCESSO ÉTICO-DISCIPLINAR. ALEGAÇÃO DE NULIDADE POR CERCEAMENTO DE DEFESA. POSSIBILIDADE DE REVISÃO JUDICIAL PELA DESPROPORCIONALIDADE DA PENA APLICADA. APELAÇÃO PARCIALMENTE PROVIDA. 1 - Os apelantes receberam pena de censura mediante publicação em órgão oficial. A publicação, entretanto, não ocorreu por força de medida cautelar que o juízo de origem concedeu ao despachar a petição inicial. Portanto, a penalidade que se busca anular ainda não foi executada. 2 - Inexistência de cerceamento de defesa porque não há qualquer requerimento dos apelantes nos autos do procedimento administrativo em ver ouvidas testemunhas de seu interesse. A Comissão de Ética foi quem arrolou o testemunho do chefe de reportagem, da jornalista e da editora de periódico que publicou matéria com conteúdo alegadamente antiético. Essas pessoas foram notificadas em via postal (fls. 98/102), no entanto não compareceram à audiência, segundo termo de deliberação de fls. 103. 3 - Quanto à pena aplicada, tenho que ao Judiciário cabe sua revisão sob o crivo da legalidade e da proporcionalidade ou razoabilidade, como tem decidido esta Corte ((AC 2001.01.00.038483-6/MG, Maria do Carmo Cardoso, 8ª T., 30/11/2010; (AC 1999.01.00.016085-5/AP, Flavio Dino, 2ª TS, 16/6/2005). 4 – (...) 5 - Apelação parcialmente provida para reconhecer a desproporcionalidade na pena aplicada aos apelantes, que fica convolada em censura reservada, e declarar a sucumbência recíproca. (AC 0001146-14.2005.4.01.3500 / GO, Rel. JUIZ FEDERAL MARCELO DOLZANY DA COSTA, 2ª TURMA SUPLEMENTAR, e-DJF1 p.403 de 18/09/2013). (Grifos).
O Colendo Superior Tribunal da Cidadania – STJ, também já enfrentou a matéria manifestando pela possibilidade do Judiciário examinar o controle do mérito do ato administrativo, vez que a Administração deve se submeter ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade. Senão vejamos:
ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – OBRAS DE RECUPERAÇÃO EM PROL DO MEIO AMBIENTE – ATO ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO.
Na atualidade, a Administração pública está submetida ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade do ato administrativo.
Comprovado tecnicamente ser imprescindível, para o meio ambiente, a realização de obras de recuperação do solo, tem o Ministério Público legitimidade para exigi-la.
O Poder Judiciário não mais se limita a examinar os aspectos extrínsecos da administração, pois pode analisar, ainda, as razões de conveniência e oportunidade, uma vez que essas razões devem observar critérios de moralidade e razoabilidade.
Outorga de tutela específica para que a Administração destine do orçamento verba própria para cumpri-la. 5. Recurso especial provido." (STJ, SEGUNDA TURMA, REsp 429570 / GO ; Rel. Min. ELIANA CALMON, DJ 22.03.2004 p. 277 RSTJ vol. 187 p. 219) (grifos).
A melhor doutrina também é no sentido de que o Poder Judiciário deve realizar o controle do mérito administrativo, no que tange à observância aos princípios norteadores da atividade administrativa, bem como em observância à ordem vigente. Nesse sentido advoga o professor Juarez Freitas:
A discricionariedade, no Estado Democrático (quer dos atos administrativos, que dos atos judiciais), está sempre vinculada ao primado dos princípios, objetivos e direitos fundamentais, sob pena de se traduzirem em arbitrariedade proibida e minar os limites indispensáveis à liberdade de conformação, a saber, racional característica fundante do Direito. [...] Numa visão sistemática consentânea com o novo conceito de Direito Administrativo e com a supremacia da ordem constitucional, o mérito do ato, por via reflexa, pode ser inquirido (efetuado o controle de demérito ou de arbitrariedade por ação ou omissão)[6].
No mesmo sentido, corrobora o mestre José de Alfredo de Oliveira Baracho:
Os princípios de interdição à arbitrariedade, os princípios da razoabilidade, da racionalidade, da proporcionalidade constituem um marco constitucional, isto é, exigência constitucional sob o atuar administrativo. Pode-se deduzir que o controle jurisdicional para a verificação da decisão discricionária tem esse objetivo de responder aos interesses gerais, por meio de controle de existência da motivação, da coerência e da lógica, examinando-se a relação entre a decisão administrativa e a realidade (...) A decisão responde a interesses gerais, não é arbitrária, desde que a escolha realizada pela Administração entre as diversas alternativas passíveis de ser seguidas esteja baseada em critérios políticos, étnicos, econômicos, sociais, da economicidade, entendidos de conformidade com pressupostos dos princípios; em todas essas situações deve-se garantir ao cidadão a tutela judicial efetiva[7].
O professor Juarez Freitas aduz, ainda, que em um Estado Democrático de Direito, deve ser assegurado ao cidadão o direito fundamental a uma administração pública transparente, direito fundamental ao contraditório, direito fundamental à administração pública imparcial e proba, bem como o direito fundamental à administração pública eficiente, podendo tais garantias serem retiradas do artigo 37 da Constituição da República de 1988, bem como de outros dispositivos do texto constitucional. Essas garantias visam assegurar ao administrado uma Administração Pública transparente e eficiente, portanto, é necessário assegurar garantias de controle para fins de avaliação dos atos praticados pelo administrador, seja um ato vinculado ou discricionário, tudo isso visando coibir a tirania do administrador mal intencionado.
O controle do mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário é de suma importância para fins de alcançar a transparência e eficiência dos atos administrativos, especialmente dos atos discricionários, pois em razão da subjetividade desses atos o administrador mal intencionado pode “criar um interesse público” visando satisfazer seus interesses pessoais ou de terceiros e não com base no interesse público da coletividade. Sendo assim, faz-se necessário o controle do mérito dos atos discricionários, pois somente adentrando no mérito administrativo será possível ao Judiciário analisar eventual desvio de finalidade, desproporcionalidade, excesso de poder e/ou arbitrariedade perpetrado pelo administrador.
Tecidas essas considerações, conclui-se que em face do preceito contido no artigo 5º, XXXV, da Constituição da República de 1988, “todo e qualquer ato administrativo causador de lesão a direito é suscetível de controle jurisdicional não apenas no aspecto da legalidade, mas também de juridicidade”[8], o que inclui a possibilidade de controle do mérito do ato administrativo, pois, em que pese a margem de liberdade conferida ao administrador, este deve obedecer ao ditames legais, sob pena do ato ser declarado nulo pelo Poder Judiciário.
Na atual conjuntura, o controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário é de suma importância, haja vista que não há mais espaço para atos secretos ou inquestionáveis, pois, como regra geral, o administrado tem direito fundamental a uma administração pública transparente.
Com amparo no direto fundamental à administração pública transparente, deve prevalecer o entendimento que admite o controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário, tendo em vista que somente com a análise do mérito administrativo é possível descobrir se o ato foi praticado visando alcançar o verdadeiro interesse público ou se ocorreu desvio de finalidade, excesso de poder, desproporcionalidade, arbitrariedade, bem como violação a outras garantias constitucionais.
Conforme dito anteriormente, nos atos discricionários o administrador possui certa liberdade quanto à valoração da conveniência e da oportunidade, entretanto, essa liberdade encontra limites expressos ou implícitos na ordem vigente, sendo que se a lei não traçar os limites, mesmo assim o ato discricionário encontra limites nos princípios fundamentais, devendo eventual violação a esses limites ser objeto de apreciação pelo Poder Judiciário.
Dessa forma, todo ato que não obedecer aos referidos limites será considerado arbitrário, devendo ser declarado nulo pelo Poder Judiciário, até porque, na atual conjuntura jurídica, somente será admitida a prática de ato discricionário dentro dos limites razoáveis e justificáveis racionalmente, não sendo admitidas, portanto, motivações desamparadas de fundamentação consistente.
Assim sendo, por força do que dispõe o artigo 93, inciso X, da Constituição da República de 1988, toda as decisões administrativas, vinculadas ou não, necessitam ser rigorosamente motivadas. Nesse sentido, advoga Juarez Freitas[9]: “De sorte que não se aceita a figura de decisão administrativa completamente insindicável, uma vez que a motivação há de indicar, de modo suficiente, os fundamentos da juridicidade da escolha realizada”. Tudo isso, em respeito ao vinculante direito fundamental à boa administração pública.
Por derradeiro, apenas para fins de elucidação, mesmo para aqueles que alegam eventual conflito entre o princípio da separação dos poderes e o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, este conflito deve ser resolvido pela técnica da ponderação na aplicação dos princípios, desenvolvida pelo alemão Robert Alexy, tendo a melhor doutrina nacional, bem como a jurisprudência dominante acampado sua tese. Tal método de interpretação principiológica visa adequar os princípios a cada caso concreto, objetivando impedir a supremacia de determinado princípio.
Segundo Alexy, o julgador deve buscar uma decisão “racional” diante de conflitos entre princípios constitucionais que asseguram direitos e garantias fundamentais, tendo como parâmetro a análise do princípio da proporcionalidade — que se subdivide em adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito — e fazer a opção pelo princípio que contenha o mandamento que proporcione a satisfação de um dever ideal, já que princípios são comandos de otimização e, como tal, pressupõe que algo seja realizado na maior medida possível.
Nesse caso, para Alexy, estamos diante da “lei da ponderação” que consagra que quanto mais alto for o grau de descumprimento de um princípio, maior deve ser a importância do cumprimento do outro princípio que está em conflito (ou seja, a proporcionalidade em sentido estrito). O detalhe é que para mensurar tal situação é necessária a incidência de uma carga de argumentação[10].
Do mesmo modo advoga Ricardo Maurício Freire Soares:
O juízo de ponderação é construído a partir da própria concretização do entendimento extraído de um determinado princípio, ocasionando, portanto, a densificação da referida norma in concreto. Desta forma, a prática da ponderação não gera a desqualificação e não nega a validade de um princípio preterido, mas, tão-somente, em virtude do peso menor apresentado em determinado caso, terá a sua aplicação afastada, não impedindo, portanto, a sua preferência pelo jurista em outra lide[11](Grifos)
Ante o exposto, conclui-se que os princípios, mesmo aqueles de índole constitucional, não são supremos, cabendo unicamente ao intérprete fazer a adequação/ponderação no momento da aplicação dos princípios que estejam em conflito, para saber qual o princípio deve sobressair.
Portanto, mesmo para aqueles que alegam eventual violação ao princípio da separação dos poderes quando do controle do mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário, tal violação não se consuma, haja vista que, nesse caso, no máximo ocorreria um conflito entre o princípio da separação dos poderes e o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Tal conflito deve ser resolvido pela técnica da ponderação para, no caso em análise, afastar a aplicação do princípio da separação dos poderes, devendo sobressair o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, até porque toda lesão ou ameaça a direito deve ser submetida ao crivo do Judiciário.
Por fim, cabe consignar que somente se o Judiciário adentrar no mérito administrativo saberá se o administrador praticou o ato visando o interesse público ou se o ato foi camuflado para atingir interesses escusos. Portanto, o ato discricionário não pode ficar inume ao controle jurisdicional, pois do contrário tornaria “terra fértil” para administradores desonestos, vez que tais administradores praticariam o ato transvestido de “legalidade”, ou seja, camuflado, na certeza de que tais atos não poderiam ser objeto de controle jurisdicional, pois não seria permitido ao judiciário imiscuir-se no controle do mérito administrativo.
Dessa forma, resta justificada a necessidade do controle jurisdicional para coibir eventuais abusos perpetrados pelo administrador. Nesse sentido, corrobora Edimur Ferreira de Faria:
A doutrina e a jurisprudência, sempre procurando compatibilizar os anseios sociais com o direito posto, desenvolveram teorias justificando a interferência da discricionariedade, visando a coibir os abusos que os administradores praticam escudados na liberdade conferida pela lei[12].
Assim sendo, justifica-se a necessidade de controle do mérito do ato administrativo, não podendo ser aceita uma discricionariedade imune ao controle jurisdicional, ou seja, não mais é aceito ato administrativo exclusivamente político, ausente de motivação e fundamentos consistentes acerca da escolha realizada.
Cabe registrar, ainda, que o controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário (sindicabilidade) visa efetivar o direito fundamental “à boa administração pública”, fazendo com que a discricionariedade excessiva, abusiva e arbitrária seja afastada através do controle jurisdicional.
Por tudo que foi exposto ao longo deste texto, conclui-se que o Poder Judiciário pode até não ter o poder de afirmar positivamente como o administrador deve comportar-se, mas sem dúvida está obrigado a dizer como o administrador não deve agir (desvio de finalidade, excesso de poder, desproporcional, arbitrariedade etc.), haja vista que a administração pública está vinculada ao império da lei, inclusive quanto à conveniência e oportunidade administrativa, logo, o administrador deve apresentar motivação convincente quanto à escolha realizada.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
À luz dos argumentos expostos no decorrer do presente artigo pode-se concluir que assiste razão à melhor doutrina e jurisprudência que admitem o controle do mérito do ato administrativo pelo Judiciário, haja vista que o próprio texto constitucional, em seu artigo 5º, inciso XXXV, aduz que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Somente com a admissão do controle do mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário será possível vislumbrar se o ato foi praticado com desvio de finalidade, excesso de poder, desproporcional ou com arbitrariedade.
Ademais, um ato administrativo praticado em desarmonia com os princípios constitucionais merece o devido controle do Poder Judiciário, devendo este Poder realizar a sindicabilidade do ato questionado, pois conforme dito ao longo deste artigo, toda lesão ou ameaça a direito deve ser submetida ao crivo do Poder Judiciário. Com isso, não é possível falar em violação ao princípio da separação dos poderes quando do controle do mérito do ato administrativo, haja vista que todos devem obediência à Lei, inclusive a Administração Pública.
Na atual conjuntura jurídica é de suma importância o controle do mérito do ato administrativo pelo Poder Judiciário, devendo ser prestigiado o princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional, princípio este de índole constitucional, em detrimento de suposta violação ao princípio da separação dos poderes.
E mais, retirar do Poder Judiciário o controle do mérito administrativo é algo temerário, haja vista que a vedação do Judiciário em realizar a sindicabilidade do mérito administrativo se tornaria “terra fértil” para administradores mal intencionados praticarem ato camuflado, visando alcançar interesses escusos e não o interesse público, vez que o administrador desonesto teria a certeza que o ato contaminado em razão do interesse escuso não seria objeto de controle jurisdicional ao inaceitável argumento de que seria vedado ao Judiciário adentrar no mérito administrativo.
Assim sendo, pode-se concluir que quando o administrador, ao praticar o ato discricionário, extrapolar os limites explícitos e implícitos contidos na lei, bem como os limites fixados pelos princípios constitucionais fundamentais, tal ato estará eivado de nulidade, atraindo para o Poder Judiciário o dever de controlá-lo, caso seja provocado.
Notas e Referências
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FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010.
MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 155/156
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OLIVEIRA, Cristiano. Devido Processo e Controle de Juridicidade do Mérito do Ato Administrativo. Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro - ISSN: 2176-977X - p. 98
[1] CARVALHO FILHO. José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 26 ed. rev., ampl. e atual. até 31-12-2012 – São Paulo: Atlas, 2013, p.101
[2] MEIRELES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 33 ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 155/156
[3] ALEXANDRINO, Marcelo. PAULO, Vicente. Direito Administrativo Descomplicado – 16 ed. rev. e atual – São Paulo, 2008. p. 414.
[4] FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4ª ed. São Paulo: Malheiros, 2010, p. 32.
[5] MORAES, Germana de Oliveira. Controle Jurisdicional da Administração Pública. Dialética: Rio Grande do Sul, 2004, p. 42.
[6] FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p.388-389
[7] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Atos administrativos: elementos poder discricionário e o princípio da legalidade, limites da convalidação, forma de exercício. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, v. 13, n. 7, jul. 1997, p. 398/402.
[8] OLIVEIRA, Cristiano. Devido Processo e Controle de Juridicidade do Mérito do Ato Administrativo. Revista Eletrônica do Curso de Direito - PUC Minas Serro - ISSN: 2176-977X - p. 98
[9] FREITAS, Juarez. O controle dos atos administrativos e os princípios fundamentais. 4 ed. São Paulo: Malheiros, 2010. p.371
[10] ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. São Paulo: Malheiros, 2008.
[11] SOARES, Ricardo Maurício Freire. Hermenêutica e Interpretação Jurídica. São Paulo: Saraiva, 2010,p. 69
[12] FARIA, Edimur Ferreira de. Controle do mérito do ato administrativo pelo judiciário. Belo Horizonte: Fórum, 2011, p. 235
Imagem Ilustrativa do Post: New Law Building // Foto de: Michael Zimmer // Sem alterações
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