A POSSIBILIDADE DE APLICAÇÃO DA PENA ABAIXO DO MÍNIMO LEGAL E A SUPERAÇÃO DA SÚMULA 231 DO STJ

05/08/2024

1. INTRODUÇÃO

Nossa sistemática legal dispõe de regramento específico para imposição das penas, sejam privativas de liberdade, restritiva de direitos ou multa. Nesse contexto, é fundamental que a dosimetria da pena obedeça às regras previstas, visto que o Direito Penal brasileiro busca equilibrar a aplicação da lei de forma justa e a necessidade de individualização das penas.

Neste sentido, a discussão acerca da Súmula 231 do STJ merece destaque, uma vez que o impedimento da redução da pena abaixo do mínimo legal pela incidência de circunstâncias atenuantes, fere princípios fundamentais, o próprio sistema legal e a evolução jurisprudencial.

 

2. FUNDAMENTOS LEGAIS E TEÓRICOS SOBRE A APLICAÇÃO DA PENA

Os princípios fundamentam todo o sistema jurídico e na lição de Miguel Reale:

“verdades ou juízos fundamentais, que servem de alicerce ou garantia de certeza há um conjunto de juízos ordenados em um sistema de conceitos relativos a dada porção da realidade. Às vezes, também se denomina de princípios, certas proposições que, apesar de não serem evidentes ou resultantes de evidências, são assumidas como fundantes de validez de um sistema particular de conhecimentos, como pressupostos necessários.”[1]

A violação principiológica se constitui em conduta muito mais grave e danosa do que a violação de uma regra, pois são os princípios que sustentam o ordenamento jurídico, em razão disso, constitui-se em ilegalidade e inconstitucionalidade inadmissíveis.

A Constituição Federal de 1988 é estruturada na proteção e defesa de direitos fundamentais individuais, sendo inconcebível sua inobservância, visto que o texto constitucional evidencia que a restrição ou privação destes direitos somente encontram legitimidade quando indispensáveis.

Nesse contexto, segundo lição de Hegel: “o realmente essencial da pena é que esta seja em si mesma justa.”[2]

Dessa forma, a violação legal e principiológica, fere de maneira indelével direitos garantias fundamentais, o que justifica a possibilidade de alterações legislativas e evolução jurisprudencial.

O artigo 5º inciso, XXXIX, do texto constitucional e o disposto no artigo 1º do CP evidenciam o princípio da legalidade estrita, que se constitui em efetiva limitação ao poder punitivo estatal, além de assegurar a possibilidade do conhecimento dos crimes, das penas e da sua adequada aplicação. Por assim dizer, a aplicação da pena deve observar e respeitar a lei positivada, para que não se converta em arbítrio.

Logo, é inadmissível na sistemática processual pátria a violação da legalidade. Contudo, embora não esteja prevista na lei de regência a impossibilidade de reconhecimento e aplicação da pena abaixo da mínima cominada ao delito, a prática é aceita em nosso ordenamento, visto que sua rejeição resulta em negativa de vigência a comando legal e principiológico.

A pena abaixo do mínimo quando presente circunstâncias atenuantes e causas de diminuição é questão de Justiça e encontra conformidade no ordenamento jurídico, observando-se os princípios constitucionais penais e concedendo vigência à lei federal.

A construção interpretativa, que entende ser impossível a fixação da pena abaixo do mínimo cominada ao delito, sem sombra de dúvida viola o princípio constitucional da individualização da pena, vez que o magistrado, embora possa aplicar a lei ao caso concreto, fica impossibilitado de assim fazer, registrando-se, por oportuno, que citada atitude é adotada ao arrepio da previsão legal e em negativa de vigência de lei federal e ao próprio texto constitucional.

2.1. Princípios Constitucionais da Individualização e da Proporcionalidade da Pena

Os princípios da individualização e da proporcionalidade da pena são fundamentos essenciais no sistema jurídico brasileiro, servindo de freio e contrapeso na imposição de reprimenda penal.

A Constituição Federal de 1988, no artigo 5º, XLVI, prevê que” a lei regulará a individualização da pena”, ou seja, ao impor a sanção penal, o julgador deverá analisar o caso em concreto e aplicar a normativa de maneira individual.

Logo, o princípio da individualização da pena serve de parâmetro e fundamento de garantia da dignidade da pessoa humana, bem como assegura a proporcionalidade na aplicação da sanção penal, considerando as características pessoais e as peculiaridades da conduta praticada.

Portanto, a aplicação de uma pena abaixo do mínimo legal pode ser vista como uma extensão desse princípio, quando as circunstâncias do caso concreto justificarem uma sanção mais branda, pois a limitação genérica e abstrata retira o caráter da individualidade e por conseguinte, viola os princípios constitucionais da ampla defesa, da proporcionalidade e da humanização da pena, ferindo o respeito ao devido processo legal.

 

3. SUPERAÇÃO DA SÚMULA 231 DO STJ

Atualmente, a Súmula 231 do Colendo Superior de Justiça, veda o rebaixamento da pena em patamar inferior ao mínimo legal, no entanto, referida disposição não pode suplantar o texto da Lei Federal e, muito menos, aquilo que está expressamente disposto na Carta Magna.

Segundo refere a Súmula 231 do STJ "a incidência da circunstância atenuante não pode conduzir à redução da pena abaixo do mínimo legal".  Inicialmente este entendimento visava manter a coerência e a rigidez das penas mínimas previstas em lei, permitindo ao réu ter uma noção do quantum máximo e mínimo da acomodação de sua reprimenda.

No entanto, a aplicação rígida dessa súmula merece severas críticas, na medida em que seu teor, inquestionavelmente, fere princípios constitucionais e se caracteriza por violar a justa e adequada aplicação da lei.

Neste sentido inclusive o doutrinador Cézar Roberto Bitencourt[3], sustenta o seguinte:

“O entendimento contrário à redução da pena para aquém do mínimo cominado partia de uma interpretação equivocada, que a dicção do atual art. 65 do Código Penal não autoriza. Com efeito, esse dispositivo determina que as circunstâncias atenuantes “sempre atenuam a pena”, independentemente de já́ se encontrar no mínimo cominado. É irretocável a afirmação de Carlos Canibal quando, referindo-se ao art. 65, destaca que “se trata de norma cogente por dispor o Código Penal que ‘são circunstâncias que sempre atenuam a pena’… e — prossegue Canibal — norma cogente em direito penal é norma de ordem pública, máxime quando se trata de individualização constitucional de pena”. A previsão legal, definitivamente, não deixa qualquer dúvida sobre sua obrigatoriedade, e eventual interpretação diversa viola não apenas o princípio da individualização da pena (tanto no plano legislativo quanto judicial) como também o princípio da legalidade estrita (...)”.

Portanto, na esteira de referido ensinamento que nos filiamos na defesa da superação sumular, a fim de que seja permitida a aplicação da pena abaixo do mínimo legal, se no caso concreto estiverem presentes atenuantes e causas de diminuição.

3.1. Argumentos em favor da superação

Os principais argumentos favoráveis à superação da Súmula 231do STJ estão balizados especialmente na efetiva realização da Justiça, a qual decorre da correta aplicação da lei, e nesse cenário, a rigidez do teor sumular sem sombra de dúvidas, resulta em injustiça e desrespeito às normas constitucionais e legais que legitimam o sistema de justiça criminal e conferem segurança jurídica ao Estado Democrático de Direito.

Assim, a superação da súmula permitiria a efetiva individualização da pena, na medida em que consideraria as peculiaridades de cada caso, resultando em uma maior flexibilidade na dosimetria, respeitando e observando os princípios constitucionais de individualização e proporcionalidade.

Ainda, sem qualquer redundância argumentativa, citada súmula fere o texto constitucional, desrespeita lei federal e retira do magistrado a possibilidade de aplicar a pena ao caso concreto, levando em conta as particularidades e condições do réu. Logo, inconstitucional e ilegal.

Na seara interpretativa que coteje verbete sumular, direitos e garantias fundamentais e efetividade da própria lei penal, há que se concluir pela vigência do texto constitucional, bem como pela aplicação da lei penal vigente. Ademais, não faz sentido a existência de previsões constitucionais e legais, para as quais não se dá aplicabilidade, e que ainda resultem em realização de injustiça.

Portanto, a teoria da pena precisa ser reestudada e enfrentada, pois dela decorre o reconhecimento a culpabilidade e por via de consequência a imposição de cerceamento de liberdade, sendo que o Poder Judiciário não pode legitimar violação de texto expresso da Constituição Federal, nem mesmo deixar de efetivar lei federal.

Ademais, a pena deve ser justa e proporcional, para que não viole direitos humanos, direitos e garantias fundamentais e o próprio processo penal. Não é possível admitir um Estado que se considere democrático e de Direito, que o processo penal e a pena sirvam de resposta social, visto que o fim da pena é na justa medida, punir pela conduta contrária a lei, dentro dos estritos parâmetros da legalidade.

Ainda, é fundamental considerar a realização da analogia em favor do réu, visto que lei deve ser aplicada de forma necessária, para que sejam evitadas arbitrariedades em sua imposição.

De salientar que a sistemática atual de aplicação das penas foi alargada com as alterações legislativas, haja vista que é permitida substituição das penas privativas de liberdade, reforçadas pela intervenção mínima do direito penal, pela adoção de medidas cautelares diversas da prisão e dos meios de justiça consensual no âmbito do processo penal, como é o caso do acordo de não persecução penal, da colaboração premiada, da suspensão condicional do processo e da transação penal. Destaca-se ainda a previsão da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789[4], no artigo 8º, determinou: “a lei penal deve estabelecer pena estrita e evidentemente necessária.”

 

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Sem ter a pretensão de encerrar o estudo, a análise ora apresentada demonstra que é possível e necessária a aplicação da pena abaixo do mínimo legal, segundo justifica e garantem os princípios constitucionais, especialmente pela necessidade de individualização das penas.

Logo, a superação da Súmula 231 do STJ, embora ainda apresente controvérsia, representa ao nosso sentir, um avanço significativo na correta aplicação da lei penal em conformidade com os ditames e princípios constitucionais, para de fato promover a Justiça.

 

Notas e referências:

[1] REALE, Miguel apud ROTHENBURG, Walter. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1999. P. 14-15.

[2] Hegel apud por SANTORO FILHO, Antônio Carlos. Bases Críticas do Direito Criminal. São Paulo: LTD,2000, p.49.

[3] Tratado de direito penal: parte geral. 23ª. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2017.

[4]https://institutolegado.org/blog/declaracao-universal-dos-direitos-humanos-integra/?gad_source=1&gclid=Cj0KCQjw97SzBhDaARIsAFHXUWCjIiFL0mPMH_FnI95yCNCL0j46duc102XgLK97YNWja_Fl2tIbKdIaAsAtEALw_wcB

BRASIL. Constituição Federal de 1988. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm.

BRASIL. Código Penal. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm.

BRASIL. Código de Processo Penal.  Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del3689.htm.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal: RE 597.270/RS.

BRASIL. Superior Tribunal de Justiça: REsp 1869764; REsp 2057181 e REsp 2052085.

BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019.

BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral. 23ª. ed. rev., ampl. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2017.

Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789.

GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal. Rio de Janeiro: Impetus, 2020.

HEGEL apud por SANTORO FILHO, Antônio Carlos. Bases Críticas do Direito Criminal. São Paulo: LTD,2000.

MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. São Paulo: Atlas, 2020.

NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Direito Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020.

REALE JÚNIOR, Miguel. Novos Rumos do Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 2017.

REALE, Miguel apud ROTHENBURG, Walter. Princípios Constitucionais. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1999. P. 14-15.

 

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