A plenitude de defesa é também dever da defesa. Defensor Público não é soldado reserva para a Advocacia - Por Eduardo Januário Newton

03/10/2016

Por Eduardo Januário Newton – 03/10/2016

Muitas recordações podem ser invocadas sobre o mês que se encerrou – o primeiro mês que o interino assumiu plenamente, e de maneira indevida, a Chefia do Executivo Federal, feriado do dia 07, a campanha de conscientização sobre a prevenção do suicídio. Conquanto essa diversidade de fatos, eu prefiro uma que é de índole bem pessoal: a minha atuação junto ao Tribunal do Júri de Duque de Caxias.

Não posso reclamar dos meus colegas; ao contrário, Alexandre, Ana e Juliana se mostraram exemplares Defensores Públicos e demonstraram a mais completa paciência com o neófito (Renata não morra de ciúmes). A equipe com quem trabalhei é digna de elogios.

Todavia, não é o objetivo deste texto discorrer sobre as lembranças afetivas de setembro de 2016. O foco necessita ser outro. É preciso descrever e, principalmente examinar um dado que não passou despercebido, qual seja, dos oito processos penais que foram submetidos à apreciação do chamado Tribunal Popular, todos eles possuíam uma marca comum, que era o abandono ou a renúncia da defesa então constituída após a fase do artigo 422, Código de Processo Penal.

Em um grupo virtual de alcance nacional, questionei os demais Defensores Públicos se já teriam encarado uma situação dessas, isto é, que toda a pauta mensal de julgamentos era oriunda de processos penais que, às vésperas da sessão plenária, a defesa constituída havia simplesmente renunciado ou abandonado o caso. E, para o meu assombro, tomei conhecimento de que se tratava de um expediente rotineiro nos rincões do Brasil.

Não existe outra forma de definir esse recurso praticado por alguns advogados: lamentável. Orgulho-me dos dois anos que exerci a advocacia – inclusive aprendi que se trata de um grave equívoco patrocinar os interesses dos familiares em juízo –, reconheço os valorosos nomes de advogados que se insurgiram nos momentos mais difíceis da história brasileira. Porém, é vergonhosa essa postura que despreza a defesa do acusado e, ainda, indica uma visão distorcida sobre a função da Defensoria Pública.

Ao ser adotado como referencial teórico o pensamento de Alexandre Morais da Rosa, no que se refere à aplicação da teoria dos jogos no processo penal, é perfeitamente possível afirmar que o acusado se encontra prejudicado quando, na véspera de seu julgamento, ocorre o abandono ou a renúncia do advogado. Preferível seria, então, que o jogador habitual remunerado pelo Erário tivesse, desde o início, atuado, quando então as estratégias defensivas tenderiam a seguir o mesmo norte. E isso se afirma porque não são raras as situações em que a tese a ser apresentada no plenário necessita ser totalmente diversa daquela então apresentada, já que não há acervo probatório que sustente o que havia sido afirmado. Quiçá, seja essa a principal explicação para os abandonos e renúncias. E, mesmo naquelas situações em que não ocorre inovação na defesa, não se pode desprezar o fato de que o Defensor Público torna-se um refém do que foi imaginado pelo advogado constituído.

Neste instante, é, portanto, oportuno, já que mencionado, recorrer aos ensinamentos de Alexandre Morais da Rosa, que são potencializados no Tribunal do Júri:

Pode-se diferenciar os jogadores profissionais/habituais dos amadores/eventuais. A qualidade do jogador (habilidade, competência, alto rendimento, remuneração, prêmios, etc.) pode influenciar significativamente o resultado da partida. Daí, a importância, pelo menos, da igualdade de armas entre os jogadores”[1]

E prossegue o professor catarinense:

Além da questão profissional ou amadora, ainda cabe distinguir os sofisticados e os selvagens (...) O sofisticado é capaz de cotejar as variáveis para saber que ação processual tomar. Do ponto de vista do defensor, por exemplo, se o defensor opera para obter lucros imediatos, o êxito na rejeição da denúncia/queixa ou mesmo absolvição preliminar pode ser a estratégia. Entretanto, se cobra honorários mensais, a extinção do processo pode ser economicamente desinteressante. Pode-se ainda ponderar o impacto de uma de uma absolvição e sua credibilidade, como advogado, no mercado dos defensores do crime. A variável econômica, portanto,nos casos de defensores privados, precisa ser invocada”[2]. 

Aliado a essa leitura própria da aplicação da teoria dos jogos no processo penal, não é admissível desprezar um importante dado, e que tem previsão constitucional, no âmbito do Tribunal do Júri vigora a garantia fundamental da plenitude de defesa. Sobre esse tópico, é de uma importância recorrer aos ensinamentos de Lênio Luiz Streck:

Uma das garantias do Tribunal Popular é a referida plenitude de defesa. Sua amplitude e complexidade são muito maiores do que aquelas relativas às garantias da ampla defesa e do contraditório, visto que ela abrange uma argumentação que transcende a dimensão meramente jurídica, na medida em que admite aspectos de ordem social, cultural, econômica, moral, religiosa, etc. Assim, a garantia da plenitude de defesa permite que o acusado por meio de seu advogado [e também por meio de seu Defensor Público], utilize todos os argumentos necessários para apresentar sua defesa e, assim, buscar convencer os integrantes do conselho de sentença”[3].

A despeito de se reconhecer a variável econômica como motivação das jogadas empregadas pelo advogado constituído, ao se inserir a análise no Tribunal do Júri, não deveria prosperar essa lógica, uma vez que poderão sobrevir graves efeitos para a plenitude de defesa. Quem sabe, a OAB deixe de lado o seu encantamento pelo processo penal do espetáculo e, assim, examine esses comportamentos adotados pelos integrantes do seu quadro.

Há, ainda, outra questão que permite a censura ao comportamento adotado pelos advogados constituídos que decidem, quando se avizinha a sessão de julgamento do Tribunal do Júri, abandonar o caso ou renunciar o mandato. É sabido que nenhuma pessoa poderá ser processada criminalmente sem a presença de um profissional habilitado para exercer a sua defesa. Logo, nestes casos, restará a Defensoria Pública exercer a defesa técnica do acusado. Parte-se, então, da ideia de que o “advogado do Estado” poderá atuar em substituição, bastando que o juiz, tal como se realiza em uma partida de futebol, autorize o ingresso desse jogador em campo. Aliás, a linguagem diz muito e não pode ser ignorada, essa lógica da troca de jogadores defensivos pode adquirir a conotação de castigo. Não é à toa que é comum encontrar a seguinte redação nos mandados de intimação para que o acusado promova um novo defensor – “O XXXXX, Juiz de Direito da XXXX, intima o Sr. Fulano para, no prazo legal, constituir novo patrono, sob pena de ser defendido pela Defensoria Pública”.

Com muita dificuldade e resistência de determinados atores jurídicos, a Defensoria Pública vem se tornando uma realidade. O cumprimento da promessa constitucional, no que se refere à assistência jurídica, ainda não se efetivou, tanto que a Emenda Constitucional n° 45/04 realizou verdadeira confissão pública de dívida, vide artigo 98, § 1º do ADCT. Mesmo ainda sendo uma instituição desconhecida para grande parte do seu público-alvo, não se pode perder de vista seu norte normativo, isto é, uma instituição autônoma e que, por via de conseqüência, não permite a construção de raciocínios que a colocam como um verdadeiro soldado de reserva da advocacia.

Enfim, em uma quadra histórica que direitos e garantias fundamentais são vulnerados de maneira cotidiana e isso é justificado pelo uso de uma visão utilitarista do processo penal, os advogados devem assumir também a responsabilidade com a plenitude de defesa. Ao adotarem essa postura, deixarão de compreender a Defensoria Pública como uma instituição que se encontra à sua disposição.


Notas e Referências:

[1] ROSA, Alexandre Morais. Guia compacto do processo penal conforme a teoria dos jogos. 3. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2016. p. 180.

[2] ROSA, Alexandre Morais. Op. cit. p. 191.

[3] STRECK, Lênio L. Comentário ao artigo 5º, XXXVIII. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; MENDES, GILMAR F; SARLET, Ingo W; _________ (coords). Comentários à Constituição do Brasil. São Paulo: Saraiva/Almedina, 2013. P. 382.


Eduardo Januário Newton. Eduardo Januário Newton é Mestre em direitos fundamentais e novos direitos pela UNESA. Defensor Público do estado do Rio de Janeiro. Foi Defensor Público do estado de São Paulo (2007-2010). E-mail: newton.eduardo@gmail.com .


Imagem Ilustrativa do Post: Toy Soldiers // Foto de: Sebastian Dooris // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


 

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