A PERVERSÃO DA LINGUAGEM ECONÔMICA HABITUAL: O QUE SIGNIFICA EXTRAIR OS RECURSOS DA TERRA?

11/09/2020

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

É inegável que estamos vivendo um momento ímpar na história da humanidade. O ano de 2020 tem sido desafiador em muitos sentidos. O capital reorganiza-se e avança sobre os territórios domésticos, os mecanismos de controle tecnológico se expandem tornando-se imprescindíveis para o novo normal entre tantos outros fenômenos sociais dignos de pesquisa e reflexão. Neste cenário pandêmico, o que não é novidade é a oposição entre vida e economia. Essa falsa dicotomia tem sido reforçada por múltiplos discursos políticos e institucionais, todos os dias, em diversos meios de comunicação. Como resistir às verdades econômicas incontestáveis em tempos de fake news, em que pouco importa a veracidade das informações?  

No dia 29 de maio de 2020 foi publicado um novo decreto presidencial (não iremos comentar a usual ausência de democracia no Brasil) que prevê, entre diversas outras áreas, a atividade mineral como essencial neste período. O Ministério de Minas e Energia defende essa decisão arbitrária sob o seguinte argumento: “Atividades minerais são essenciais no combate à pandemia”. Considerar a atividade econômica que mais prejudica o acesso  e a conservação da água como essencial em um momento de crise sanitária global é minimamente contraditório, para não dizer criminoso. É evidente que a crise é de fato, civilizatória. E que já não compreendemos, tampouco, o sentido de essencial. Pois bem, considerando essas questões, acreditamos que Luiz Alberto Warat no campo do Direito e Joan Martínez Alier desde a Economia Ecológica são dois importantes pensadores que se conjugados podem indicar caminhos possíveis para a construção de um pensamento jurídico crítico comprometido com a defesa da natureza e da vida.

Joan Martínez Alier, economista espanhol, entusiasta da ecología política latinoamericana, tem apontado as diferentes linguagens sociais de valoração em relação a natureza como forma de ampliar olhares e subjetividades  para além da ciência convencional. É nesse sentido, as contribuições que faz em seu Ecologismo Popular. Neste trabalho,  aponta de que modo a extração dos recursos naturais e precisamente o extrativismo mineral, é posto em marcha em cumplicidade  com o poder simbólico das palavras e seus sentidos encobertos. Segundo Alier, a linguagem econômica habitual torna frequente certas palavras provenientes da economia neoclássica a tal ponto que seus sentidos tornam-se inquestionáveis e adentram com muita força em outros campos do conhecimento. A perversão da linguagem, por sua vez, diz respeito ao encobrimento de práticas que são bastante distintas do sentido sugerido pela palavra que busca conceituar ou nomear estas práticas.

A perda da ingenuidade é condição para a construção de um pensamento jurídico crítico que nos permita a formação de uma história das verdades, que nos mostre os efeitos políticos das significações na sociedade, escrevia Luis Alberto Warat. Em seu texto Saber Crítico e Senso Comum Teórico dos Juristas, Warat aponta um caminho para a elaboração de um discurso crítico que começa em dois passos. O primeiro pela substituição do controle conceitual pela compreensão do sistema de significações, o segundo pela introdução da temática do poder como forma de explicação do poder social das significações, proclamadas científicas. A formação de uma história das verdades latinoamericanas precisa enfrentar certos sentidos que buscam ocultar a situação neocolonial em que se encontra a América Latina neste século XXI. 

No âmbito do Direito Ambiental, acreditar que se pode enfrentar os desastres ambientais sem considerar as raízes históricas e políticas é um bom exemplo de perversidade ingênua do senso comum teórico dos juristas. O raciocínio jurídico segue alinhado com a perversidade da linguagem econômica habitual e convoca a “vocação mineral” latinoamericana e  o “setor mineral” como imprescindível para a economia do país. Esse discurso não é recente e tem se aprofundado durante a pandemia.

Entretanto o que tem ocorrido no Brasil desde a sua colonização é a construção social de uma “vocação” exportadora de Natureza (na forma de matérias-primas). Além disso, maximizar a importância do setor mineral para a economia é desconsiderar a evidência de que a exportação é mais rápida do que a reposição e que frequentemente o resultado é deixar um buraco físico muito contaminado juntamente com um buraco social na região mineira. Talvez o setor mineral pareça tão rentável economicamente por delegar às populações pobres, às gerações futuras e a outras espécies não-humanas o caro custo do extrativismo.

O Brasil não é realmente um país produtor de minerais, assim como o México não é um país produtor de petróleo, pois na economia de mercado, normalmente chama-se produção ao que é extração. Extrair significa tirar sem repor. Petróleo e minerais não são produzidos, e sim, extraídos e consumidos. É preciso considerar, portanto, o cinismo contido na palavra produção quando se refere a Natureza. Este tipo de economia primário-exportadora tem causado diversas disfunções que se expressam nas dimensões: econômicas, sociais, políticas, ecológicas e ambientais na América Latina. A mineração em grande escala é resultado de uma forma de exploração colonial que submeteu povos e Natureza em função de uma lógica europeia de acumulação econômica e de controle político e social.

Veja-se a expressão produção de petróleo, é sabido que petróleo é fóssil e que portanto não pode ser produzido pela humanidade. O que ocorre na realidade é a produção geológica e o que faz a humanidade é apenas gastar esses recursos de forma muito mais veloz do que a formação geológica as repõe. O que ocorre na verdade é extração seguida de consumo, não há produção. E assim, como pontuado por Alier é preciso não confundir extração com verdadeira produção sustentável.

Algo semelhante a “produção de petróleo” acontece  com o termo “indústrias extrativistas”.  No que se refere aos minerais a sua própria natureza impede a produção, uma vez que se trata de substâncias formada por uma composição química resultante de milhões de anos de processos inorgânicos.  A palavra indústria de modo geral remete mais uma vez a ideia de produção. Ao menos no que se refere ao extrativismo mineral essa terminologia é extremamente equivocada pois os minerais extraídos no Brasil são exportados em sua forma bruta.

No caso brasileiro há uma particularidade, pois ao contrário dos demais países latinoamericanos, existe o termo “reservas extrativistas” para designar um tipo de conservação dos recursos naturais. Essa terminologia é empregada especialmente para as regiões da Amazônia ainda não privatizadas e consistem em manejos que não implicam degradação ecológica. Essa peculiaridade distorce o conceito de extrativismo amplamente utilizado na América Latina e que consiste em extrair grandes quantidades de Natureza que são diretamente encaminhadas à exportação. O conceito de extrativismo, como se vê, é bastante simples e o procedimento colonial. Ao mesmo tempo, essa especificidade brasileira remete às lutas amazônicas por sobrevivência e proteção ambiental da qual Chico Mendes é um nome inesquecível e que relembra a possibilidade de emergência de um ecologismo popular nos países periféricos do sistema-mundo.

Por fim, é fundamental apontar a contradição contida desde o título deste ligeiro texto. Natureza é mesmo recurso, ou foi assim que aprendemos a nomear rios, terras, minerais e mares? Até que ponto nosso sistema de significações está emaranhado nos sentidos trazidos por uma economia de rapina que incide sobre a diversidade e a abundância presentes na Terra e a distorce promovendo pobreza e escassez? 

A contribuição do Ecologismo Popular como fruto das lutas sociais mas também como movimento teórico e prático é afirmar que uma justa distribuição dos recursos da Terra não se faz com mais crescimento e desenvolvimento econômico e sim com uma gestão ecológica desses recursos. A pandemia não será combatida com uma atividade econômica altamente predatória, que esgota recursos essenciais como a água. No que se  refere ao campo jurídico o desafio é compreender o extrativismo como um conceito político e a enfrentar, sem ingenuidade, os efeitos políticos das significações decorrentes de certas relações de poder nas interações entre sociedade e natureza que resultam em um modelo de apropriação e exploração da natureza. 

 

Notas e Referências

ACOSTA, Alberto. O Bem Viver: uma oportunidade para imaginar outros mundos. 2ªed. São Paulo. Autonomia Literária. Elefante Editora, 2016.

ALIER, Joan Martínez. Da economia ecológica ao ecologismo popular. Editora da FURB,1998.

ALIMONDA, Héctor (coordenador). Naturaleza Colonizada. Coleções grupos de trabalho da CLACSO.

GUDYNAS, Eduardo. Extractivismos. Ecología, economia y política de un modo de entender el desarrollo y la Naturaleza. Cochabamba/Bolívia: CEDIB, 2015.

SILVA, Karen Graciella Gonçalves da. Pluralismo jurídico e o desastre socioambiental de Mariana / MG : a resolução dos conflitos decorrente do extrativismo mineral no Brasil - 2019.

 

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