Coluna Justa Medida
Nos últimos anos, organizações internacionais vinculadas aos direitos humanos publicaram estudos denunciando a persistência da violência suscitada pelo sistema de castas na Índia. De acordo com o informe de 2017/2018 da Anistia Internacional, mais de quarenta mil crimes foram cometidos com esta motivação em 2016. Dados mais detalhados do mesmo ano, publicados pela “National Compaign on Dalit Human Rights”, evidenciam que 13 dálits são assassinados por semana no país, sendo eles vítimas de um crime a cada dezoito minutos. Nesse contexto, é inevitável a análise política e social que conduz o país asiático a esses números atuais, baseando-se em eventos governamentais que determinaram uma conjuntura de combate à violência de castas, iniciada com a mudança da constituição em 1950, e, também, nas estruturas históricas que impedem que tais ações sejam, de fato, efetivas.
Em um primeiro momento, o professor Eduardo Filippi e a professora Sarita Cruz definem, no artigo “O impacto do sistema de castas no desenvolvimento econômico e social da Índia contemporânea”, que, no país, o hinduísmo é reconhecido como um sistema social, para além de uma crença religiosa. A fim de compreendermos, é necessário retomarmos o surgimento dessa organização. Apesar de não ser um consenso entre os historiadores, os estudos mais aprofundados sobre a origem das castas remontam ao período védico, quando foram escritos os textos religiosos vedas, em 1500 a.C. Correspondendo à um princípio de pureza em relação ao ser primordial, Purusha, sacrificado pelos deuses para a criação do universo, diferenciaram-se quatro castas: os brâmanes, que surgiram da cabeça do ser originário, os xátrias, dos braços, os vaishyas, das coxas, e os shudras, dos pés. Já os `'intocáveis", ou dálits, como são chamados, teriam nascido da terra, e são considerados impuros por não descenderem de Purusha. As relações hierárquicas entre as castas, ainda segundo o mesmo artigo, possuem alicerce em um código de conduta do século IV d.C., denominado “Manusriti”. De acordo com ele, as punições a um brâmane que assassinasse um shudra seriam muito mais amenas em relação ao caso de um shudra insultar um brâmane. Há, contudo, antropólogas como Susan Bayly que afirmam que a hierarquia entre as castas não pode ser explicada apenas religiosamente, mas, também, socioeconomicamente.
É nesse sentido que torna-se essencial analisar o período do “Raj britânico”, ou seja, os anos entre 1858 e 1947 em que a Índia foi colônia da Inglaterra. Ainda de acordo com Filippi e Sarita, a Inglaterra reforçou o sistema de castas no país oriental. Havia, nas relações entre os territórios, privilégios aos Brâmanes e omissão à situação dos dálits. Ou seja, foi a forma encontrada pelos colonos de exercer a sua dominação, confiando nos Brâmanes para ajudá-los a governar, controlando as castas mais baixas. Segundo a jornalista Mathilde Loire, os colonos britânicos interpretaram os efeitos das castas da mesma forma ocidental de interpretação das classes sociais, e passaram a categorizar os indianos de acordo com a sua função. Ela conclui, assim, que é a partir desse momento em que a população indiana passa a formar uma consciência de casta. Evidencia-se, portanto, que a hierarquia entre as castas possui teor estrutural e institucional, relacionado com a formação da sociedade.
Em contrapartida, a partir de meados da década de cinquenta, verificam-se ações políticas no sentido de combate à violência de castas na Índia. Nesse aspecto, é essencial apontar a mudança na constituição do país no ano de 1950. Por ela, os artigos décimo quinto, décimo sexto e décimo sétimo, respectivamente, proíbe qualquer discriminação com base em religião, casta, sexo ou lugar de nascimento, garante a igualdade de oportunidades entre os cidadãos e a abolição do princípio de intocabilidade (pelo qual as castas mais altas segregavam os dálits por eles exercerem funções consideradas “poluentes” na sociedade). Ademais, em 1989, inaugurou-se o “Ato de prevenção de atrocidades”, uma lei contra as discriminações e práticas de intocabilidade e de atrocidades contra os dálits. Inclusive, foi sob a influência de um líder dálit, o doutor Ambedkar, que, na constituição de 1950, foi implantado, também, o sistema de cotas. O artigo 46 do texto reserva ao Estado a função de promover os interesses econômicos dos setores mais vulneráveis da população, reservando espaços no parlamento e nos serviços públicos de educação.
Apesar das mudanças efetuadas, em 2008, a Frente pela Erradicação da Intocabilidade, uma organização que reúne 150 entidades de defesa dos dálits, publicou um estudo em que observou a permanência de 80 tipos de práticas discriminatórias contra essa parcela da população, como, por exemplo, a presença de muros casteístas, a proibição de usar sapatos e restrição de locais em que poderiam morar. Outros estudos, como Fontaine e Yamada, em 2014, concluíram que as entrevistas de emprego continuam a questionar os candidatos a respeito das castas. Deshpande e Newman, em 2007, concluíram, em pesquisa, que os dálits demoravam mais que o dobro de tempo para conseguirem ser empregados em relação aos pertencentes às outras castas. É importante, dessa forma, que se diferencie as leis das chamadas “normas” sociais. Como no caso da Índia, as leis podem ser modificadas, mas as regras sociais, transpassadas entre gerações, propagadas por instituições influentes, constitui um processo mais lento. Comprova-se a análise por meio do artigo supracitado, em que, de acordo com a pesquisa efetuada, o preconceito enraizado possui um efeito dominó. Isto é, sempre se encontram castas mais inferiores para agir com menosprezo, sendo a violência contra os dálits muito praticada, também, pelas castas intermediárias. Entre os próprios dálits há uma incessante competição entre “os mais intocáveis entre os intocáveis”.
Por fim, de acordo com o pensamento de Max Muller, linguista e cientista das religiões, as castas, como instituição social, irá sobreviver e se aprimorar, visto que emanam do sistema ideológico, moldando atitudes, valores e percepções. Apesar das mudanças verificadas desde a década de 1950, relacionadas, certamente, com o final da segunda guerra mundial, a criação da Organização das Nações Unidas e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, as estruturas históricas relacionadas ao sistema de castas são, ainda, muito fortes e recentes na sociedade indiana, o que justifica a dificuldade de desenvolvimento das políticas criadas.
Notas e Referências
FILIPPI, Eduardo Ernesto; OST, Sarita Cruz de Oliveira. O IMPACTO DO SISTEMA DE CASTAS NO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO E SOCIAL DA ÍNDIA CONTEMPORÂNEA. Unicuritiba, v.1, n.17, p.01-20, 01 abr.2017. Disponível em: http://revista.unicuritiba.edu.br/index.php/RIMA/article/view/2724/371371448. Acesso em: 12 out. 2020.
LOIRE, Mathilde. O milenar sistema de castas da Índia em dez pontos. 2017. Publicada por Europe Solidaire Sans Frontiere. Disponível em: https://www.insurgencia.org/blog/o-milenar-sistema-de-castas-da-india-em-dez-pontos. Acesso em: 31 out. 2017
ANISTIA INTERNACIONAL (org.). Relatório 2017/2018: o estado dos direitos humanos no mundo. O Estado dos Direitos Humanos no Mundo. 2017 e 2018. Relatório anual. Disponível em: https://anistia.org.br/wp-content/uploads/2018/02/informe2017-18-online1.pdf. Acesso em: 12 out. 2020.
National Campaign on Dalit Human Rights: http://www.ncdhr.org.in/
OLIVEIRA, Arilson Silva de. A sacralidade das castas indianas sob o olhar dumontiano. Anthropológicas, Pernambuco, v. 19, n. 12, p. 07-34, 2008. Mensal. Disponível em: file:///D:/Downloads/23668-46660-2-PB%20(3).pdf. Acesso em: 10 out. 2020
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