“A pena é a justa retribuição do crime ao delinquente”: existe fetiche mais irreal?

27/01/2022

Coluna Cautio Criminalis

Estimar empiricamente a efetividade da retribuição não é uma tarefa fácil do ponto de vista metodológico, e isso se dá porque o próprio fundamento dessa propaganda da pena[1] é metafísico e, portanto, antitético a pretensões de verificação e correção. Mas há pelo menos um critério interessante para trabalhar: a desvinculação entre a pena real (executada em concreto) e a pena ficta (imposta abstratamente na sentença condenatória). Sabemos que o poder punitivo se manifesta não somente de maneira lícita: o Estado exerce, também, um poder punitivo ilícito, um que produz penas escandalosamente afastadas das balizas legais e constitucionais. Esse poder punitivo, ainda assim, é um poder punitivo (!) e é comumente esquecido nos debates sobre a legitimidade da pena.[2] Uma passada de olhos em alguns dados sobre o cumprimento da privação de liberdade no Brasil pode nos dar uma ideia:

Em 22 de novembro de 2018, a CIDH emitiu Resolução sobre o cumprimento da pena no IPPSC – Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho -, no Rio de Janeiro. Lá, o Tribunal assentou algumas das condições da pena real a que estavam sujeitos os detentos: (i) superlotação de aproximadamente 200%, quando os critérios internacionais, como o do Conselho da Europa, determinam que ultrapassar os 120% já implica em superpopulação crítica; (ii) atenção médica dos presos na proporção de 01 médica para mais de 3.000 presos, sendo que a OMS – Organização Mundial da Saúde – estabelece, como parâmetro mínimo para a adequada prestação de serviços de saúde para a população livre, o critério de 2,5 médicos a cada 1.000 pessoas; (iii) mortalidade superior à da população não privada de liberdade; (iv) carência de informações acerca das causas de morte dos detentos; (v) falta de espaços dignos para o descanso noturno e superlotação em dormitórios; (v) falta de segurança física, sobretudo contra incêndios; (v) desproporção de pessoal em relação ao número de presos.[3]

Poderíamos relembrar neste subcapítulo o histórico de decapitações, canibalismo, rebeliões constantes e dezenas de mortes registradas, enforcamentos fazendo parte integrante da paisagem cotidiana, torturas policiais e entre presos, os corpos perfurados pelo chão ou a média de aproximadamente 100% de superlotação em Pedrinhas/MA.[4] Poderíamos também relembrar a vida cotidiana na Casa de Detenção São Paulo: o convívio dos presos com a insalubridade extrema, com a AIDS e com as violências de “um Código Penal não escrito”, tão bem descritos na literatura,[5] alcançaram o ápice da desvinculação entre pena real e pena ficta com o sanguinolento massacre policial em 02 de outubro de 1992 que todos nós conhecemos bem. Também poderíamos consultar o relatório da Pastoral Carcerária sobre tortura nas prisões durante a pandemia de COVID-19, que denunciou um aumento sistemático dessas práticas nos últimos anos, a negligência na prestação dos serviços de saúde essenciais durante o momento de crise sanitária, ausência de banhos de sol, obrigatoriedade de desnudamento, fornecimento precário de alimentação e produtos de higiene pessoal e limpeza, incomunicabilidade do preso, agressões físicas e verbais, castigos coletivos e outras espécies maus tratos em todas as unidades federadas do Brasil.[6]

Nessa mesma linha, também poderíamos consultar os relatórios do IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa – sobre o impacto do Coronavírus no sistema carcerário e descobrir que, no primeiro semestre da pandemia, apenas 05 Estados (AL, DF, GO, MS e SC) declaram disponibilizar água potável para higiene dos presos em tempo integral; que o número de agentes penitenciários testados para a doença até 30/04/22 era cinco vezes maior do que o número de reclusos; que a taxa de mortalidade por COVID até 30/04/22 era quatro vezes maior entre presos do que entre agentes penitenciários e cinco vezes maior entre presos do que entre a população não privada de liberdade; que em diversos Estados (AP, AM, GO, RJ e SC) somente eram disponibilizadas máscaras de proteção facial para presos do grupo de risco ou em deslocamento dentro da unidade prisional; dentre mais.[7] Poderíamos também nos lembrar da escandalosa sujeição das pessoas presas à tuberculose.[8] Poderíamos também rememorar a ampla literatura sobre a transcendência real da pena privativa de liberdade de mulheres em situações de maternidade no cárcere.

Enfim, poderíamos nos lembrar de muitas coisas, mas essas pequenas linhas já parecem suficientes para que nos lembremos de uma principal: a pena real, ou seja, cumprida efetivamente pela pessoa reclusa, é desvinculada da pena ficta. Onde um juiz impõe uma sentença condenatória à privação de liberdade, o Estado cumpre uma condenação acessória à perda da saúde, à destruição da higidez mental, à violação da dignidade. É por isso, então, que a hipótese punitiva segundo a qual punir retribui proporcional, justa, adequada e intranscendentemente “o mal causado” não apresenta mínima correlação com a realidade e, sendo assim, não pode nunca guiar a construção das categorias da teoria do fato punível, a dosimetria da pena ou o que quer que seja.

Bom, pode guiar uns jornais da tarde policialescos (e desde os últimos anos também judicialescos e promotorescos e essa coisa toda que estamos vendo) dos quais só falta sair sangue se se aperta a TV. Pensando bem, falta pouco mesmo para alguém propor por aí (expressamente) uma teoria jornalística da pena. Está aí, à disposição desses teóricos, a teoria da retribuição penal. Salve-se dela quem puder.

 

Notas e Referências

[1] Como afirmou Thiago Celli de Araújo partindo da metodologia de Marx.

[2] Cf., v.g., ZAFFARONI, Eugenio Raúl [et. al.]. Penas ilícitas y hermenêutica jurídica: un análisis a propósito de las medidas de la Corte IDH respecto del IPPSC. Buenos Aires: Ediar, 2021.

[3] CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Resolução da Corte Interamericana de Direitos Humanos em 22 de novembro de 2018. Medidas provisórias a respeito do Brasil. Assunto do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho. Disponível em: < https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/placido_se_03_por.pdf >. Acesso em: 08/12/2021.

[4] Cf. GAMBA, Josiane; CUSTÓDIO, Rafael [coords.]. Violação continuada: dois anos da crise em Pedrinhas. Disponível em: < http://www.global.org.br/wp-content/uploads/2016/03/relatorio_pedrinhas.pdf >. Acesso em: 08/12/2021 às 15:49.

[5] VARELLA, Drauzio. Estação Carandiru. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

[6] JÚNIOR, José Coutinho; GONÇALVES, Lucas; BALAN, Mayra; SANTOS, Clariane [orgs.]. Relatório: A pandemia da tortura no cárcere. Pastoral Carcerária, 2020. Disponível em: < https://carceraria.org.br/combate-e-prevencao-atortura/pastoral-carceraria-lanca-relatorio-a-pandemia-da-tortura-no-carcere >. Acesso em: 08/12/2021 às 16:18.

[7] IDDD – Instituto de Defesa do Direito de Defesa. Pedidos de Acesso à Informação. Dados sobre a COVID-19 no sistema prisional no 1º e 2º quadrimestres de 2020. Principais resultados. Disponível em: < https://uploads.strikinglycdn.com/files/eddad039-43b6-4678-9285-e9af2280bafb/iddd-dados-sobre-a-covid-19-nosistema-prisional-no-1o-e-2o-quadrimestres-2.pdf >. Acesso em: 08/12/2021 às 16:46.

[8] MUNIZ, Bianca; FONSECA, Bruno. Em alerta por coronavírus, prisões já enfrentam epidemia de tuberculose. Mar./2020. Disponível em: < https://apublica.org/2020/03/em-alerta-por-coronavirus-prisoes-ja-enfrentam-epidemia-detuberculose/ >. Acesso em: 08/12/2021 às 16:48.

 

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