Coordenação da Coluna: Associação Mineira de Professores de Direito Civil
Sabe-se que, ao longo da história, a família sempre foi formada – numa dinâmica heteronormativa, patriarcal e patrimonializada –, pela presença do pai, da mãe e dos filhos, cada qual exercendo uma função sociocultural preestabelecida, e, nesse sentido, conforme leciona Maria Berenice Dias (2021), para a aceitação social, sob a égide de uma sociedade conservadora, essa estrutura hierarquizada era fundamental para seu reconhecimento jurídico.
Ademais, o pai sempre foi tido como uma autoridade máxima dentro do lar e o responsável por manter a subsistência familiar, fazendo com que fosse uma figura ausente na criação dos filhos, obrigação esta, atribuída à mulher/mãe, que se obrigava aos afazeres domésticos enquanto o genitor buscava fora o sustento.
A realidade vivenciada pelas famílias, evidenciando o lugar de destaque que os homens tinham, já que o pai sempre se colocava num lugar de superioridade e, com pouca participação e comunicação, dava a última palavra, até mesmo no que tange a castigos corporais aplicados nos filhos, que eram tidos como objetos e não sujeitos de direitos, como bem explica Conrado Paulino da Rosa (2020, p. 59),
(...) antes, vivia-se uma lógica da hierarquia, imposição e castigo, na medida em que a experiência familiar era realizada a partir do pai, em lugar superior inclusive ao da genitora. As diretrizes familiares eram impostas pelo pai, sentado à ponta da mesa, pouco participativo (e, muitas vezes, pouco comunicativo também), que, provedor, tinha voz absoluta. Por último, a característica do castigo era vivenciada toda vez que os ditames do chefe da família não eram seguidos. Devemos lembrar que, no período anterior a 1988, a doutrina existente para os direitos da infância era da situação irregular, que percebia a criança como mero objeto e não sujeito de direito - diferentemente do que ocorre nos dias de hoje - sendo que o castigo corporal era incentivado, até mesmo, socialmente.
Ademais, a herança patriarcal, machista e conservadora dos tempos primórdios ainda perdura em nossa sociedade, principalmente sobre as legislações brasileiras, que caminham a passos lentos.
Não obstante isso, com o ingresso da mulher no mercado de trabalho e as inúmeras modificações no conceito de família, a visão de maternidade e paternidade também sofreram alterações significativas, inclusive, no que tange às atribuições de cada um dentro do núcleo familiar, especialmente após a consolidação de preceitos fundamentais trazidos na Carta Magna de 1988 e sucessivas, ainda que tímidas, alterações legislativas sobre o assunto.
A Constituição Federal de 1988 consagrou o fim jurídico do sistema patriarcal de família, ainda que no papel, determinando-se um sistema igualitário e solidário, já que o Código Civil de 1916 trazia consigo, além do individualismo, a exacerbada imutabilidade do “pacta sunt servanda” e também o patriarcalismo, várias qualificações discriminatórias e preconceituosas, o que refletia sobremaneira na educação dos filhos.
Logo, vê-se que há também uma (re)configuração no significado de maternidade, abrindo-se mais espaço para a figura paterna, cada vez mais presente nos afazeres domésticos, na educação e criação dos filhos, verificando-se até estudos sobre a importância da presença do pai nesses processos, avaliando-se também algumas características, tais como a profissão, renda e satisfação profissional como indicadores de maior participação na vida dos filhos, como preconiza Cristiane de Andrade Nogueira (2017).
A paternidade ativa é uma das mudanças paradigmáticas que envolvem maior presença masculina no seio familiar, assumindo, de fato, maior responsabilidade na educação e criação da prole. A Constituição Federal, dando ênfase e juridicidade na família, a reconheceu como base da sociedade e conferiu-lhe proteção do Estado. Com isto, pensando-se na ideia da afetividade enquanto princípio constitucional implícito, conferiu à paternidade o dever de maior envolvimento afetivo e, primordialmente, de resguardar a dignidade da pessoa humana e o interesse e o bem estar dos filhos.
De início, com a ressignificação do “ser pai” e com o desenvolvimento ativo por parte dos homens nos cuidados com os filhos, houve latente atenção ao papel paterno. O cenário da paternidade participativa se mostra desde a preparação de alimentos para os filhos, como também no cuidado do banho e da higiene, preocupação com a vestimenta, acompanhamento na saúde, lazer, esportes, educação e tudo que envolve a rotina das crianças e adolescentes. Ademais, entender esse tema é uma forma de contribuir positivamente para a formação dessa nova geração de filhos, além de propiciar a compreensão de que a paternidade está muito além da questão biológica e perpassa, sobretudo, no afeto e cuidado.
Segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2018), a paternidade ativa se mostra através de ações, cuidado físico e emocional que se dá aos filhos. Nesse sentido, demonstra-se que, ao contrário, o que se via antes era apenas a figura do pai provedor, que se ausentava do lar por longos períodos sob o pretexto de que garantia a subsistência do seu núcleo familiar. No entanto, com a mudança de mentalidade, muitos pais hoje tomam para si o seu múnus, estando mais presentes na vida e cotidiano dos filhos, trazendo acolhimento, segurança e efetivo cuidado.
A escolha pelo estudo do tema se deu haja vista as perceptíveis mudanças de comportamento masculino em ambientes onde os filhos são protagonistas, ao menos numa visão empírica, verificando-se uma maior presença de pais nas escolas (reuniões, apresentações em dias festivos, etc.), em atividades extracurriculares, atividades de lazer e, em todas elas, não só como meros expectadores, mas como ativos partícipes. Além disso, é possível ver fazendo sucesso alguns perfis em redes sociais – Instagram, por exemplo – de pais que registram suas rotinas da paternidade, incentivando e compartilhando experiências, tais como: Marcos Piangers (@piangers), Daniel Siqueira (@paimaneiro), O canal ser pai (@ocanalserpai), Pedro Alves (@vida_depai), Papai é Demais (@papaiedemais), dentre outros. Esses perfis citados são uma espécie de termômetro social, cuja aceitação aumenta a cada dia, contando, atualmente, com milhões de seguidores que admiram/seguem essa rotina masculina afeta na paternidade.
Importante não ignorar o fato de que a sociedade ainda vive em uma realidade na qual muitos pais são ausentes por completo e que sequer registram seus filhos. Essa omissão é confrontada pelo citado princípio da paternidade responsável, visto como um desdobramento dos princípios da dignidade e afetividade, como observa Rodrigo da Cunha Pereira (2021), de modo que que sua inobservância poderia gerar inúmeros problemas sociais.
“Quantos anos tem nosso filho?”, “Do que ele gosta de comer?”, “Ele tem alergia?”, “Que série ele faz mesmo?”, são algumas frases ditas por uma gama de pais ausentes e que não se colocam na realidade de vivenciar as experiências e responsabilidades da paternidade.
O problema que se coloca, portanto, é a verificação e identificação de onde tem se situado as “novas paternidades” e de que modo as desigualdades sociais podem influenciar no exercício da paternidade ativa e responsável, sobretudo nas proposições legislativas de licença paternidade como forma de promoção de incentivo à maior participação masculina na vida dos filhos, na vivência da paternidade na adolescência e da paternidade quando os pais estão encarcerados, por exemplo, mostrando-se situações de vulnerabilidade que ensejam discrepâncias.
A legislação infraconstitucional ainda não prioriza a construção da relação e vínculo entre pais e filhos, sobretudo, quando se fala acerca de licença paternidade. Durante anos, a previsão legal de autorização de apenas 5 dias para ausentar-se das funções laborais demonstravam que o arcabouço jurídico não queria os homens dentro de casa, mas sim, em seus devidos postos de trabalho. Para além destes 5 dias, os servidores púbicos federais e de alguns Estados já gozam de outros 15 dias adicionais, o que ainda não se mostra suficiente, a nosso ver. Assim, vê-se um primeiro aspecto social de análise, já que a licença de 20 dias alcança parcela pequena da sociedade.
As leis criadas ao longo do tempo, como o Programa Empresa Cidadã e a reforma trabalhista de 2017, introduziram desigualdades adicionais em relação aos direitos dos trabalhadores. Essas leis permitiram que os benefícios fossem negociados diretamente entre empregados e empregadores, priorizando acordos sobre a legislação existente. Como resultado, as licenças parentais foram desiguais desde o início devido a diferenças na capacidade de contribuição, tipo de emprego e tempo disponível para pais e mães.
Além disso, como aludido, a paternidade na adolescência traz ainda outras questões. Conforme Correa e Ferriani (2006), os serviços de saúde para adolescentes grávidas têm como objetivo cuidar das jovens mulheres durante a gravidez. Eles podem ser oferecidos por meio de consultas de pré-natal convencionais, seguindo o modelo clínico de atendimento à saúde, ou por meio de serviços que propõem novas formas de assistência para esse grupo da população. Em geral, a organização dos serviços de saúde não tem sido estruturada de maneira a envolver os pais adolescentes no cuidado pré-natal. Assim, os pais adolescentes costumam ficar em segundo plano em relação ao processo de gravidez e paternidade.
Em relação à paternidade de quem está encarcerado perpassa vários problemas. As mesmas autoras afirmam que quando alguém é preso, estabelece-se maior dificuldade na relação entre pais e seus filhos, prejudicando o bem-estar de todos e a capacidade do prisioneiro de se reintegrar na sociedade. No entanto, é importante notar que, para muitos, os problemas familiares já existiam antes da prisão, devido ao estilo de vida do pai antes de ser preso, e a pena de prisão apenas vem como uma piora da situação.
Deve-se considerar que existem pais na prisão que, assim como fora dela, não querem se envolver com seus filhos. Eles se recusam a cuidar, educar e, às vezes, nem reconhecem seus filhos. O grau de comprometimento dos pais encarcerados com seus filhos pode variar de ausente a parcialmente comprometido ou presente. Isso é importante porque a figura dos pais desempenha um papel crucial no desenvolvimento emocional saudável da criança, e o apoio familiar é relevante para o equilíbrio mental do prisioneiro. Portanto, é essencial fazer esforços para preservar o vínculo familiar do pai encarcerado. Evidências mostram que manter a relação entre pais na prisão e seus filhos é importante para o bem-estar de ambos, a menos que haja algum impedimento, como riscos à saúde e segurança da criança (MIRANDA e GRANATO, 2016).
Por fim, a paternidade ativa, que envolve a participação mais significativa dos pais na criação e educação dos filhos, é uma mudança de paradigma que reflete a evolução do Direito de Família e a valorização do afeto e da dignidade humana. A Constituição Federal de 1988 foi um marco nesse sentido, ao reconhecer a igualdade, a dignidade e o afeto como princípios fundamentais e ao ampliar o conceito de família para abranger diferentes modelos familiares.
Todavia, apesar dos avanços na legislação e na compreensão da importância da paternidade ativa, ainda existem desigualdades sociais que afetam a efetivação desses direitos. O Direito Civil, historicamente voltado para os indivíduos comuns, precisa considerar as mudanças sociais, políticas e econômicas, assim como os princípios constitucionais, para garantir a proteção dos direitos e interesses de todas as partes envolvidas.
Notas e referências
Pesquisa realizada com apoio do Edital 10/2022 PQ/UEMG.
BRASIL. Cartilha para pais – como exercer uma paternidade ativa. Disponível em: <www.saude.gov.br/bvs> Biblioteca virtual em saúde do Ministério da Saúde 2018. Acesso em: 15 mai. 2023.
CORRÊA, A. C. P.; FERRIANI, M. G. C. Paternidade na adolescência: um silêncio social e um vazio científico. Rev Gaúcha Enferm, Porto Alegre (RS) 2006, dez; 27(4):499-50.
DIAS, Maria Berenice. Manual de direito das famílias. 14. ed. rev. ampl. e atual. Salvador: Editora JusPodivm, 2021.
MIRANDA, M. L. A.; GRANATO, T. M. M. Pais encarcerados: narrativas de presos sobre a experiência da paternidade na prisão. Psico (Porto Alegre), 2016; 47(4), 309-318.
NOGUEIRA, Cristiane de Andrade. O pai e profissional no mundo contemporâneo: benefícios e conflitos da paternidade na carreira. Tese de Doutorado. USP, 2017. Disponível em: <https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/12/12139/tde-14062017-112253/publico/CorrigidaCristiane.pdf>. Acesso em 06 nov. 2023.
PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Direito das famílias. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021.
ROSA, Conrado Paulino da. Direito de Família contemporâneo. 7.ed. Salvador: Editora JusPodivm, 2020.
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