A parcialidade das partes – Por Fernanda Mambrini Rudolfo

16/04/2017

É muito frequente, especialmente em sessões do Tribunal do Júri, que um argumento seja utilizado, com o objetivo de tirar a credibilidade da defesa: é a arguição de sua parcialidade. Esta seria a distinção em face da supostamente imparcial acusação. É necessário, contudo, colocar os pingos nos “i”s.

Antes de qualquer coisa, a tentativa de tolher a credibilidade da parte contrária é artimanha de quem não tem argumentos hábeis a convencer o destinatário, os julgadores. Busca-se desequilibrar ainda mais a balança da justiça, fazendo com que as alegações acusatórias pareçam mais críveis que as defensivas. Isto, por si só, já deveria ser suficiente para impedir tal espécie de retórica, eis que baseada em uma falácia que viola a paridade de armas, que desrespeita a própria isonomia.

No entanto, se houvesse a devida compreensão do que é a parcialidade, perceber-se-ia que não é nenhuma depreciação da parte. Aliás, deve-se ostentar com orgulho tal característica. Só assim pode haver a necessária dialética processual.

Vislumbra-se, pois, que, ao argumento da imparcialidade, o cargo de Promotor de Justiça é utilizado como argumento de autoridade. É absolutamente incompatível com o Estado Democrático de Direito admitir-se que se viole dessa forma o direito de defesa, de uma defesa efetiva, não só figurativa. Aliás, se ao Ministério Público se confere tal credibilidade – que não se poderia permitir à defesa, de acordo com essa tese absurda –, é de se questionar por que existem as defesas. Por que se perde tanto tempo estudando os processos? Por que o poder público dispende tanto dinheiro, material, recursos humanos, permitindo que se forje um processo judicial? Bastaria a análise do caso pelo Promotor de Justiça, cuja credibilidade é inquestionável!

Outra pergunta cuja resposta não se obtém de nenhum membro do Ministério Público que utiliza este nocivo argumento diz respeito à não menção da tese nos processos criminais julgados por Magistrados, não pelo Conselho de Sentença. Nunca me deparei com nenhuma alegação final em que o Promotor de Justiça arguisse: Excelência, o cargo que exerço demanda que aja sempre de modo a promover a justiça e proteger a sociedade florianopolitana; tantas vezes pedi a absolvição, Vossa Excelência sabe disso; se hoje não estou pedindo, é porque estou convencido de que o réu é o culpado; só dormirei tranquilo se ele for condenado. Ao contrário do que por vezes argui o presentante do Ministério Público, não se afirma que não há pleitos absolutórios em varas comuns, mas que eles são fundamentados de modo distinto, assim como o pedido de condenação.

E isso ocorre justamente por saber (e saber que o Magistrado também o sabe) que isso não é razão para decidir de acordo com seu entendimento. A utilização desse argumento é o mesmo que fazer da defesa mero fantoche no cenário do Júri, inutilizando seus argumentos e lhe tolhendo qualquer possibilidade de convencimento antes mesmo de ter direito à palavra.

Veja-se: não se podem confundir as prerrogativas do Ministério Público com uma carta branca para atuar como bem entender, agindo não como titular da ação penal, mas como dono do próprio direito de punir e, portanto, do elemento de razoabilidade do processo.

Usa-se como argumento de autoridade a suposta (e equivocada) obrigatoriedade de a defesa postular a absolvição e a impunidade a qualquer custo, desconhecendo-se a inexistência de qualquer vinculação ao pedido absolutório, a qual decorre também do objetivo de evitar a perda da credibilidade da defesa (desejada, certamente, pela acusação, que busca a presunção de autoridade moral) e uma “dupla acusação” como resultado prático.

Nesse sentido, interessante destacar o seguinte excerto:

Em síntese, abundam vários casos, em épocas e continentes distintos, nos quais a defesa, após análise muito criteriosa de todos os fatores concretos do caso, descartou o resultado absolutório para não colocar tudo a perder. É o que enxergamos como fuga do paradoxo criado por estratégias defensivas frágeis, inviáveis, absurdas, e que resultam – na prática – em dupla acusação. Podemos denominá-lo de paradoxo da dupla acusação.

[...]

Diante de todo o exposto, fica claro que todo defensor que atue na área criminal também possui garantia cujo teor é o seguinte: o direito de escolher a estratégia defensiva potencialmente mais efetiva à proteção de interesses ou direitos do defendido, não havendo para o defensor o dever jurídico de sempre postular tese absolutória nos casos em que atue. Porque evitar o paradoxo da dupla acusação é evitar o descrédito da defesa criminal. [1]

Inafastável, pois, o fim da utilização do argumento de autoridade que confere ao membro do Ministério Público legitimidade maior do que a da defesa em plenário.

Acerca do assunto, interessa transcrever parte de artigo intitulado “Quando vira testemunha surpresa no Júri, promotor está sem provas”, que leva a vislumbrar a falta de provas – inegável – em quase todos os processos criminais:

[...]

O argumento de autoridade é sempre uma afirmação, com pretensão de imposição de uma linha de pensamento, calcada na legitimidade e presunção de confiabilidade que o cargo possui. É o apossamento de determinado argumento, pelo cargo. O argumento de autoridade elimina o adversário tido como não sério e se alia ao discurso reconhecido como sério, cobrindo-se com o manto (aparente) da verdade e Justiça. No fundo, o argumento de autoridade exclui a possibilidade de democracia processual, da diferença, pois impede qualquer diálogo, pois coloca um ponto final. Tenho dito. No ambiente do plenário do Júri a postura da acusação que se vale do lugar de promotor para atestar, como se fosse fiador, da certeza da conduta, demonstra que o acusador não joga limpo, porque precisa lançar mão do seu testemunho, em acréscimo, para garantir a prova que não possui. Em última análise, trata-se de afirmativa que somente encontra ‘poder de convencimento’ a partir da autoridade de quem a profere.

[...]

A defesa inicia sempre em desvantagem no ritual do tribunal do júri, correndo atrás de uma credibilidade e autoridade que não lhe é dada, senão que deve ser construída, ao passo que o juiz e o promotor de “Justiça” estão, desde sempre, legitimados. Na perspectiva psicanalítica, o Direito age em nome do Pai e por mandato, operando na subjetividade humana ditando a lei, capaz de manter o laço social e realizar a promessa utilitária de felicidade. Sua atuação se dá sempre por mandato e o mandatário é, em primeiro plano, o juiz. Depois o promotor de Justiça. O juiz, como pai, exerce no imaginário social um papel crucial, pois portador da eficácia da ilusão de ‘segurança’, pois inegavelmente “busca-se a segurança no substituto do pai, no juiz Infalível, o qual vai determinar, de modo seguro, o que é justo e o que é injusto”.

[...]

Não esqueçamos que (lacanianamente) as ‘palavras dizem coisas’, portanto, a inscrição no simbólico das palavras ‘promotor-de-Justiça’, é da maior relevância. Quando ele afirma algo, que vem testemunhado-avalizado pelo juiz (em nome-do-pai, portanto), aquilo é tomado como verdade irrefutável pelo jurado leigo.

A autoridade desse argumento é plena e ‘aprisiona’ o jurado também pelo não-dito, ou seja: “quando tenho certeza de que alguém é inocente eu peço a absolvição; logo, a contrário senso, quando eu não peço a absolvição (ou peço a condenação), é porque com certeza é culpado”. E tudo isso com o testemunho-aval do pai-juiz.

Portanto, em última análise, quando o promotor se vale desse um poderosíssimo argumento de autoridade, com o aval (agravante) do juiz, gera uma compressão do espaço decisório do jurado leigo, que não vislumbrará outra resposta senão a de corresponder à expectativa criada pela ‘autoridade’, a qual ele, inconscientemente, já está aprisionado desde sempre. Inegavelmente está comprometido o julgamento. Dessarte, devemos dar mais atenção ao sensível espaço ritual do tribunal do júri, para evitar o (ab)uso dos argumentos de autoridade, pois ainda que nenhuma autoridade tenha no argumento, aos nossos olhos, é nos jurados que exercerão uma imensa e negativa influência. Os jurados devem decidir com base nas provas, evitando-se esses instrumentos aprisionadores do espaço decisório, que acabam por constranger a própria decisão, ao tornarem o promotor e o juiz em fiadores de uma verdade apresentada por uma das partes.[2] (grifou-se)

No mesmo diapasão, a respeito da falaciosa imparcialidade do Ministério Público no processo penal, destaca-se:

Difunde-se como argumento retórico o fato se que se trata de acusador que pode requerer a absolvição. Logo, é imparcial. Essa trampa lógica – paralogismo – é manejada como argumento de convencimento por certa parcela do Ministério Público, especialmente no Júri. O fato de poder requerer a absolvição não é causa suficiente para que se desimcumba das funções constitucionais, no caso, o exercício da ação penal. Mas o argumento é forte do ponto de vista da influência e contaminação do corpo de jurados.

A artimanha opera-se da seguinte forma: (a) transfere o lugar do jogador-acusador para o de defensor justo, neutro e consciente da sociedade; (b) em que a função é a de procurar “Justiça”, tanto que o nome é o de “Promotor de Justiça” e não “Promotor de Acusação”; (c) afirma que já requereu a absolvição muitas vezes, sempre em nome da Justiça; (d) com isso gira seu lugar de fala (de interessado para imparcial) e, no caso, requer a condenação por Justiça também. O script é banal e convence o auditório, especialmente pela performance do jogador-acusador e sua eloquência, bem assim o gestual.

Serve também para sugerir lugar de testemunha isenta, para além de sua função, arregimentando o argumento de autoridade, para persuadir os jogadores. Quando precisa se valer dessa argumentação é porque falta prova ou joga sujo. Perceba-se que desloca o foco na prova para apresentar-se como meio de prova. [3] (grifou-se)

O autor cita a obra de André Augusto Mendes Machado, Investigação criminal defensiva, em nota de rodapé, in verbis:

O discurso em favor da imparcialidade do Ministério Público serve tão somente para conferir maior credibilidade à tese acusatória, supostamente neutra e justa, em detrimento da argumentação defensiva. (2010, p. 75)

Ainda sobre o assunto, importa transcrever:

A afirmação do Promotor de ‘Justiça’ de que ‘somente pede a condenação quando tem certeza’ e de que o juiz-presidente seria testemunha disso (o que não foi rebatido pelo juiz, logo, confirmado), tem uma imensurável capacidade de aprisionamento psíquico do jurado leigo e contaminar o fair play, claro que em nome do Bem, do Justo, da Segurança Pública. [4]

Não se pode privar a defesa da credibilidade que tem, do exercício real e efetivo de seus direitos, de modo que sejam garantidos os direitos dos acusados. Qualquer tentativa de desqualificar uma das partes ou sobrelevar a outra é uma violação ao processo penal constitucional, inadmissível em nosso pretenso Estado Democrático de Direito.

O uso da imparcialidade como modo de conferir maior credibilidade à acusação, mormente em plenário, deve ser considerado argumento de autoridade e, por conseguinte, deve ser vedado seu uso, sob pena de nulidade.


Notas e Referências:

[1] ZVEIBIL, Daniel Guimarães. A independência funcional na defesa pública criminal: o pedido de absolvição é sempre obrigatório? In: Temas aprofundados sobre a Defensoria Pública. Salvador/BA: Juspodivm, 2014, p. 454-455.

[2] Quando vira testemunha surpresa no Júri, promotor está sem provas – Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa – CONJUR – 17/10/2014.

[3] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis/SC: Empório do Direito, 2016, p. 463.

[4] LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Processo Penal no Limite. Florianópolis/SC: Empório do Direito, 2015, p. 89.


 

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