A pandemia do COVID-19 e a sua incompatibilidade com a realidade carcerária brasileira

07/08/2020

A pandemia do novo coronavírus paralisou o mundo devido ao seu alto grau de contaminação e elevado índice de mortalidade, ocasionando uma inegável situação de emergência sanitária global. Tal realidade, inevitavelmente, reproduz-se nos estabelecimentos prisionais brasileiros.

Visando amenizar os efeitos da disseminação da doença no âmbito da justiça penal e socioeducativo, o Conselho Nacional de Justiça editou a Recomendação nº 62/2020[1], que dispõe acerca das orientações a serem adotadas pelos Tribunais e magistrados. Dentre elas, a reanálise da situação dos presos que se encontram custodiados preventivamente por mais de 90 (noventa) dias, bem como dos que estejam em penitenciárias com ocupação superior à sua capacidade.

Todavia, em que pese tenham sido prolatadas decisões judiciais em harmonia com a recomendação do CNJ - concedendo a liberdade ou colocando em prisão domiciliar os presos pertencentes ao grupo de risco ou que tenham cometido delitos sem o emprego de violência ou grave ameaça - elas não representam uma maioria no cenário atual.

Diz-se isso, pois, o que se tem visto, de um modo geral, são decretos prisionais fundados na ausência de comprovação de efetivo risco à saúde do acusado, ou, ainda, na necessidade de preservação da paz social, o que demonstra completo descaso do judiciário com as condições desumanas oferecidas aos detentos nos estabelecimentos prisionais, sobretudo em meio a uma pandemia.

Exemplo dessa conjuntura é a decisão emanada no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que negou o habeas corpus de Lucas Morais da Trindade, detento que cumpria pena por portar menos de 10 (dez) gramas de maconha. O jovem negro veio a falecer no dia 04 de julho de 2020, no sistema penitenciário de Manhumirim, interior de Minas Gerais, vítima do novo coronavírus[2].

Casos como esse têm sido recorrentes nos presídios do país. Isto porque, de acordo com o Conselho Nacional de Justiça[3], houve um aumento de 800% nas taxas de contaminação nos presídios desde maio, ocasionando centenas de mortes. 

Por outro lado, alguns países têm adotado medidas efetivas visando amenizar a disseminação do novo coronavírus em suas prisões. O Chile[4], por exemplo, concedeu perdão comutativo para aqueles que cumprem sentenças por crimes que não representam uma ameaça à segurança pública. Já na Colômbia[5], o governo colocou 04 (quatro) mil presidiários em sistema de prisão domiciliar temporária.

No Brasil, embora os órgãos competentes tenham emitido orientações a fim de regular o controle da pandemia no sistema penitenciário, o que se vê, na prática, é diametralmente oposto, uma vez que as penitenciárias são, em sua vasta maioria, locais superlotados e insalubres, onde não é possível implantar o distanciamento social ou sequer dispor das medidas de higiene necessárias para a prevenção do COVID-19.

Por essas razões, considera-se inexeqüível, por exemplo, a Portaria nº 135/2020[6] publicada pelo Ministério da Saúde, bem como a Portaria Interministerial nº 07/2020[7], as quais estabelecem padrões mínimos de conduta a serem adotados na seara prisional, como: isolamento dos presos com sintomas suspeitos; distância mínima de 02 (dois) metros entre os custodiados; e promoção de meios e procedimentos carcerários para assepsia diária das celas.

O que se verifica, portanto, é que o estado em que as penitenciárias brasileiras se encontra não permite a aplicação das medidas preventivas esperadas, tornando o índice epidemiológico elevado e, consequentemente, representando alto risco à vida daqueles que ali vivem.

Para agravar este cenário, dados do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP)[8], baseados em inspeções em 1.439 unidades prisionais, mostram que 31% delas não oferecem assistência médica intermitente. O nordeste tem a pior situação, faltando aparato de atendimento em 42,59% das prisões, dificultando, inclusive, a identificação e triagem dos infectados.

Inclusive, em atenção a essa realidade, o Subcomitê das Nações Unidas para Prevenção da Tortura (SPT) publicou[9] uma série de recomendações visando a redução da população carcerária, como: a implementação de esquemas de libertação antecipada, provisória ou temporária de infratores de baixo risco; a revisão de todos os casos de prisão preventiva; a extensão do uso da fiança para todos os casos menos graves; além da revisão e redução do uso de detenção de imigrantes e de campos fechados para refugiados.

Destarte, é notória a preocupação das entidades públicas em – de alguma forma – elencar medidas que visem o controle da situação de vulnerabilidade que nos encontramos. Todavia, o que parece carecer é o bom senso – de alguns – para reconhecer a inaplicabilidade da maioria das recomendações no sistema prisional do Brasil, e, assim, aplicar medidas efetivas para redução da população carcerária, visando preservar a vida, a saúde e a dignidade da pessoa humana.

Sendo assim, denota-se que a liberdade tornou-se um instrumento da saúde pública, pois sem ela temos a criação de campos de concentração, onde o genocídio estrutural se praticará, hoje, como os argumentos dos tempos de exceção, os quais são valiosos até hoje nas decisões judiciais autoritárias no Brasil.

 

Notas e Referências

Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 62 de 17 de março de 2020. Acesso em 16/07/2020: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf>.

United Nations Human Rights. COVID-19: Measures needed to protect people deprived of liberty, UN torture prevention body say. Acesso em 16/07/2020: <https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25756&LangID=E>.

Portaria nº 135, de 21 de janeiro de 2020. Diário Oficial da União. Acesso em 16/07/2020: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-135-de-21-de-janeiro-de-2020-239407394>.

Portaria Interministerial nº 7, de 18 de março de 2020. Diário Oficial da União. Acesso em 16/07/2020: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-7-de-18-de-marco-de-2020-248641861>.

Carta Capital. Jovem negro preso por 10g de maconha morre em presídio por coronavírus. Acesso em 16/07/2020: <https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/jovem-negro-preso-por-10g-de-maconha-morre-em-presidio-por-coronavirus/>.

RFI. Covid-19 nas prisões: Chile aumenta indutos; França tem 10 mil presos em um mês. Acesso em 16/07/2020: < https://www.rfi.fr/br/geral/20200415-covid-19-nas-pris%C3%B5es-chile-aumenta-indultos-e-fran%C3%A7a-tem-menos-10-mil-presos-em-1-m%C3%AAs>.

Metrópoles. Covid-19: 4 mil detentos vão para prisão domiciliar na Colômbia. Acesso em 16/07/2020: <https://www.metropoles.com/mundo/covid-19-4-mil-detentos-vao-para-prisao-domiciliar-na-colombia>.

[1] Poder Judiciário. Conselho Nacional de Justiça. Recomendação nº 62 de 17 de março de 2020. Acesso em 16/07/2020: <https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/03/62-Recomenda%C3%A7%C3%A3o.pdf>.

[2] Carta Capital. Jovem negro preso por 10g de maconha morre em presídio por coronavírus. Acesso em 16/07/2020: <https://www.cartacapital.com.br/carta-capital/jovem-negro-preso-por-10g-de-maconha-morre-em-presidio-por-coronavirus/>.

[3] Conselho Nacional de Justiça. CNJ renova Recomendação nº 62 por mais 90 dias e divulga novos dados. Acesso em 16/07/2020: < https://www.cnj.jus.br/cnj-renova-recomendacao-n-62-por-mais-90-dias-e-divulga-novos-dados/>.

[4] RFI. Covid-19 nas prisões: Chile aumenta indutos; França tem 10 mil presos em um mês. Acesso em 16/07/2020: < https://www.rfi.fr/br/geral/20200415-covid-19-nas-pris%C3%B5es-chile-aumenta-indultos-e-fran%C3%A7a-tem-menos-10-mil-presos-em-1-m%C3%AAs>.

[5] Metrópoles. Covid-19: 4 mil detentos vão para prisão domiciliar na Colômbia. Acesso em 16/07/2020: <https://www.metropoles.com/mundo/covid-19-4-mil-detentos-vao-para-prisao-domiciliar-na-colombia>.

[6] Portaria nº 135, de 21 de janeiro de 2020. Diário Oficial da União. Acesso em 16/07/2020: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-135-de-21-de-janeiro-de-2020-239407394>.

[7] Portaria Interministerial nº 7, de 18 de março de 2020. Diário Oficial da União. Acesso em 16/07/2020: <http://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-interministerial-n-7-de-18-de-marco-de-2020-248641861>.

[8] CNMP. Taxa de ocupação dos presídios brasileiros é de 165%, mostra projeto "Sistema Prisional em números". Publicado em 05 de julho de 2019.

[9] United Nations Human Rights. COVID-19: Measures needed to protect people deprived of liberty, UN torture prevention body say. Acesso em 16/07/2020: <https://www.ohchr.org/EN/NewsEvents/Pages/DisplayNews.aspx?NewsID=25756&LangID=E>.

 

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