A PALAVRA DA VÍTIMA EM CRIMES SEXUAIS COMO INSTRUMENTO ISOLADO DE PROVA E O RISCO DA CONDENAÇÃO INJUSTA

08/04/2020

O presente artigo busca relacionar o processo penal no âmbito da fase probatória nos crimes sexuais, tem como pressuposto o estudo da declaração da palavra da vítima no crime sexual de estupro utilizando como base exclusiva para a condenação a utilização da palavra da vítima, sobretudo quando as referidas declarações não encontram amparo em outros elementos de prova dentro do processo penal.

A questão trata em especial do crime de estupro, um crime altamente reprovável pela sociedade, pois fere princípios e costumes. Ocorre que, na maioria dos casos os crimes sexuais são de difícil comprovação de materialidade do delito, não conseguindo ser devidamente demonstrada, como por exemplo, o fato de tocar as partes íntimas da vítima considerado o ato libidinoso, mesmo com a realização de exames periciais, é de difícil constatação, seja pelo decurso do tempo ou pela forma caracterização do abuso.

A palavra da vítima é um instrumento probatório de grande relevância no âmbito do processo penal, tendo em vista que essas espécies de crimes tendem a ocorrer no âmbito familiar em convivência íntima e geralmente em lugares clandestinos, sem a presença de outras testemunhas oculares, envolvendo apenas o sujeito passivo e ativo, o que dificulta a produção de provas testemunhais e materiais, tornando a palavra da vítima a única fonte de prova do delito sendo utilizado como a viga mestra probatória.

Contudo, o foco principal, é a condenação feita apenas com fundamento na palavra da vítima como único meio de prova, e o risco de uma condenação injusta, ressalta-se que é pacífico pelos tribunais superiores STJ (Superior Tribunal de Justiça) e STF (Supremo Tribunal Federal) a total possibilidade de o magistrado fundamentar a sua decisão apenas neste meio de prova para condenar o acusado, pois, tratarem de crimes com difícil comprovação com outros meios de provas como, por exemplo, testemunhas oculares, restando a palavra da vítima com relevante valor probatório.

Ocorre que, diante deste contexto fático, é perigoso atribuir alto-relevo probatório da palavra da vítima, uma vez que a mesma pode faltar com a verdade dos fatos, criar novas memórias ou mesmo pode equivocar-se quanto ao reconhecimento do acusado outra hipótese também, é o envolvimento com sentimentos pessoais, como, amor, ódio ou paixão.

 

 

O CRIME DE ESTUPRO

O crime de estupro encontra-se positivado no ordenamento jurídico brasileiro no art. 213 do Código Penal tendo como bem jurídico tutelado em questão a autonomia  e integridade sexual,  proteção à liberdade sexual da pessoa em sentido extenso, tanto em relação à mulher quanto em relação ao homem, a qual detém o direito amplo de não ter seu corpo violado carnalmente, em respeito ao livre consentimento de vontade no âmbito sexual, pois o estupro além de violar a liberdade sexual atinge a dignidade humana da vítima que se vê humilhada com a agressão (PRADO, 2011).

De fato, o crime de estupro envolve o fato de o agente constranger alguém, mediante grave ameaça ou violência física, a praticar consigo conjunção carnal ou consentir que com ele se pratique qualquer outro ato libidinoso (GRECO, 2011).

O ato libidinoso trata-se do desejo sexual, ações para satisfação da libido, ou seja, a satisfação do apetite sexual, compreendendo como ato libidinoso e a própria conjunção carnal, a masturbação, sexo oral, anal e o beijo lascivo (MARTINS, 2010).

Já a conjunção carnal consiste na copula vagínica, ou seja, o encontro entre pênis e vagina, desta forma, quando se tratar de tal conduta, deve ser necessariamente relação entre sexos opostos, ou seja, homem e mulher, pressupondo a relação sexual. Já em relação ao ato libidinoso, qualquer pessoa independente do sexo pode figurar no polo passivo, assim como o ativo, tratando-se de um delito comum (PRADO, 2013).

O crime de estupro pode ser cometido também por cônjuges que vierem a constranger a própria companheira ou companheiro a realizar com ele (a) conjunção carnal, permitir ou realizar qualquer ato libidinoso diverso, com emprego de violência física ou grave ameaça, em razão de, tal situação não existe amparo legal, tornando indiferente a condição pessoal da vítima (PRADO, 2013).

Em relação à materialidade do delito, está, pode ser provada pelo exame de corpo e delito, mas caso este não ocorra, é adotada a palavra da vítima como prova (ISHIDA, 2009).

 

DEPOIMENTO DA VÍTIMA NOS CRIMES SEXUAIS COMO ÚNICO ELEMENTO DE PROVA

De acordo com o Código de Processo Penal a vítima será questionada em seu depoimento sobre as circunstâncias do delito, autoria deste e as provas que seja capaz de indicar de acordo com o artigo 201 do código de processo penal (BRASIL, 1941).

As circunstâncias do delito são os dados que formam a configuração do delito investigado, desde (modo de execução, lugar, motivo entre outros) até a materialidade (NUCCI, 2012).

Em relação à autoria do ofendido, será questionado se este sabe indicar o autor do delito ou quem suspeita que seja. Aqui, vale ressaltar que as declarações da vítima constituem a instrução criminal.

Em regra, as palavras da vítima não possuem o mesmo valor probante de uma prova testemunhal, que passa por juramento de dizer a verdade sobre as declarações prestadas, sob a pena de incorrer no crime de falso testemunho. Não obstante, é evidente que as palavras da vítima tem grande relevância em relação à autoria e circunstancias do para o esclarecimento dos fatos (MACHADO, 2011).

Deste modo, em muitas ocasiões, será através da palavra da vítima que resultará a persecução penal, causando graves consequências para o acusado de praticar o delito (PACELLI e FISCHER, 2014).

Segundo Fernandes (1995), de fato, diante de um sistema onde vige o livre convencimento motivo do magistrado, este não se encontra sujeito à regras e valores determinados previamente com relação às provas, conseguindo por esta razão a palavra da vítima convencê-lo mais do que uma testemunha.

Nas ações penais públicas o ofendido não é parte, devido a isto, o mesmo não é ouvido como testemunha, desta maneira não poderá responder  pelo crime de falso testemunho elencado no art. 342, do Código Penal, que se imputam contadores, tradutores, peritos ou intérpretes. Entretanto está sujeito a responder pelo crime de denunciação caluniosa art. 339, do Código Penal, se presentes os elementos ali citados (PACELLI e FISCHER, 2014).

Assim sendo, diante do interesse processual da vítima, o melhor seria o magistrado conhecer a personalidade da vítima, com o fim de verificar com maior clareza aquele que diz a verdade que aquele que mente (NUCCI, 2012).

Conforme ensina Greco (2015, p. 492) “[...] a falta de credibilidade da vítima poderá, portanto, conduzir à absolvição do acusado, ao passo que a verossimilhança de suas palavras será decisiva para um decreto condenatório” devendo formar seu convencimento ainda que diante da fragilidade probatória.

Nos crimes de estupro, a palavra da vítima torna-se uma viga mestra probatória, uma vez que, suas imputações, seguras e firmes e se de acordo com as demais provas, proporciona sustento a condenação do agressor (DELMANTO, 2016).

Concordando com tal entendimento, é importante mencionar os seguintes julgados do Supremo Tribunal Federal:

HABEAS CORPUS. PROCESSUAL PENAL. ESTUPRO E ATENTADO VIOLENTO AO PUDOR. CONDENAÇÃO. DESCONSTITUIÇÃO. LAUDO PERICIAL QUE NÃO ATESTA A OCORRÊNCIA DOS DELITOS. IMPOSSIBILIDADE. CONDENAÇÃO AMPARADA NA PALAVRA DA VÍTIMA, CORROBORADA POR OUTRAS PROVAS TESTEMUNHAIS. IDONEIDADE. NECESSIDADE DE DILAÇÃO PROBATÓRIA INVIÁVEL NA VIA ELEITA. 1. Embora o laudo pericial não se afigure útil para a comprovação da prática de crimes sexuais, a palavra da vítima (crucial em crimes dessa natureza), corroborada por provas testemunhais idôneas e harmônicas, autorizam a condenação, ainda mais porque o Juiz não está adstrito ao laudo pericial, podendo se utilizar, para formar a sua convicção, de outros elementos colhidos durante a instrução criminal. Nesse contexto, por se tratar a espécie de matéria de prova duvidosa e controvertida, é absolutamente inviável a sua apreciação na via estreita do remédio heroico. 3. Ordem denegada (BRASIL, 2004).

 

Assim sendo, quando o magistrado acreditar que exista a possibilidade de estar presente de uma falsa imputação por parte do ofendido em crimes contra a dignidade sexual, o juiz deve ter sua atenção redobrada, fazendo uma análise de todo o conjunto probatório, a fim de ser evitar uma condenação injusta ou mesmo inocentar culpados observando também o princípio do in dubio pro reu (FAVERO e SILVA, 2017).

A busca pela verdade plena é muito difícil, ou até impossível, toda via, o que já temos de maneira pacificada, é o juízo verdadeiro, que é a analise dos elementos probantes de acordo com a realidade (MACHADO, 2014).

Portanto, neste contexto fático, resta ao magistrado trabalhar com sua capacidade de observar, e usar sua percepção para apurar a verdade dos fatos e as inverdades. Contudo o magistrado não deve ser rigoroso demais ao desacreditar da vítima, não sendo permitido qualquer preconceito na avaliação de suas declarações, tendo em vista que a vítima nada mais é aquele que foi agredido e quer justiça (NUCCI, 2012).

É importante também destacar a teoria da mulher Potifar, empregada no meio jurídico, onde o julgador deverá ter uma sensibilidade ao apurar se os fatos descritos pela vítima são legítimos, ou seja, comprovar a veracidade de sua palavra, tendo em vista que contradiz com a negativa do acusado (GRECO, 2011).

A citada síndrome da mulher Potifar ocorre quando uma mulher é rejeitada pelo homem, e o lhe imputa  falso crime referente à dignidade sexual, levando em conta seus sentimentos pessoais e a raiva pela rejeição (GRECO, 2013).

Deve-se levar em consideração também, a questão da contaminação da vítima por falsas memórias, é algo novo ainda no sistema brasileiro, mas é algo que se deve observar, pois há casos que sem que se tenha sido colhido formalmente o depoimento da vítima e a descrição do acusado, é apresentado à vítima, imagens dos agentes que já passaram por investigações ou mesmo os que os policiais acreditam serem possíveis autores. Diante disso, há uma possível instigação ao reconhecimento. A continuação visual das vítimas que passaram por situações traumáticas como de abuso sexual é diferente das de uma situação normal e tende a fixar os olhos justamente no que lhe é causador de temor e medo. A questão, no caso, é se é possível condenar alguém a uma pena extremamente significativa através de uma prova de caráter duvidoso em frente dos aprimoramentos da psicologia cognitiva (LOPES JR. E MORAIS DA ROSA, 2017).

Em virtude dos fatos mencionados, é que importante destacar que uma condenação com base exclusivamente na palavra da vítima, deve se pautar de uma segurança ímpar, devendo ser interpretada com ressalvas, carecendo o magistrado compará-la com as demais provas, levando em consideração ambas as personalidades e relações pessoais, tendo em vista que as consequências da condenação nesses crimes destroem a vida do condenado, no ambiente familiar e, ainda o tratamento desumano dentro do sistema carcerário que jamais poderão ser revertidas. Desta maneira, o princípio do in dubio pro reo de ser aplicado em seu máximo aproveitamento, pois qualquer principio de dúvida pode vir trazer a inocência do réu (GARBIN, 2016).

Diante do que foi observado conclui-se que a palavra da vítima sem estar e consonância com os elementos de prova não deve se pautar de segurança, pois diante das consequências que virão advindas da condenação, está precisa estar no mínimo amparada por outros elementos probantes para que também seja observado a defesa do acusado que poderá se defender de outras provas sem ser apenas palavra da vítima no qual dificulta ao máximo a sua defesa.

 

Notas e Referências

 

BRASIL. Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Rio de Janeiro, 7 de dezembro de 1940. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848.htm.  Acesso em 01 Out, 2018.

BRASIL. Decreto-lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Rio de Janeiro, em 3 de outubro de 1941. Disponível em  http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del3689.htm. Acesso em 04 de Nov, 2018.

BRASIL. Tribunal de Justiça do Estado do Amazonas. - revisão criminal. Atentado violento ao pudor (art. 214, c/c o art. 224, "a", do cp). Condenação com base exclusivamente na palavra da vítima. Surgimento de nova prova. Retratação da vítima realizada judicialmente. Prova válida. Insuficiência de provas para manter um decreto condenatório. Ação julgada procedente para absolver o requerente, com fundamento no art. 386, vii, do cpp. Decisão por maioria, Relator: Sabino da Silva Marques, Data de Julgamento: 03/12/2018, Primeira Câmara Criminal, Data de Publicação: 03/12/2018)

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus” - Crime De Estupro Com Violência Real - Ação Penal Pública Incondicionada - Súmula 608 Do Stf - Declaração De Pobreza Emanada Da Vítima - Validade - Laudo Pericial Negativo Quanto À Existência De Conjunção Carnal - Existência De Lesões Indicativas De Resistência A Agressão Sexual - Vestígios Idôneos - Eficácia Probante Das Declarações Da Vítima De Estupro -Precedentes - Necessário Reexame Aprofundado Do Conjunto Probatório - Inadmissibilidade Na Via Sumaríssima Do “Habeas Corpus” - Pedido Indeferido Primeira Turma, 74302, Relator(A): Min. Celso De Mello, Julgado Em 26/11/1996, Publicado Em 16/09/2011.

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus. Processo Penal. Estupro E Atentado Violento  Ao Pudor. Condenação. Desconstituição. Laudo Pericial Que Não Atesta A Ocorrência Dos Delitos. Impossibilidade. Condenação Amparada Na Palavra Da Vítima, Corroborada Por Outras Provas Testemunhais. Idoneidade. Necessidade De Dilação Probatória Inviável Na Via Eleita. Quinta Turma, H.C. 34.903/RJ, Relator(A): Min. Laurita Vaz, Julgado Em 23/06/2004, Publicado Em 23/08/2004.

DELMANTO, Celso. Código Penal Comentado. 9. ed. rev.atual e ampl. São Paulo: Saraiva, 2016.

FAVERO, Lukas; SILVA, Paulo. A Validade E Os Perigos Da Palavra Da Vítima No Crime De Estupro E Estupro De Vulneráveis. Disponível em: https://www.fag.edu.br/upload/contemporaneidade/anais/594c15318b366.pdf. Acesso em 02 de Out 2018.

GRECO FILHO, Rogério Greco. Curso de Direito Penal: parte especial. 3.v. 10. ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2013.

GARBIN, Aphonso Vinicius. Estupro de vulnerável, a palavra da vítima e os riscos da condenação. Disponível em: <https://canalcienciascriminais.com.br/estupro-de-vulneravel-apalavra-da-vitima-e-os-riscos-da-condenacao/> Acesso em 04 Nov 2018.

ISHIDA, Válter Kenji. Curso de Direito Penal. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2009.

LOPES JR., Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. Memória não é Polaroid: precisamos falar sobre reconhecimentos criminais. Revista Consultor Jurídico, 07/09/2014. Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-nov-07/limite-penal-memoria-nao-polarid-precisamos-falarreconhecimentos-criminais  Acesso em 04 de Nov 2018.

LYRIO, Al; UCHÔA, V. Homem condenado por falso estupro é absolvido depois de 16 anos: Salvador: Revista Correios, 2011. Disponível em:<https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/homem-condenado-por-falsoestupro-e-absolvido-depois-de-16-anos/>. Acesso em: 04 Mai 2019.

OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 21°. ed. São Paulo: Atlas, 2017.

MATOS, Marcos. Gaúcho é inocentado após passar anos na cadeia. Disponível em:https://g1.globo.com/rs/rio-grande-do-sul/noticia/2018/12/21/quero-fazer-a-minha-vida-diz-gaucho-inocentado-por-dna-apos-passar-anos-na-cadeia-por-estupro.ghtml. Acesso em 25 Mai 2019.

MARTINS, Naicon. Conjunção carnal? Ato libidinoso? O que é isso? Disponível em: http://legislexis.blogspot.com/2010/10/conjuncao-carnal-ato-libidinos. Acesso em 05 Set 2018.

MACHADO, Antonio Alberto. Curso de Processo Penal. 6. Ed. São Paulo Atlas 2014.

MUCCIO, Hidejalma. Curso de Processo Penal. 2. ed. Rio de Janeiro: Método, 2011.

NUCCI, Guilherme de Souza. Direito Processual Penal. 2. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012.

PACELLI, Eugenio; FISCHER, Douglas. Comentários ao Código de Processo Penal e sua jurisprudência. 6.ed. São Paulo: Atlas, 2014.

PRADO, Luiz Regis. Curso de Direito Penal Brasileiro: parte especial – volume 2. 11.ed. São Paulo: RT, 2013.

 

Imagem Ilustrativa do Post: hammer, books, law court // Foto de: succo // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/en/hammer-books-law-court-lawyer-620011/

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura