A PALAVRA

29/01/2020

Coluna Direito e Arte / Coordenadora Taysa Matos

A gente tinha um nome pra essa coisa que apertava o peito e fazia doer os olhos até a lágrima cair. Dizia-se na aldeia que era uma palavra esquisita, mas que pronunciá-la de um certo modo até aliviava um bocadinho a dor. Então a gente aprendia, desde miudinho, a dizer. Depois a gente crescia, cada dia um pouquinho, e essa coisa ficava cada vez mais apertada contra as paredes do peito, não cabendo mais em si, nem em mim, nem em ti, e a gente ia perdendo, sem querer, a vontade de dizer... Até que a lembrança dessa coisa que apertava o peito desaparecia por inteiro do pensamento, e a gente ia vivendo como se nunca tivesse sentido, como se nunca tivesse pronunciado aquela palavra esquisita...

Às vezes até que a lembrança voltava, meio sorrateira, toda clandestina, fazendo a gente espreitar devagarinho por entre as frestas, pra espiar aquela coisa que nos deixava em completo desatino...

Às vezes essa coisa, que apertava o peito e fazia doer os olhos até a lágrima cair, acontecia de aparecer na hora em que a gente não tinha como escapar de sentir – bem na hora da viagem sem volta de alguém que resolvia partir lá pros confins dos céus onde criança nenhuma conseguia alcançar com a mão – o braço era curto, a mão pequena... só a vontade era comprida – e nem adiantava subir no banquinho – não havia jeito de tocar na ponta do céu e implorar pros anjos devolverem aquele alguém importante que tinha deixado todo mundo aqui embaixo 'a ver navios' (ou melhor, 'a ver aviões', já que tinha ido pro céu...)

Outras vezes essa coisa comprimia o peito de um jeito tão estrangeiro, que era como se um paraíso inteiro houvesse de ser expulso de solavanco do mundo pra dar lugar a algum respiro profundo, pois se não fosse o respiro, nem a coisa suportaria comprimir o peito daquele jeito de doer os olhos até a lágrima cair... Nessas horas era porque viera morar por dentro, junto da coisa e do peito, aquele sentimento tão bobo e tão louco, que fazia toda criança já quase gentinha grande de verdade, pela primeira vez sentir vontade de gritar de dor porque era caso da mordida do amor – daquele jeitinho doido e doído feito uma flecha que acerta o coração e faz a gente passar ridículos de paixão...

Fora isso, poucas as vezes que essa coisa era de doer a fazer a gente lembrar da palavra esquisita de dizer... como numa despedida de avó, ou um pai indo embora solto no mundo sem hora de voltar, um filho crescido dizendo 'tô indo', ou um amigo querido deixando um abraço apertado como lembrança por toda uma vida sofrida...

Era bem assim – quando a palavra esquisita era dita, muito dita, repetida um bom par de vezes, até que a aldeia inteira dizia em coro a palavra esquisita, sentindo juntinha o mesmo aperto no peito a fazer doer os olhos e a lágrima cair... Era quando o milagre acontecia – pronunciar a palavra esquisita pela aldeia inteira virava uma espécie de mantra de cura da dor nos olhos e do aperto no peito – todos repartiam a dor de um – e a dor virava um pão fatiado em tantos pedaços quanto o número de pessoas da aldeia, como se cada um mastigasse um naco da dor de um, diluída em amor. A palavra esquisita vinha ao mundo pra virar amor – o amor daquele jeitinho bonito: ninguém soltava a mão de ninguém numa ciranda quase sem fim de diluir a dor até a própria dor virar 'um ninguém'.

Porque a saudade precisava ser dita, ainda que fosse na aldeia uma palavra esquisita...

 

Imagem Ilustrativa do Post: Milky Way // Foto de: Nicolas Valdes // Sem alterações

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