A originalidade como condição para o regular exercício do direito de ação

07/02/2015

Por Afrânio Silva Jardim - 07/02/2015

 1)   CONSIDERAÇÕES DE ORDEM GERAL

Inicialmente desejo deixar bem claro o sistema processual com o qual opero, dando os nossos conceitos sobre as categorias jurídicas que o compõem. Não podemos negar a influência de Carnelutti , Liebman e Jayme Guasp em nossa formação, sendo que, em nossa pátria, levamos em linha de conta o pensamento de Hélio Tornaghi, Frederico Marques e o grande José Carlos Barbosa Moreira.

Desde logo se vê que trabalho com conceitos que extraímos da hoje questionada Teoria Geral do Processo, motivo pelo que, quase tudo que aqui vamos dizer, vale para os vários ramos do Direito Processual  (Civil, Penal  e do Trabalho).

Concebemos a ação como um direito subjetivo público, autônomo e abstrato, porém conexo a uma relação jurídica de direito material, alegada pelo autor, de manifestar em juízo uma determinada pretensão. Fazemos a distinção do direito de ação, que tem assento constitucional, do exercício deste direito de ação, que é regulado pelo Direito Processual. Julgamos ser sempre muito importante distinguir qualquer direito de seu exercício.

Pretensão, no conceito supra, tem o sentido específico e peculiar formulado por Carnelutti, sendo a exigência de subordinação do interesse jurídico do autor em face de eventual interesse oposto do réu. É uma vontade que  o autor da ação manifesta perante o poder judiciário. Tal manifestação é um pressuposto necessário para que o direito de ação tenha sido efetivamente exercido.  As chamadas condições da ação se relacionam com o seu regular ou legítimo exercício, e devem ser examinadas tendo em vista o que, em tese, o autor alega e não tendo em vista a prova produzida, pois aí já estamos no exame do mérito.

Seguindo explicitando o nosso pensamento, damos o nosso conceito de processo: para nós, processo  é um conjunto de atos jurídicos, regulados pela lei processual, organizados de forma sistemática e teleológica, através dos quais a atividade jurisdicional se desenvolve  para satisfação da pretensão do autor.  Usamos aqui o termo “satisfação” no sentido de Guasp, não significando que o autor será atendido, mas terá seu pedido examinado pelo Poder Judiciário, em uma atividade substitutiva. Entendemos que o processo não é uma relação jurídica, mas cria a relação jurídica, vinculando os sujeitos que nele atuam. Não trabalhamos com o conceito de lide, que pode existir ou não, mas trabalhamos sempre com a idéia de pretensão. Não existindo pretensão, não haverá ação, processo e jurisdição. Podemos ter sim a chamada jurisdição voluntária, onde encontramos requerimento, procedimento e atividade judicial (não jurisdicional).

Finalmente, temos entendido que o processo é uma categoria autônoma, descabendo enquadrá-lo em outras categorias cunhadas pela Teoria Geral do Direito. Em resumo, processo é processo e não relação jurídica. Processo cria a relação jurídica. Neste particular, recebemos a adesão do excelente professor e desembargador Alexandre Câmara, no trabalho publicado na segunda edição do livro “Tributo a Afranio Silva Jardim”, Lumen Juris, 2014, p.33/40. Para melhor detalhamento do que acabamos de sustentar, peço licença para remeter o leitor ao nosso trabalho intitulado “Reflexão teórica sobre o processo”, o qual  se tornou o    capítulo do livro Direito Processual Penal, Estudos e Pareceres, p.21/52,  agora em 13.edição, publicado pela Lumen Juris, em 2014,  que conta com a co-autoria do amigo, excelente magistrado e professor Pierre Souto Maior Amorim.

Desta forma, sendo o direito de ação uma categoria diversa do processo, até porque a primeira só existe no plano ideal e a segunda  surge no mundo físico, não vejo como alguns possam misturar ou confundir os pressupostos do processo com as condições para o exercício do direito de ação e mesmo com o pressuposto da existência deste direito (pretensão). Embora todos tenham de ser examinados lógica e cronologicamente antes do mérito, eles se relacionam com categorias processuais absolutamente distintas. Lamentavelmente, os nossos tribunais costumam confundir estas categorias.

Voltando ao tema central deste nosso estudo, salientamos, mais uma vez, com apoio na melhor doutrina, da qual Hélio Tornaghi foi um dos pioneiros, que as chamadas condições da ação não são condições para a existência do direito de ação, mas sim para o seu regular exercício. Vale dizer, mesmo que falte uma destas condições, teremos ação, processo e atividade jurisdicional, entretanto, a pretensão do autor não será apreciada (mérito). Na falta de um pressuposto de existência do processo, não teremos atividade jurisdicional e coisa julgada. Na falta de um pressuposto de validade do processo, fica contaminada a validade dos atos processuais (plano da eficácia), acarretando a sua nulidade. A rigor, para nós, no processo, não haveria nulidade, mas sim anulabilidade, pois enquanto o ato processual não é desconstituído por decisão judicial, ele produzirá efeitos, os quais a coisa julgada material  poderá até torná-los  perenes.

Feitas estas observações teóricas e introdutórias, vamos passar a sustentar a existência de mais uma condição para o regular exercício da ação penal, civil e trabalhista. Importa ressaltar que se trata de mais uma condição genérica, pois não vamos cuidar das chamadas condições específicas, criadas pela lei processual para situações peculiares.

2 – A ORIGINALIDADE  COMO CONDIÇÃO GENÉRICA PARA O REGULAR EXERCÍCIO DE QUALQUER AÇÃO.

Julgo necessário mais um esclarecimento, específico para o Direito Processual Penal.

De há muito vimos sustentando que a justa causa é uma quarta condição para o regular exercício da ação penal condenatória, pública ou privada. Definimos justa causa como sendo o suporte probatório mínimo que deve existir para legitimar uma acusação penal, tendo em vista que a instauração de um processo já pode causar danos irreparáveis ou de difícil reparação para o réu.

Por outro lado, também temos afirmado que este suporte probatório mínimo não se refere apenas à impropriamente chamada materialidade do delito e à autoria ou participação da conduta imputada na denúncia ou queixa.  Deve haver também prova mínima da ilicitude e culpabilidade. Para mais detalhes sobre nosso pensamento, remetemos o leitor para o nosso livro “Ação Penal Pública”, publicado, em 5ª.edição, pela Lumen Juris,  2012.

Não julgamos que a justa causa precise da certeza da materialidade da infração penal e nem trabalhamos com a idéia de probabilidade de futura condenação, conforme pareceu ao professor Gustavo Badaró, em minucioso e extenso trabalho, criticando a nossa tese sobre a imputação alternativa  (“Tributo a Afranio Silva Jardim”, Rio, Lumen Juris, 2ª.edição, p.387/444.  A nossa posição é que, para o exame da justa causa, basta constatar a existência (sem juízo de valor) da prova  mínima que dê lastro à acusação. Se, no inquérito policial ou nas peças de informação, encontramos alguma prova da existência material da infração penal, de sua autoria ou participação e também prova mínima da ilicitude e culpabilidade, estará correto o exercício daquela ação penal condenatória.

Mais uma ressalva: tendo em vista a imprecisão da expressão “justa causa” e o seu errôneo  tratamento dado pelo legislador da reforma do Código de Processo Penal, vamos abandonar aqui  esta expressão e dizer que: A QUARTA CONDIÇÃO PARA O REGULAR EXERCÍCIO DA AÇÃO PENAL CONDENATÓRIA É A EXISTÊNCIA DE UM SUPORTE PROBATÓRIO MÍNIMO DA IMPUTAÇÃO FEITA NA DENÚNCIA OU QUEIXA.  Acreditamos que, com isso, ninguém discorde. A discordância poderá ficar para a extensão desta prova mínima.

Passamos agora a enfrentar o tema principal do nosso trabalho: a originalidade como condição para o regular exercício da ação civil, penal e trabalhista.

Quando falamos em originalidade, estamos querendo dizer o mesmo direito de ação não pode ser exercido simultaneamente (litispendência), ou mesmo, sucessivamente (se houver coisa julgada material). Vale dizer, não litispendência e não violação à coisa julgada. A ação tem de ser original e não uma “cópia” de outra ainda pendente ou já constante de outro processo apreciado no mérito.

A doutrina vem asseverando que a litispendência e a coisa julgada são pressupostos processuais negativos de validade do segundo processo. Percebemos aqui novamente aquela confusão que mencionamos no início deste breve trabalho, confundindo validade processual com regularidade no exercício do direito de ação. A proibição de se reproduzir uma determinada ação  tem a ver com a validade dos atos processuais praticados no segundo processo ou tem a ver com o abusivo duplo exercício do mesmo direito de ação?

Assim, quando o sistema normativo proíbe a litispendência e a violação à coisa julgada, ele está disciplinando, regulando, limitando o exercício do direito de ação. Nestas hipóteses, o autor está abusando do seu direito de ação ou, em outras palavras, ele está exercendo ilegitimamente o direito de ação, porque o faz repetidamente.

Por isso, o Código de Processo Civil não determina que o segundo processo seja anulado, mas sim que ele seja extinto sem apreciação de seu mérito. Correto o legislador. Se fosse o caso de anular o segundo processo, ele poderia ser instaurado novamente, sanada que fosse a nulidade ... Aliás, caberia aqui uma pergunta: que ato deste segundo processo deveria ser anulado? Que ato deste segundo processo foi praticado em desconformidade com a lei processual que o  regula?

A toda evidência, a reprodução indevida do mesmo direito de ação tem a ver com o direito de ação e não com o processo. É até mesmo intuitivo.

Este nosso entendimento é antigo e consta das duas de nossas  obras acima mencionadas, bem como de palestras que se encontram publicadas na internet (Youtube). Já encontramos adesão de alguns importantes autores ligados ao Processo Penal, como  os professores e magistrados  Rubens Casara e Antônio Pedro Melchior, (Teoria do Processo Penal Brasileiro, Rio, Lumen Juris, 2013, 1º.volume, p444) e André Nicollit (Manual de Direito Processual Penal, Rio, Elsevier, 2013, 4ª.edição, p.113/114), motivo pelo qual aguardamos que os mestres dos outros ramos do Direito Processual nos honrem com suas apreciações críticas.

 Rio de Janeiro, fevereiro de 2015.


Sem título-5

AFRANIO SILVA JARDIM, mestre e livre-docente em Direito Processual Penal (Uerj), professor associado da Faculdade de Direito da Uerj e Procurador de Justiça (aposentado),

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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