A ORGANIZAÇÃO CRIMINOSA E O RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO    

11/11/2021

A Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu recentemente que o crime previsto no artigo 2º., § 1º., da Lei 12.850/13, além de seu caráter material (inclusive na modalidade embaraçar, sendo possível, portanto, a condenação pela forma tentada), pode ser praticado tanto na fase de inquérito policial quanto durante a ação penal, após o recebimento da denúncia.[1]

Esse entendimento firmou-se no julgamento do Recurso Especial 1.817.416, reformando-se parcialmente acórdão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina que manteve a condenação de quatro pessoas por embaraço à investigação de organização criminosa. A corte estadual concluiu que elas atuaram para mudar o depoimento de uma testemunha já na fase judicial e que o ato de embaraçar é crime formal, consumado quando o réu age para perturbar de qualquer modo a investigação, independentemente de conseguir seu objetivo.[2]

Ao interpor o recurso especial, a defesa sustentou que o referido tipo penal trata da conduta de embaraçar a investigação criminal, e não de embaraço ao processo judicial, além de ser possível a modalidade tentada. 

Nos termos do voto do relator, Ministro Joel Ilan Paciornik, “a tese de que a investigação criminal descrita no artigo 2º., § 1º., da Lei 12.850/2013 cinge-se à fase do inquérito não deve prosperar, eis que as investigações se prolongam durante toda a persecução criminal, que abarca tanto o inquérito policial quanto a ação penal deflagrada pelo recebimento da denúncia. Com efeito, não havendo o legislador inserido no tipo a expressão estrita 'inquérito policial', compreende-se ter conferido à investigação de infração penal o sentido de persecução penal, até porque carece de razoabilidade punir mais severamente a obstrução das investigações do inquérito do que a obstrução da ação penal.”

Ademais, segundo ele, “sabe-se que muitas diligências realizadas no âmbito policial possuem o contraditório diferido, de tal sorte que não é possível tratar o inquérito e a ação penal como dois momentos absolutamente independentes da persecução penal.”[3] No seu voto, o relator citou o Habeas Corpus 487.962, também de sua relatoria, julgado em junho de 2019, no qual já havia sido destacado o mesmo entendimento.

Como se vê, a Quinta Turma do Superior Tribunal de Justiça equiparou, para os efeitos de reconhecimento do delito previsto no artigo 2º., § 1º., da Lei 12.850/13, a fase de investigação criminal com própria ação penal (fase judicial ou processual), dando a uma norma penal de caráter nitidamente incriminador uma interpretação extensiva, o que não se admite.

Sabe-se que tal método hermenêutico aplica-se, em regra, às normas processuais penais puras (ou meramente formais), nos termos do artigo 3º. do Código de Processo Penal, desde que, evidentemente, tal possibilidade não seja contrária aos direitos e garantias inerentes à condição de acusado.

Aqui, inclusive, é necessário ressaltar que não se deve confundir a analogia (ou aplicação analógica) – como método de autointegração da norma – com interpretação extensiva, pois, no primeiro caso, há uma lacuna a ser suprida, enquanto que, no segundo caso, trata-se de uma norma já existente, permitindo-se uma ampliação do seu alcance, para contemplar situações não previstas expressamente pelo legislador, tenha sido tal omissão feita de maneira voluntária ou involuntária.

Ferrara, explicando bem esta diferença, afirma que a analogia “aplica-se quando um caso não é contemplado por uma disposição de lei, enquanto a interpretação extensiva pressupõe que o caso já está compreendido na regulamentação jurídica, entrando num sentido duma disposição, se bem que fuja à sua letra.”

Assim, segundo o mesmo autor, “enquanto a interpretação extensiva não faz mais do que reconstruir a vontade legislativa já existente – revelando o sentido daquilo que o legislador realmente queria e pensava -, a analogia, pelo contrário, está em presença duma lacuna, em um caso não previsto, para o qual não existe uma vontade legislativa, e procura tirá-la de casos afins correspondentes, relacionando-se com casos em que o legislador não pensou, e vai descobrir uma nova norma inspirando-se na regulamentação de casos análogos.”[4]

Feita esta distinção necessária, é preciso atentar, ainda, para a natureza da respectiva norma, conforme lição de Florian, de tal maneira que “se se trata da liberdade pessoal, as limitações à mesma devem ser interpretadas em sentido estrito, em virtude do conhecido princípio in dubio pro reo, proclamado secularmente pelos penalistas, e admitido em todos os povos cultos.” Florian, então, estabelece o seguinte critério geral e metodológico: “onde a lei não dita mandatos ou proibições, pode-se permitir uma margem de liberdade ao juiz e às partes, ainda que sempre conforme aos fins do processo e aos princípios fundamentais que o regem.”[5]

Também Aragoneses já advertia, fazendo um paralelo entre as leis penais e as leis processuais penais, para o fato que quando a lei possa “produzir um determinado efeito prejudicial para o acusado, a interpretação deve ser restritiva”, citando como exemplo normas que afetam “a liberdade pessoal e a propriedade dos cidadãos (medidas cautelares), as que, por sua similitude com as penas, exigem esse tratamento de aproximação com os critérios interpretativos das normas penais materiais.”[6]

Neste mesmo sentido, Barreiros, afirmando, após admitir a utilização da interpretação extensiva, ressalva a sua impossibilidade quando se trata de “normas restritivas de direitos subjetivos, ou que tenham natureza excepcional.”[7]

Ora, a decisão da Corte Superior, ao fazer a referida equiparação, utilizando-se da interpretação extensiva, ampliou indevidamente o alcance de uma norma penal incriminadora, o que é, por óbvio, inadmissível, violando-se, inclusive, o princípio da legalidade estrita, aplicável às normas jurídico-penais incriminadoras ou impositivas de penas; nestes casos, ao contrário, a interpretação deve ser sempre restritiva, reduzindo-se ao máximo o sentido normativo da lei penal.

Sabe-se que a interpretação, quanto aos resultados, pode ser declarativa, extensiva ou restritiva, “conforme se diversifique a correlação entre o conteúdo aclarado da vontade da lei e a exteriorização ou manifestação da vontade legislativa.”[8]

Atento a esse aspecto, e após observar que algumas vezes “a linguagem da lei diz mais do que a vontade nela contida”, Aníbal Bruno afirmava ser necessário, às vezes, utilizar-se de uma interpretação que a restrinja ao sentido real da norma. Neste caso, segundo ele, “o intérprete não pretende corrigir a norma, mas apenas restaurar o seu sentido verdadeiro.”[9]

No mesmo sentido, Fiore afirma que tal interpretação “tende a restringir o campo e o círculo da lei a partir de um obstáculo que se encontra em outra lei, ou nos princípios da equidade, ou nas conveniências sociais.”[10]

A propósito, lembra-se, respaldando-se agora na lição de Larenz, que “interpretar é uma atividade de mediação pela qual o intérprete compreende o sentido de um texto, que se lhe tinha deparado como problemático. Em que consiste esta atividade de mediação? O intérprete tem presente os diferentes significados possíveis de um termo ou de uma sequência de palavras e pergunta-se sobre qual é aqui o significado ´correto`. Para tal, interroga o contexto textual e o seu próprio conhecimento do objeto de que no texto se trata, examina a situação que deu origem ao texto ou ao seu discurso, assim como outras circunstâncias ´hermeneuticamente relevantes`, que possam ser consideradas como indícios relativamente ao significado procurado.”

Assim, após afirmar que o sentido literal possível é variável, Larenz explica que “dentre os diferentes significados há de se denominar de ´estrito` aquele que, em relação a outros possíveis, tem um de aplicação estrito, sendo necessária uma interpretação ´restritiva` quando um significado concebido como relativamente estrito corresponde à ´vontade do legislador`; uma interpretação ´extensiva`, quando um significado concebido de modo amplo corresponde a essa vontade.”[11]

Aliás, a propósito, observa-se que o artigos 1º., 3º. e 8º. da Lei 9.296/96, que trata da interceptação de comunicações telefônicas, distinguem muito claramente as duas fases da persecução penal, senão vejamos:

“Art. 1º A interceptação de comunicações telefônicas, de qualquer natureza, para prova em investigação criminal e em instrução processual penal, observará o disposto nesta Lei e dependerá de ordem do juiz competente da ação principal, sob segredo de justiça.”

“Art. 3° A interceptação das comunicações telefônicas poderá ser determinada pelo juiz, de ofício ou a requerimento: I - da autoridade policial, na investigação criminal; II - do representante do Ministério Público, na investigação criminal e na instrução processual penal.”

“Art. 8° A interceptação de comunicação telefônica, de qualquer natureza, ocorrerá em autos apartados, apensados aos autos do inquérito policial ou do processo criminal, preservando-se o sigilo das diligências, gravações e transcrições respectivas.

Da mesma forma, o Código de Processo Penal, em diversos dispositivos, trata de fazer a mesma distinção:

“Art. 155.  O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.”

Art. 282.  As medidas cautelares previstas neste Título deverão ser aplicadas observando-se a: I - necessidade para aplicação da lei penal, para a investigação ou a instrução criminal e, nos casos expressamente previstos, para evitar a prática de infrações penais.”

“Art. 311. Em qualquer fase da investigação policial ou do processo penal, caberá a prisão preventiva decretada pelo juiz, a requerimento do Ministério Público, do querelante ou do assistente, ou por representação da autoridade policial.”

Também não parece o mais acertado o argumento contido no acórdão da Quinta Turma, segundo o qual “carece de razoabilidade punir mais severamente a obstrução das investigações do inquérito do que a obstrução da ação penal”, pois, neste segundo caso, é possível a decretação da prisão preventiva por conveniência da instrução criminal, nos termos do artigo 312 do Código de Processo Penal.

Para concluir, observa-se, como escreveu Ferrajoli, que “a interpretação da lei, como hoje é pacificamente admitido, não é nunca uma atividade somente recognitiva, mas, ao contrário, sempre é o fruto de uma escolha prática a respeito de hipóteses interpretativas alternativas. E esta escolha, mais ou menos opinativa segundo o grau de indeterminação da previsão legal, esgota-se inevitavelmente no exercício de um poder na indicação ou qualificação jurídica dos fatos julgados.”[12]

 

 

Notas e Referências

[1] “Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa: Pena - reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas. § 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.”

[2] Neste aspecto, mesmo reconhecendo haver diferentes posições doutrinárias a respeito, o relator considerou que a melhor interpretação quanto à consumação e à tentativa na modalidade embaraçar está no entendimento de que se trata de crime material, pois “a adoção da corrente que classifica o delito como crime material se explica porque o verbo 'embaraçar' atrai um resultado, ou seja, uma alteração do seu objeto. Na hipótese normativa, o objeto é a investigação, que pode se dar na fase de inquérito ou na instrução da ação penal, ou seja, haverá embaraço à investigação se algum resultado, ainda que momentâneo e reversível, for constatado.” Em reforço a essa tese, citou-se decisão do STF que recebeu denúncia por tentativa de obstrução à investigação de organização criminosa, reconhecendo como indícios de materialidade e autoria as conversas em que um político discutia com outras pessoas a necessidade de interferir na atividade da polícia durante a Operação Lava Jato. (Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/28102021-Embaracar-investigacao-de-organizacao-criminosa-e-crime-material-e-pode-ocorrer-no-inquerito-ou-na-acao.aspx. Acesso em 09 de novembro de 2021).

[3] Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/julgamento/eletronico/documento/mediado/?documento_tipo=integra&documento_sequencial=132441593&registro_numero=201901593661&peticao_numero=-1&publicacao_data=20210816&formato=PDF. Acesso em 09 de novembro de 2020.

[4] FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. Coimbra: Arménio Amado - Editor, 1987, pp. 162 -163.

[5] FLORIAN, Eugenio. Elementos de Derecho Procesal Penal. Barcelona: Bosch – Casa Editorial, 1933, pp. 41 e 42.

[6] ALONSO, Pedro Aragoneses. Instituciones de Derecho Procesal Penal. Madrid: 1976, p. 65.

[7] BARREIROS, José António. Processo Penal - 1. Coimbra: Almedina,1981, p. 202.

[8] BETTIOL, GIUSEPPE. Direito Penal – Volume I. São Paulo: Revista dos Tribunais1966, p. 136.

[9] BRUNO, Aníbal. Direito Penal – Parte Geral, Volume I – Tomo I. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 206.

[10] FIORE, Pascuale. De la irretroatividade e interpretación de las leyres. Madrid: Editorial Reus, 1927, p. 565.

[11] LARENZ, Karl. Metodologia da Ciência do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997, pp. 283 e 500.

[12] FERRAJOLI, Luigi. Derecho y razón – Teoría del garantismo penal. Madrid: Editorial Trotta,1998, pp. 38 e 39.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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