O Comitê de Direitos Humanos da ONU decidiu que admite julgar o mérito do comunicado individual (julho de 2016) - o primeiro, feito por um brasileiro àquele órgão internacional - do caso do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Embora não tenha concedido uma medida liminar em favor do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, tal como requerido pela defesa em 06/04, o Comitê de Direitos Humanos adverte as autoridades brasileiras sobre qualquer ação que possa frustrar a análise do caso.
O Comitê, segundo informa a laboriosa e competente defesa, também admitiu julgar o caso à luz do artigo 25 do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, que assegura a todo cidadão a possibilidade de participar “sem restrições infundadas” o direito de “votar e ser eleito em eleições periódicas, autênticas, realizadas por sufrágio universal e igualitário por voto secreto, que garantam a manifestação da vontade dos eleitores”.
Na peça protocolada em julho de 2016, foram listadas diversas violações ao Pacto de Direitos Políticos e Civis, adotado pela ONU, praticadas pelo juiz e pelos procuradores da Operação Lava-Jato de Curitiba contra o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, seus familiares e advogados. O Pacto prevê, dentre outras coisas: (a) proteção contra prisão ou detenção arbitrária (Artigo 9º); (b) direito de ser presumido inocente até que se prove a culpa na forma da lei (Artigo 14); (c) proteção contra interferências arbitrárias ou ilegais na privacidade, família, lar ou correspondência e contra ofensas ilegais à honra e à reputação (Artigo 17); e, ainda, (d) do direito a um julgamento independente e imparcial (Artigo 14).
Destaca-se aqui, apenas três, entre tantas situações de evidente abuso, arbitrariedade e ilegalidade que contaminam “in totum”, todos os processos envolvendo o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva:
1- Da parcialidade do julgador:
O Pacto de São José da Costa Rica, em seu art. 8º, I, dispõe:
Toda pessoa tem direito a ser ouvida, com as devidas garantias e dentro de um prazo razoável, por um juiz ou tribunal competente, independente e imparcial, estabelecido anteriormente por lei, na apuração de qualquer acusação penal formulada contra ele, ou para determinarem seus direitos ou obrigações de natureza civil, trabalhista, fiscal ou de qualquer outra natureza (grifamos).
Hoje, é posição dominante nos principais tribunais de direitos humanos o reconhecimento da necessidade de se garantir um julgamento justo por um juiz ou tribunal imparcial.
Informa Geraldo Prado que a Corte de Estrasburgo assinala que a confiança do cidadão nos Tribunais de Justiça está, em grande parte, baseada no princípio da imparcialidade. Em igual sentido tem se pronunciado a Corte Internacional de Direitos Humanos (CIDH), para qual a parcialidade, sem embargo de observada apenas objetivamente, invalida por completo o processo penal.[1]
Mais adiante, Geraldo Prado traz a colação o catedrático de direito penal e Juiz do Tribunal Supremo espanhol Enrique Bacigalupo, para quem é pacificado o entendimento do TEDH que “a imparcialidade deve ser garantida objetivamente, mediante a determinação legal das causas de incompatibilidade, e de modo subjetivo, excluindo-se do processo o juiz que nutre sentimentos especialmente adversos relativamente a alguma das partes”[2] (grifamos).
O processualista e professor Jacinto Coutinho afirma que:
democracia – a começar a processual – exige que os sujeitos se assumam ideologicamente. Por esta razão é que não se exige que o legislador, e de consequência o juiz, seja tomado completamente por neutro, mas que procure, à vista dos resultados práticos do direito, assumir um compromisso efetivo com as reais aspirações das bases sociais. Exige-se não mais a neutralidade, mas a clara assunção de uma postura ideológica, isto é, que sejam retiradas as máscaras hipócritas dos discursos neutrais, o que começa pelo domínio da dogmática, apreendida e construída na base da transdisciplinariedade.[3]
No que diz respeito ao processo acusatório - opção e garantia constitucional - uma das consequências mais importantes é a separação entre juiz e acusação. Essa separação, segundo Luigi Ferrajoli[4], é uma exigência do axioma nullum iudicium sene accusatione. Essa garantia representa um distanciamento essencial do juiz em relação às partes.
O julgador deve, portanto, manter uma posição equidistante das partes e equilibrada diante do processo para que possa, ao final, buscar a decisão correta e mais justa e que resulta da sua imparcialidade.
Assim, o juiz que, no dizer de Geraldo Prado, “antecipadamente está em condições de ajuizar a solução para o conflito de interesses que em alguns casos sequer foi objeto de pretensão do interessado, na prática torna dispensável o processo, pois tem definida a questão independentemente das atividades probatórias das partes, comportamentos processuais que devem ser realizados publicamente e em contraditório”. [5]
Como bem assevera Gustavo Badaró, “a palavra juiz não se compreende sem o qualificativo imparcial. Não seria exagerado afirmar que um juiz parcial é uma contradição em termos”. [6]
A imparcialidade do juiz adverte Badaró, “resta evidentemente comprometida quando o magistrado realiza pré-juízos ou pré-conceitos sobre o fato objeto do julgamento”. Invocando a jurisprudência do Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), o eminente processualista, observa que no julgamento do Caso Piersack vs. Bélgica, o TEDH decidiu que no tocante ao direito a um tribunal imparcial, “todo juiz em relação ao qual possa haver razões legitimas para duvidar de sua imparcialidade deve abster-se de julgar o processo. O que está em jogo é a confiança que os tribunais devem inspirar nos cidadãos em uma sociedade democrática”. [7]
Diante de tudo, não resta dúvida de que os atos processuais praticados pelo juiz Federal Sérgio Moro, ratificados pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região e confirmados pelo Supremo Tribunal Federal no que se refere ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva revelam a parcialidade do Judiciário do Brasil em relação a pessoa do ex-Presidente.
2- Da condução coercitiva do ex-Presidente Lula:
Em 04 de março de 2016, com a deflagração da 24ª etapa da Operação Lava Jato, o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi conduzido coercitivamente por determinação do Juiz Federal Sérgio Moro.
De plano, necessário destacar que a condução coercitiva do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva não teve nenhum respaldo legal ou jurídico.
A previsão legal da condução coercitiva de investigado/acusado, de duvidosa constitucionalidade, está consubstanciada no artigo 260 do Código de Processo Penal[8], sendo imprescindível que ocorra uma recusa imotivada por parte do acusado/investigado, o que não ocorreu em relação ao ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em momento algum se furtou de comparecer a qualquer ato para que fora intimado. Bastava a expedição de mandado de intimação para que o ex-Presidente da República prestasse esclarecimentos a respeito dos atos investigados na “Lava Jato”. E, na hipótese dele se recusar a comparecer, imotivadamente, poderia aplicar o artigo 260 do Código de Processo Penal.
Em dezembro de 2017 o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Gilmar Mendes em decisão liminar e monocrática, proibiu as famigeradas conduções coercitivas.
Na liminar que passou a impedir a condução coercitiva de investigados, o ministro Gilmar Mendes afirmou que: “A condução coercitiva para interrogatório representa uma restrição da liberdade de locomoção e da presunção de não culpabilidade, para obrigar a presença em um ato ao qual o investigado não é obrigado a comparecer. Daí sua incompatibilidade com a Constituição Federal”.
Por tudo, não se olvida de que a condução do ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi fruto da arbitrariedade do Judiciário que ao arrepio dos ditames constitucionais e legais manteve o ex-Presidente Lula detido por horas, com ampla e total divulgação do ato aos meios de comunicação.
3- Da interceptação telefônica entre o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e a então Presidenta Dilma Rousseff:
Em março de 2016, o país ficou atônito com os diálogos divulgados pela mídia, sem qualquer escrúpulo, envolvendo o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva e diversas pessoas, entre elas a Presidenta da República Dilma Rousseff.
A gravação e divulgação da conversa mantida entre a Presidenta da República Dilma Rousseff e o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi um dos maiores atentados a República.
Conforme o próprio Juiz Federal - condutor da denominada operação “Lava Jato” - admitiu, os diálogos entre Dilma e Lula foram gravados quando aquele já havia determinado o fim das interceptações. Na verdade, a Presidenta da República foi vítima de espionagem.
O pior ainda estava por vir. A criminosa divulgação do áudio de conversa da Presidenta da República.
Ressalta-se que nenhum Juiz Estadual ou Federal - idolatrado ou não, herói ou anti-herói, salvador da pátria ou inimigo dela - tem a competência para determinar interceptação contra a Presidenta da República. Por uma razão muito simples: a Constituição da República diz que compete ao Supremo Tribunal Federal processar e julgar, originalmente, nas infrações penais comuns, o Presidente da República (art. 102, I, “b” da CR).
No que diz respeito às gravações de diálogos mantidos pelo ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva e diversas pessoas, verifica-se que as interceptações, medida de natureza invasiva e de caráter excepcional, foram muito, mais muito além dos limites legais. Não se pode olvidar que como qualquer cidadão o ex-presidente goza da presunção de inocência.
Salienta-se, ainda, que o escritório Teixeira, Martins & Advogados, que defende o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, também sofreu com interceptações indevidas, inclusive de conversa entre Cristiano Zanin Martins, advogado do ex-presidente Lula, com o seu cliente Luiz Inácio Lula da Silva.
Não é demais destacar que a Declaração Universal dos Direitos Humanos proclama que: “Ninguém sofrerá intromissões arbitrárias na sua vida privada, na sua família, no seu domicílio ou na sua correspondência, nem ataques à sua honra e reputação. Contra tais intromissões ou ataques toda a pessoa tem direito a proteção da lei” (art. 12) e de igual modo a Constituição da República (art. 5º, X).
4- Conclusão:
É lamentável que em nome da perversa lógica de que “os fins justificam os meios” a afamada Operação “Lava Jato” atropele direitos e garantias fundamentais insculpidos na Constituição da República e em documentos internacionais, tais como o Pacto de Direitos Políticos e Civis, adotado pela ONU.
Ao aclamar o Estado Democrático de Direito que tem como postulado o respeito à dignidade da pessoa humana a Constituição da República consagra os princípios do contraditório, da ampla defesa, da presunção de inocência, do devido processo legal entre outros, não pode, portanto, ser atropelada pela fúria punitiva e pelo combate cego a corrupção. Qualquer que seja a operação e sua finalidade, é imprescindível que os limites ao poder punitivo impostos pela lei e pelo próprio Estado Constitucional não sejam ultrapassados.
Por fim, quando o próprio Estado brasileiro afronta o seu inarredável compromisso como os direitos humanos, só resta recorrer as instâncias internacionais para que seja, afinal, assegurado uma justiça imparcial e que proteja o ser humano contra a violência e o poder punitivo estatal.
Notas e Referências
[1] PRADO, Geraldo. “Entre a imparcialidade e os poderes de instrução no caso Lava Jato: para além da iniciativa probatória do juiz”. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 24, nº 122, agostos, 2016.
[2] PRADO, Geraldo. Entre a imparcialidade e os poderes de instrução no caso Lava Jato... op. cit.
[3] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (Org.). Crítica à teoria geral do direito processual penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
[4] FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. Trad. Ana Paula Zomer Sica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
[5] PRADO, Geraldo Op. cit. p. 129.
[6] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 4ª ed. rev. atual e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.p. 44.
[7] Cf. BADARÓ, op. cit. p. 45.
[8] Art. 260. Se o acusado não atender à intimação para o interrogatório, reconhecimento ou qualquer outro ato que, sem ele, não possa ser realizado, a autoridade poderá mandar conduzi-lo à sua presença.
Parágrafo único. O mandado conterá, além da ordem de condução, os requisitos mencionados no art. 352, no que Ihe for aplicável.
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