A OBVIDADE DA SUSTENTABILIDADE SOCIAL – PARTE II: O FLUXO DA SOCIALIDADE

05/04/2018

Caro leitor e leitora: este texto pretende ampliar as ideias propostas na coluna publicada em 22/03 e intitulada “A Obviedade da Sustentabilidade Social”. Naquela oportunidade, deixou-se claro que os fundamentos de uma Sustentabilidade social “[...] não ignoram a barbárie, a ‘parte do diabo’ que existe em nós, as suas características biopsíquicas, especialmente naquilo que constitui a “consciência coletiva”, mas os têm como seu ponto de partida para entender as “obviedades” sociais de nosso tempo. A partir de um exercício de categoria e conceito operacional, pode-se determinar que Sustentabilidade social é a adequação homeostática que se manifesta pela interação entre as diferentes microestruturas sociais e ratificam ou modificam a função coercitiva das macroestruturas sociais no decorrer do tempo e dos espaços”.

O primeiro passo para se falar em uma Sustentabilidade social é reconhecer que a existência da vida é composta por uma multiplicidade de diversidades, de distinções, de particularidades, ao qual aqui será nomeada como indivíduo. Essa condição implica no reconhecimento do Alter pelo Ego, deixando de lado a perspectiva de que o Outro é um inimigo e deve ser apartado da convivência social. O Outro precisa ser reconhecido e compreendido na sua absoluta diferença, pois a própria teia da vida é constituída, se desenvolve e se modifica a partir das diferenças.

Quando uma coletividade de indivíduos, cada um com suas particularidades se reúne - na perspectiva de criar uma comunidade que convive socialmente - é possível verificar que em determinados momentos existem pontos de convergência, seja no comportamento ou nas crenças desses indivíduos, fazendo com que exsurja uma identidade a partir das diferenças.

Nos primeiros agrupamentos humanos, essa identidade se construiu, principalmente, em cima de comportamentos morais e crenças religiosas, determinando funções sociais semelhantes aos indivíduos, sem uma divisão de trabalho social, além do estabelecimento de um mecanismo coercitivo que atua de forma imediata, violenta e punitiva. Trata-se da ideia de solidariedade mecânica,[1] desenvolvida por Durkheim, em sua obra “Da Divisão do Trabalho Social”.

A solidariedade mecânica é o que mantém coesa uma sociedade simples, justamente pelo fato dos mecanismos de inibição de desvio comportamental social serem fundados nas crenças religiosas e na moral desta determinada sociedade. A inibição por meio do constrangimento moral acontece por meio de determinado comportamento ser considerado inadequado, desviante ou contra os princípios de uma comunidade. O indivíduo que age contrariamente à moral social seria excluído da convivência. Já a utilização da inibição do desvio comportamental social por meio da religião funda-se no fato na existência de um Ser Superior que pune aqueles que desvirtuam os mandamentos religiosos da comunidade. A sua existência determina não apenas o eixo gravitacional da ordem social, mas o seu próprio desenho, sem a possibilidade de mobilidade de ascensão, ou seja, se Deus quer que alguém seja servo, esse será o seu destino.  

Não obstante, é nas sociedades de Solidariedade Mecânica que se verifica a existência do “crime”. As características comuns a todos os crimes, que são ou foram reconhecidos nessa condição: 1) o crime ofende sentimentos que se encontram todos os indivíduos normais de determinada sociedade; 2) esses sentimentos são fortes; e 3) define-se a conduta proibida para a vida social. Dessa forma, o crime é um atentado aos estados fortes e definidos da consciência coletiva.[2]

Dessa forma, a solidariedade mecânica mantém coesa agrupamentos de pessoas que se agrupam por similitudes, as quais determinará os modos de ação, de integração como grupos sociais. Nesse caso, a manutenção da socialidade ocorre por meio da coerção.   

A partir da diversidade de grupos sociais, a complexidade de determinada sociedade aumenta e percebe uma diferenciação social a partir destes grupos. Cada um destes grupos possui características e particularidades próprias, orientações morais, religiosas e culturais próprias, sendo, portanto, insustentável manter coesa uma multiplicidade de grupos sociais apenas a partir de uma orientação moral ou religiosa. Por esse motivo, inicia-se o processo de solidariedade orgânica, característica de sociedades modernas e complexas, onde se verifica a condensação das convivências das diferenças por meio de uma coesão orientada por padrões externos aos sentimentos comuns.

O que significa essa condensação de convivência? Quando se fala em solidariedade orgânica significa que as sociedades complexas (em relação às sociedades menos desenvolvidas, coesas por solidariedade mecânica), onde as funções dos indivíduos são especializadas e interdependentes[3], verifica-se uma solidariedade orgânica. No entanto, vamos além de Durkheim. Sociedades complexas, coesas por solidariedade orgânica, ainda não correspondem à Sociedade que se observa, nem à ideia de Sustentabilidade social que é necessária para sua compreensão.

Sociedades de solidariedade orgânica são os pontos de origem das microestruturas sociais. O que acontece é que nas sociedades complexas de Durkheim aconteceria uma segunda construção de identidade, já que os diferentes grupos sociais, como acontece com os indivíduos, encontram pontos de similitude entre suas características. No entanto, o que deve se ressaltar aqui é que não se trata da replicação de uma solidariedade mecânica velada porque os agrupamentos coesos por solidariedade mecânica utilizam da Moral e da Religião para inibir os comportamentos sociais divergentes, algo que não acontece com os grupos sociais mais complexos.

Para a existência de microestruturas sociais, é necessária a existência do reconhecimento de Alteridade, que concretiza o respeito à diferença dos grupos e conhece o Outro como correlato necessário para o seu desenvolvimento. Ademais, se não houvesse o reconhecimento do Outro e o respeito à diferença, seria possível verificar apenas a consolidação da solidariedade mecânica.

O cotidiano é o locus mais apropriado para se observar o fluxo da socialidade. Trata-se de um movimento silencioso, anódino, com vontade e autonomia própria. Não depende de nossa vontade para que algo aconteça ou deixe de acontecer. Na medida em que as relações humanas se formam e ocorrem, tem-se a formação de canais, os quais permitem o fluxo continuo da socialidade. Muito semelhante nos organismos vivos pelos vasos capilares.

Nesse caso, a intensidade das diferentes redes de relações sociais permite a condensação de grupos sociais (sociedade de solidariedade orgânica). Inicia-se, nesse momento, a formação das microestruturas sociais, cuja existência é necessária para que não haja apenas identidade (aspecto individual), mas a identificação de todos numa consciência coletiva. Essa é a condição na qual favorece a própria diferenciação social.

A intensidade dos fluxos de socialidades que percorrem os canais das microestruturas sociais permite ao cotidiano sofrer várias metamorfoses no decorrer do tempo e representar a(s) face(s) de seu próprio tempo. Esse processo no qual as microestruturas sociais se estabelecem pelas relações humanas no cotidiano é chamado de homeostase social, ou seja, em um primeiro momento, trata-se da manutenção do reconhecimento da Alteridade e do respeito às diferenças. Quando há o encontro do Alter com o Ego, os canais de transmissão e fluxo da socialidade se tornam “de carne e osso”. 

Após a condensação das relações cotidianas com respeito às diferenças e reconhecimento do Alter, verifica-se um processo de diferenciação social. Essa condição ocorre porque somente é possível identificar a diferenciação após a estabilização das relações cotidianas, e, nessa linha de pensamento, a diferença não pode mais ser encarada como o inimigo a ser eliminado da vida cotidiana, mas uma necessidade de construção e manutenção da realidade do dia-a-dia. Por esse motivo, quando há um autismo, uma cegueira persistente em relação ao diferente, não se pode falar em diferenciação, mas apenas em homogeneização dos comportamentos, o que favorece um retorno às formas de solidariedade mecânica. Dessa forma, apenas com a condensação da necessidade da diferença no âmbito cotidiano é que é possível se falar em diferenciação social.

A partir do intenso processo de diferenciação, surgem macroestruturas sociais especializadas, como, por exemplo, o Direito, que possibilita uma coesão das microestruturas a partir de uma coerção jurídica por meio da coerção física; a Moral, agora ampliada, busca abarcar valores comuns às microestruturas, e portanto, exerce coerção por meio da aplicação de valores; a Economia, que opera com uma lógica de custo/benefício, exerce coerção contra aqueles que se negam a seguir o primado do “possuir” – ou seja, a Economia divide entre possuir e não possuir, exercendo coerção contra aqueles que não possuem; a Política, que opera sob uma lógica de governo e oposição, busca a manutenção do poder dentro desta própria macroestrutura, onde a coerção é exercida por aqueles que têm poder contra aqueles que não têm; e, por último, a Religião, que em pouco se manteve alterada ao longo do processo de desenvolvimento social, continua exercendo coerção contra aqueles que atentam aos primados dos dogmas religiosos, embora, não da maneira fervorosa com que fez em tempos passados.

As principais macroestruturas que podem ser verificadas, portanto, são: Direito, Moral, Economia, Política e Religião. Cada uma destas estruturas superiores é independente, mas atuam de forma interligada, conexas. A partir dessa desse cenário, pode-se afirmar que algo que é moralmente condenável pode não ser juridicamente condenável, ou algo que é politicamente correto pode ser economicamente condenável, ou vice-versa. Cada uma destas macroestruturas faz uma leitura própria das relações cotidianas, a qual pode não corresponder, necessariamente, à leitura exercida por outra macroestrutura. As funções que as macroestruturas exercem sobre as microestruturas são funções de coerção.

É por isso que uma Sustentabilidade social só pode ser concebida como adequação homeostática que se manifesta pela interação entre as diferentes microestruturas sociais e ratificam ou modificam a função coercitiva das macroestruturas sociais no decorrer do tempo e dos espaços”. O que denota esse conceito operacional? Significa que microestruturas estabelecem os canais de fluxo da socialidade no nosso cotidiano, gera-se a diferenciação social. Quanto maior a intensidade diferenciação, maior será a origem das macroestruturas que exercem funções de coerção sobre as microestruturas, atualizando as microestruturas em relação às macroestruturas, que vão originar novas relações cotidianas as quais atualizam as diferenciações sociais e as funções das macroestruturas, que, novamente, vão exercer coerção sobre as microestruturas, atualizando-as, em uma espiral ascendente ao longo do desenvolvimento social.

A conjugação do conceito operacional proposto para Sustentabilidade social e as explicações sobre micro e macroestruturas sociais pode ser visualizada pelo seguinte esquema:

A Sustentabilidade social, dentro dos argumentos propostos, somente é verificada após o exercício da coerção das microestruturas pelas macroestruturas, permitindo a atualização constante de cada um dos âmbitos sociais. Somente se mantém uma homeostase sustentável no âmbito da Sociedade Pós-Moderna quando existe uma interação que vai das microestruturas às macroestruturas, que podem ratificar ou modificar a função coercitiva que as macroestruturas exercem, ao longo do desenvolvimento intersubjetivo num determinado tempo e espaço.

 

[1] DURKHEIM, Émile. Capítulo II: Solidariedade Mecânica ou por Similitudes. In: Da Divisão do Trabalho Social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

[2] DURKHEIM, Émile. Da Divisão do Trabalho Social. p. 39.

[3] DURKHEIM, Émile. Capítulo III: A Solidariedade devida à Divisão do Trabalho ou Orgânica. In: Da Divisão do Trabalho Social. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

 

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