A NOVA SÚMULA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA E O PRINCÍPIO DA CORRELAÇÃO

04/03/2020

A Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça aprovou o Enunciado 641, sumulando-se o entendimento que “a portaria de instauração do processo administrativo disciplinar prescinde da exposição detalhada dos fatos a serem apurados.”[1] Este enunciado é inconcebivelmente inconstitucional, pois impossibilita o exercício pleno do contraditório, indispensável também no processo administrativo disciplinar, de caráter claramente sancionador.

A mácula ao contraditório reside, justamente, na violação flagrante ao princípio da correlação entre a acusação e a sentença, aplicável inteiramente ao processo administrativo disciplinar. Como se sabe, os fatos delineados em uma peça inicial de natureza acusatória (ainda que se trate de uma portaria instauradora de um processo administrativo disciplinar) limitam o julgador em seu pronunciamento final que, por sua vez, deve se circunscrever à narração fática feita na peça incoativa, sobre a qual o processado exercitou o seu amplo direito de defesa e o contraditório. A consonância que a decisão final deve guardar com o fato narrado é medida que obstaculiza a ocorrência de julgamentos extra petita ou ultra petita, a impedir qualquer desobediência ao sistema acusatório, cujos princípios e regras devem ser observados também em tais processos sancionatórios.

Conforme a lição do Professor Tourinho Filho, “iniciada a ação, quer no cível, quer no penal, fixam-se os contornos da res in judicio deducta, de sorte que o Juiz deve pronunciar-se sobre aquilo que lhe foi pedido, que foi exposto na inicial pela parte. Daí se segue que ao juiz não se permite pronunciar-se, senão sobre o pedido e nos limites do pedido do autor e sobre as exceções e no limite das exceções deduzidas pelo réu. Quer dizer então que, do princípio do ne procedat ex officio, decorre uma regra muito importante: o Juiz não pode dar mais do que foi pedido, não pode decidir sobre o que não foi solicitado.”[2]

Este princípio da correlação encontra fundamento no próprio sistema acusatório, tratando-se, na síntese precisa de Diogo Malan, da “obrigatória vinculação do órgão jurisdicional ao conteúdo da imputação durante a prolação de sentença de mérito, que deve apreciar a íntegra do objeto processual e nada além dele, por força do princípio da ação. Sentença incongruente, por conseguinte, é sentença que desrespeita a vinculação temática do juiz.[3]

O próprio Malan, estudando o direito comparado, cita o art. 516, 1, do Codice di Procedura Penale: “Se nel corso dell'istruzione dibattimentale il fatto risulta diverso da come è descritto nel decreto che dispone il giudizio, e non appartiene alla competenza di un giudice superiore, il pubblico ministero modifica l'imputazione e procede alla relativa contestazione.[4]

Também no direito comparado, veja-se este julgado da Câmara Nacional de Cassação Penal, na Argentina: “Falta de identidad fáctica entre el hecho por el cual fue condenada la imputada y el enunciado en la acusación que le fuera intimada. Debido proceso. Límites en la facultad de modificar la calificación jurídica asignada al hecho en el acto acusador. De la transcripción de las partes pertinentes del requerimiento fiscal de elevación a juicio y de la sentencia condenatoria surge que la identidad fáctica a la que hace referencia el principio de congruencia ha sido infringida.[5]

Analisando a mesma questão, Gustavo Badaró afirma que, “mais do que simples garantia de defesa, a correlação entre acusação e sentença visa a preservar o próprio exercício do contraditório, que impõe o limite da imutabilidade do objeto do processo.[6]

Observar-se o princípio da correlação (seja no processo penal, seja em um processo administrativo disciplinar, pouco importa!) é uma exigência do devido processo constitucional, do qual decorre, evidentemente, a exigência do contraditório.

Este princípio proíbe ao julgador “cambiar los hechos de la causa por los cuales el imputado fue concretamente acusado, entendidos en el sentido de acontecimiento histórico, con todos  los elementos y circunstancias que de alguna manera puedan influir en el debate.” [7]            

Sobre a necessidade de observância do contraditório, desde um ponto de vista constitucional, veja-se a lição de Willis Santiago Guerra Filho: “não há processo sem respeito efetivo do contraditório, o que nos faz associar o princípio (do contraditório) a um princípio informativo, precisamente aquele político, que garante a plenitude do acesso ao Judiciário. Importante, também, é perceber no princípio do contraditório mais do que um princípio (objetivo) de organização do processo, judicial ou administrativo – e, logo, um princípio de organização de um instrumento de atuação do Estado, ou seja, um princípio de organização do Estado, um direito. Trata-se de um verdadeiro direito fundamental processual, donde se poder falar, com propriedade em direito ao contraditório, ou Anspruch auf rechliches Gehör, como fazem os alemães.[8]    

Observa-se, mutatis mutandis, que esta matéria relativa à necessidade de observância da ampla defesa e do contraditório nos processos administrativos disciplinares foi enfrentada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Ordinário em Mandado de Segurança nº. 28172, quando se decidiu que a garantia constitucional à duração razoável do processo também deve também ser assegurada no âmbito administrativo. Em seu voto, a relatora, ministra Cármen Lúcia, observou que se deve aplicar ao processo administrativo disciplinar o art. 5º., LXXVIII, da Constituição Federal, pois “a razoável duração do processo vale judicial e administrativamente.

Aliás, não foi a primeira vez que a Suprema Corte adotou este entendimento; fê-lo também no julgamento do Mandado de Segurança nº. 27070: “a garantia constitucional do direito à ampla defesa exige que seja dada ao acusado – ou a qualquer pessoa cujo patrimônio jurídico e moral possa ser afetado por uma decisão administrativa – a possibilidade de apresentação de defesa prévia, pois a ampla defesa só tem sentido em sua plenitude se for produzida previamente à decisão, para que possa ser conhecida e efetivamente considerada pela autoridade competente para decidir.

Lembro, ainda, que o ministro Teori Zavascki já afirmava que o processo administrativo disciplinar “sempre envolve questões constitucionais devido ao sistema penal vigente no Brasil, pois o controle da administração pública foi detalhadamente disciplinado pela Constituição Federal, quando elencou os regimes de responsabilidade por improbidade administrativa, pela indevida aplicação de recursos públicos e pelo processo administrativo disciplinar.”

Segundo ele, “esses três regimes se complementam na tutela da gestão de recursos públicos, humanos e financeiros, ou de alguma forma patrocinadas pela administração pública, e exprimem um conteúdo sancionatório. As diferenças entre os três regimes definem o sujeito atingido, a gravidade das penalidades previstas e a autoridade competente para julgar as infrações, explicando, ainda, que a graduação da gravidade das reprimendas tem o seu ápice na suspensão de direitos políticos, na improbidade administrativa, e na demissão do servidor ou empregado público, no caso do processo administrativo disciplinar. O poder sancionatório disciplinar é o único regime que permite que a própria administração aplique certas sanções graves. Essa escolha do legislador foi intencional para reforçar o poder e dever de autotutela da administração, investindo-a dos necessários meios para superar os desajustes de seus próprios integrantes.

Assim, “pela gravidade das sanções decorrentes do exercício do poder disciplinar, muito se tem debatido sobre a possibilidade de incorporação das garantias processuais penais para o processo administrativo disciplinar, sendo que o principal desafio nessa questão é definir quais garantias processuais penais e qual intensidade elas podem adquirir no campo do processo administrativo disciplinar.[9] 

Portanto, para concluir, entendo que, ao contrário do que foi agora sumulado, a portaria de instauração do processo administrativo disciplinar não prescinde da exposição detalhada dos fatos a serem apurados.

           

Notas e Referências

[1] http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/Primeira-Secao-aprova-sumulas-sobre-beneficios-fiscais-e-processo-administrativo-disciplinar.aspx, acessado em 28 de fevereiro de 2020.

[2] FILHO, Tourinho, Processo Penal, Volume 1, São Paulo: Saraiva, 1997, 19ª. edição, p. 53.

[3] MALAN, Diogo Rudge, A Sentença Incongruente no Processo Penal, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, páginas 131 e 132.

[4] Obra citada, nota 346, p. 153.

[5] Decisão proferida no dia 04 de novembro do ano de 2004, na Sala II da Câmara Nacional de Cassação de Buenos Aires, integrada pelos magistrados Pedro David (Presidente), Raúl Madueño, Juan Fégoli e Gustavo Alterini, no julgamento de um recurso interposto para impugnar a sentença proferida na Causa nº. 5298.

[6] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy, Correlação entre Acusação e Sentença, São Paulo: Revista dos Tribunais, 3ª. edição, 2013, p. 231.

[7] LANGEVIN, Julián Horacio, Nuevas Formulaciones del Principio de Congruencia: Correlación entre Acusación, Defensa y Sentencia, Buenos Aires: Fabián J. Di Plácido Editor, 2008, p. 189.

[8] GUERRA FILHO, Willis Santiago, Introdução ao Direito Processual Constitucional, São Paulo: Síntese, 1999, p. 27.

[9] http://www.conjur.com.br/2015-jun-20/processo-administrativo-gera-debate-garantias-zavascki, acessado em 20 de junho de 2015.

 

Imagem Ilustrativa do Post: hammer, books, law court // Foto de: succo // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/en/hammer-books-law-court-lawyer-620011/

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura