Coluna Substractum
Inicialmente, destaque-se que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 prevê, dentre os direitos e garantias individuais do art. 5º, que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente e à família do preso ou à pessoa por ele indicada.”[1]
Sempre se discutiu na doutrina e no âmbito dos Tribunais qual seria a interpretação a ser dada à expressão “imediatamente” inserida no mencionado dispositivo legal. O Estatuto Processual Penal prevê, em seu art. 306, §1º, com a redação dada pela Lei 12.403/2011, que tal prazo é de 24 horas para encaminhamento do auto de prisão em flagrante ao juiz competente.
A partir de tal previsão, já se chegou a sustentar a ausência de previsão legal para a instituição e realização das audiências de custódia, eis que bastaria a remessa do APF ao juízo devidamente investido de jurisdição e competente a fim de analisar a legalidade da prisão em flagrante como determina o Código de Processo Penal. Enviado o APF, a determinação da Constituição estaria cumprida.
Contudo, a posição majoritária na doutrina foi fixada no sentido de que inexiste ilegalidade na realização das audiências de custódia, notadamente sob o fundamento da supralegalidade dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos.
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 466.343/SP[2] e no HC 87.585/TO[3], firmou o entendimento segundo o qual os Tratados Internacionais incorporados no ordenamento jurídico sem a observância da forma insculpida no art. 5º, §3º da Carta Magna terão status de norma supralegal. Em outras palavras, tais tratados estariam abaixo da Constituição, mas acima da legislação ordinária.
Sob esta ótica e de acordo com o entendimento firmado pela Suprema Corte, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) teria sido recebida no ordenamento jurídico brasileiro com o status de norma supralegal, já que promulgada através do Decreto nº 678/1992.
Por sua vez, o Pacto de São José da Costa Rica prevê, no item 5 do art. 7º traz a seguinte previsão:
Toda pessoa presa, detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada por lei a exercer funções judiciais e tem o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo. Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.
Desta forma, com base na previsão da CADH, prevaleceu o entendimento acerca da legalidade das audiências de custódia. Com efeito, a matéria chegou a ser levada à Suprema Corte que, no julgamento dos autos da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – nº 347, determinou, em 09/09/2015, que todos os Tribunais passassem a realizar as referidas audiências, concedendo-se, em parte, a medida cautelar pleiteada na inicial:
“O Tribunal, apreciando os pedidos de medida cautelar formulados na inicial, por maioria e nos termos do voto do Ministro Marco Aurélio (Relator), deferiu a cautelar em relação à alínea “b”, para determinar aos juízes e tribunais que, observados os artigos 9.3 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos e 7.5 da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, realizem, em até noventa dias, audiências de custódia, viabilizando o comparecimento do preso perante a autoridade judiciária no prazo máximo de 24 horas, contados do momento da prisão, com a ressalva do voto da Ministra Rosa Weber, que acompanhava o Relator, mas com a observância dos prazos fixados pelo CNJ, vencidos, em menor extensão, os Ministros Teori Zavascki e Roberto Barroso, que delegavam ao CNJ a regulamentação sobre o prazo da realização das audiências de custódia; (...)”
Com o início do movimento para instituição e realização das audiências de custódia, passou-se a invocar a nulidade de decisões judiciais que converteram a prisão em flagrante em preventiva, sob a justificativa de que não teria sido realizada a referida audiência.
A instituição das audiências de custódia é tema dotado de complexidade, pois envolve não só o Poder Judiciário, mas também outros órgãos, como Ministério Público, Defensoria Pública, OAB e Secretarias Estaduais de Segurança Pública. Além de todos esses órgãos, envolve também outras questões como o transporte de custodiados, logística de espaço para as audiências e outras questões administrativas, de forma que nem todas as comarcas possuem, ainda, estruturas para a realização da solenidade.
Com efeito, o Superior Tribunal de Justiça já sedimentou sua jurisprudência pela ausência de nulidade pela não realização da audiência de custódia, quando observados os demais ditames legais e assegurada as garantias legais e constitucionais, tanto em julgados da 5ª Turma (RHC 94986 / BA)[4] quanto da 6ª Turma (AgRg no RHC 89192 / AL)[5].
Ultrapassadas tais questões, atualmente pode ser afirmado que as audiências de custódia constituem grande avanço na prestação jurisdicional e reforça os direitos e garantias individuais da pessoa presa, haja vista que o magistrado possui contato direto e imediato com a pessoa presa em flagrante, podendo analisar aspectos pessoais que não seriam visualizados com a mera leitura do APF.
A partir da determinação do STF, o Conselho Nacional de Justiça publicou a Resolução 213/2015 que dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa e 24 horas ao juízo competente. No Estado do Rio de Janeiro existem três centrais de custódia que abrangem todas as comarcas do Estado, sendo a central com sede na Capital a de maior abrangência territorial, centrais estas reguladas e instituídas pela Resolução TJ/OE/RJ nº 29/2015, DJERJ DE 26.08.2015, com as alterações promovidas pela Resolução TJ/OE/RJ nº 32/2015.
Imperioso consignar que as audiências de custódia não se prestam para averiguação dos fatos relativos ao crime, sob pena de se tornarem uma nova fase do processo penal. Neste sentido, o art. 8º, VIII da Resolução 213/CNJ, que estabelece que o juiz deve se abster de efetuar perguntas com o fim de produzir prova para a investigação ou para o processo penal. Ou seja, não se pode questionar ao custodiado sobre os fatos relativos à sua prisão, eis que dizem respeito ao próprio delito em si, de forma que a competência recairá sobre o juiz natural, responsável pelo processamento e julgamento da ação penal.
Antes do início da audiência, deve ser garantido o direito ao custodiado de se entrevistar com seu advogado ou defensor público, nos termos do art. 6º da Resolução 213 e em prestígio à ampla defesa.
Iniciada a audiência, será esclarecido ao custodiado acerca da própria audiência de custódia e passará, o magistrado, a entrevistar o mesmo. O juiz da custódia deve se limitar a elaborar perguntas acerca dos dados pessoais do(a) custodiado(a), bem como se já foi preso ou processado criminalmente por outros delitos, se possui problemas de saúde, se sofreu agressões por parte dos agentes da lei quando do ato prisional, etc.
Em casos de constatação da existência de tortura por parte dos agentes da lei que efetuaram a prisão em flagrante – ou após a mesma, inclusive – deve o juiz oficiar as autoridades competentes com o fim de averiguarem a procedência das informações para, se for o caso, adotarem as medidas legais cabíveis.
Realizada a entrevista, abre-se a palavra ao membro do Ministério Público e ao Defensor Público ou advogado. Feitas as considerações de ambas as partes, o magistrado passará a decidir, na própria audiência e fundamentadamente, acerca da necessidade ou não da manutenção da prisão.
Nesta parte, o juízo poderá adotar três posturas, em consonância com o disposto no art. 310 do Estatuto Processual Penal: relaxar a prisão ilegal; homologar a prisão em flagrante e convertê-la em prisão preventiva; ou conceder a liberdade provisória com ou sem a fixação de medidas cautelares, na forma do art. 319 do CPP.
A grande mudança de perspectiva do art. 310 do CPP é que com a realização da audiência de custódia, o juízo terá mais elementos para decidir acerca da necessidade ou não da prisão, tendo contato imediato com o preso, situação que não seria possível com a mera leitura do APF. Com o problema da superlotação do sistema carcerário, a prisão preventiva deve ser utilizada tão somente quando necessária e quando preenchidos os requisitos dos arts. 312 e 313 do CPP.
Uma das grandes vantagens das audiências de custódia é que com o contato pessoal com o custodiado, permite-se ao juízo o encaminhamento do preso para a rede de assistência social e atendimento médico quando necessário, a adoção de atitudes contra agressões de eventuais agentes da lei, situações estas difíceis de se identificar com a mera leitura do APF.
O contato direto entre o magistrado e o custodiado permitirá uma maior análise do indivíduo em si e da real necessidade de encarceramento cautelar deste, tornando as decisões mais humanas e individualizadas em face de cada caso concreto sob análise.
Por fim, diversas questões vêm sendo debatidas na doutrina, gerando alguns questionamentos e controvérsias sobre a matéria, não havendo, ainda, entendimento sedimentado sobre inúmeras discussões. Trata-se de tema novo, ainda em evolução e passível de diversas divergências, mas deixaremos tais análises para um outro estudo futuro e mais aprofundado.
Notas e Referências:
BADARÓ, G. H. R. I. Audiência de custódia no Rio de Janeiro tem três aspectos preocupantes. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2015-set-09/gustavo-badaro-audiencia-custodia-rj-pontos-preocupantes. Acesso em 20 de abril de 2018.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Resolução 213/2015. Disponível em.: http://www.cnj.jus.br/busca-atos-adm?documento=3059. Acesso em 19 de abril de 2018.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 33. ed. rev. Rio de Janeiro: Saraiva. 2017.
PACELLI DE OLIVEIRA, Eugenio. Curso de Processo Penal. Rio de Janeiro: Lumen Iuris.12 ed. rev. atual. 2009.
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Resolução 29/2015. Disponível em http://webfarm.tjrj.jus.br/biblioteca/asp/textos_main.asp?codigo=189337&desc=ti&servidor=1&iIdioma=0. Acesso em 21 de abril de 2018.
[1] Art. 5º, LXII da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988.
[2] PRISÃO CIVIL. Depósito. Depositário infiel. Alienação fiduciária. Decretação da medida coercitiva. Inadmissibilidade absoluta. Insubsistência da previsão constitucional e das normas subalternas. Interpretação do art. 5º, inc. LXVII e §§ 1º, 2º e 3º, da CF, à luz do art. 7º, § 7, da Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica). Recurso improvido. Julgamento conjunto do RE nº 349.703 e dos HCs nº 87.585 e nº 92.566. É ilícita a prisão civil de depositário infiel, qualquer que seja a modalidade do depósito. (Plenário. Min. Rel. Cezar Peluso. Dju 03/12/2008)
[3] DEPOSITÁRIO INFIEL – PRISÃO. A subscrição pelo Brasil do Pacto de São José da Costa Rica, limitando a prisão civil por dívida ao descumprimento inescusável de prestação alimentícia, implicou a derrogação das normas estritamente legais referentes à prisão do depositário infiel. (Plenário. Min. Rel. Marco Aureli. Dju. 03/12/2008).
[4] PROCESSUAL PENAL. RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ROUBO MAJORADO. AUSÊNCIA DE AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. SUPERVENIÊNCIA DE DECRETAÇÃO DA PREVENTIVA. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. PRISÃO PREVENTIVA. ALEGADA AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DO DECRETO PRISIONAL. SEGREGAÇÃO CAUTELAR DEVIDAMENTE FUNDAMENTADA NA GARANTIA DA ORDEM PÚBLICA. MODUS OPERANDI. RECURSO ORDINÁRIO DESPROVIDO. I - Não se vislumbra ilegalidade passível de concessão da ordem de ofício quando não realizada a audiência de custódia, uma vez que a jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que eventual nulidade do flagrante fica superada com a superveniência do decreto de prisão preventiva (precedentes). II - A segregação cautelar deve ser considerada exceção, já que tal medida constritiva só se justifica caso demonstrada sua real indispensabilidade para assegurar a ordem pública, a instrução criminal ou a aplicação da lei penal, ex vi do artigo 312 do Código de Processo Penal. (...) (. Quinta Turma. Min. Rel. FELIX FISCHER. Dju. 01/03/2018)
[5] PROCESSO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ESTUPRO. AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA. NÃO REALIZAÇÃO. NULIDADE NÃO CONFIGURADA. PRISÃO PREVENTIVA. FORMAÇÃO DE NOVO TÍTULO. 1. A Sexta Turma desta Corte firmou orientação de que "a não realização de audiência de custódia não é suficiente, por si só, para ensejar a nulidade da prisão preventiva, quando evidenciada a observância das garantias processuais e constitucionais" (AgRg no HC n. 353.887/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 19/5/2016, DJe 7/6/2016). De mais a mais, a conversão da custódia em preventiva constitui novo título a justificar a privação da liberdade, ficando, com isso, superada eventual nulidade da prisão em flagrante. 2. Agravo regimental desprovido. (Min. Rel. Ministro ANTONIO SALDANHA PALHEIRO. Dju. 05/04/2018).
Imagem Ilustrativa do Post: Human "I" in Closeup // Foto de: Nithi Anand // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/nithiclicks/16387876225
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode