A noção de confiança no direito – Por Mauricio Mota

04/10/2017

A confiança é definida em Luhmann como um mecanismo em que os atores sociais reduzem a complexidade interna do seu sistema de interação. Isto pode ocorrer pela adoção de expectativas específicas sobre o comportamento futuro de outros pela seleção de possibilidades, podendo basear-se em processos históricos, em características compartilhadas ou em mecanismos institucionais. Luhmann destaca três tipos de confiança: a processual, a baseada em características e a institucional.

A confiança processual está ligada ao passado ou a trocas realizadas anteriormente. É um processo cumulativo e incremental de construção da confiança por meio da acumulação gradual de conhecimento, direto ou indireto, sobre o outro, como a reputação, a marca e a garantia de qualidade. Pressupõe um grau de estabilidade e a existência de uma baixa troca de firmas e outras instituições de mercado, sendo esse tipo de confiança deliberadamente desenvolvido pelas empresas.

A confiança baseada em características surge da similaridade social e assume congruência social entre o que confia e o depositário da confiança, por pertencer ao mesmo grupo social ou à mesma comunidade. Compartilham uma mesma religião, status ético ou background familiar, que garante a construção de um mundo em comum. Tal confiança baseia-se na atribuição de valores e não pode ser deliberadamente criada.

A confiança institucional parte da consideração de que a confiança não pode ser somente gerada pela familiaridade interpessoal. Os atores organizacionais podem não possuir características pessoais em comum ou uma história que garanta trocas futuras, mas mesmo assim deve haver uma forma impessoal de confiança. A confiança institucional é formada pela estrutura social formal, em que os mecanismos legais tendem a reduzir os riscos de confiança e tornam mais fácil sua existência, podendo ser deliberadamente produzida com a consideração de que seus mecanismos necessitam ser legitimados socialmente para serem efetivos[1].

É essa confiança institucional a que interessa ao direito e que recebe tutela jurídica. As relações sociais são inteiramente perpassadas por interações de confiança que, sedimentadas por valores, possibilitam as trocas e os acordos. Nesse aspecto, Alain Peyrefitte[2] desenvolve a tese de que a relação de confiança é o elemento primordial para explicar o desenvolvimento econômico e social das diversas nações:

“O elo social mais forte e mais fecundo [de uma sociedade] é aquele que tem por base a confiança recíproca – entre um homem e uma mulher, entre os pais e seus filhos, entre o chefe os homens que ele conduz, entre cidadãos de uma mesma pátria, entre o doente e seu médico, entre os alunos e o professor, entre um prestamista e um prestatário, entre o indivíduo empreendedor e seus comanditários – enquanto que, inversamente, a desconfiança esteriliza.

Decerto é temerário propor uma chave para a interpretação de fenômenos tão universais e essenciais como o desenvolvimento e o subdesenvolvimento; e mais temerário ainda arriscar-se multiplicando as abordagens que as diversas disciplinas oferecem, forçando mesmo suas fronteiras.

Foi o conhecimento do Terceiro Mundo que me convenceu de que o capital e o trabalho – considerados pelos teóricos do liberalismo tradicional, assim como pelos teóricos do socialismo, como os fatores do desenvolvimento econômico – eram na realidade fatores secundários; e que o fator principal, que com um sinal de mais ou com um sinal de menos afetava esses dois fatores clássicos, era um terceiro fator, que há vinte anos chamei de terceiro fator imaterial, em outras palavras, o fator cultural. (…)

Um terreno pareceu-me fecundo nesse sentido, o da história econômica do Ocidente no decorrer destes quatro últimos séculos. É um terreno firme, sobre o qual hoje dispomos de grande número de informações incontestáveis. Foi de fato nesse período, e em nenhum outro, em algumas sociedades da Europa, e não em outras, que nasceu o desenvolvimento.

Qual foi o fator de desencadeamento, o primum movens, que fez passarem – na Holanda, depois na Inglaterra, depois na Europa do Norte, depois em toda a Europa ocidental – sociedade tradicionais, sempre ameaçadas pelas epidemias, pela fome e por choques sangrentos, ao estado de sociedades desenvolvidas?

Quanto mais se estuda as origens da Revolução econômica, mais se duvida de que trata-se de uma ruptura brusca, resultante de uma causa única e que pode ser datada com precisão. E os historiadores estão sempre recuando o aparecimento do fenômeno. Sem dúvida é nos três ou quatro últimos séculos que é preciso procurar a prova de toda teorização do desenvolvimento.

Examinando a cristandade ocidental no século XVI, somos levados a concluir que havia uma quase-igualdade de chances, com um evidente avanço no sul. Nada poderia induzir a prever, na época, o impulso das nações que aderirão a uma das reformas protestantes, nem o declínio relativo, ou até absoluto, das nações que permanecerão romanas.

Ora, a partir do final do século XVI, a cristandade ocidental torna-se o teatro de uma distorção econômica. A Europa nórdica substitui a Europa latina como foco de inovação e de modernidade.

Contudo, é redutivo demais, para não dizer simplista demais, afirmar que a reforma protestante seria como uma galinha dos ovos de ouro, e que deteria em si mesma o segredo do desenvolvimento econômico, social, político e cultural. A divisão entre uma Europa romana, que entra em declínio econômico, e uma Europa das Reformas protestantes que toma impulso, reflete menos uma determinação do econômico pelo religioso – ou do religioso pelo econômico – do que a expressão de uma afinidade eletiva entre um comportamento sócio-econômico espontâneo e uma escolha religiosa. Pelo menos é essa a minha conclusão.

A sociedade de desconfiança é uma sociedade temerosa, ganha-perde: uma sociedade na qual a vida em comum é um jogo cujo resultado é nulo, ou até negativo (se tu ganhas eu perco); sociedade propícia à luta de classes, ao mal-viver nacional e internacional, à inveja social, ao fechamento, à agressividade da vigilância mútua. A sociedade de confiança é uma sociedade em expansão, ganha-ganha (se tu ganhas, eu ganho); sociedade de solidariedade, de projeto comum, de abertura, de intercâmbio, de comunicação. Naturalmente, nenhuma sociedade é 100% de confiança ou de desconfiança. Do mesmo modo que uma mulher nunca é 100% feminina, nem um homem 100% masculino: este comporta sempre uma parte de feminilidade, aquela sempre um pouco de virilidade. O que dá o tom é o elemento dominante. (…)

Em todo caso, que essa sociedade de confiança possa um dia estender-se a todas as sociedades e lhes trazer, na diversidade das suas personificações, na unidade da sua inspiração, os benefícios morais e materiais por ela prodigados aos raríssimos povos que souberam realizar essa revolução cultural, a maior da história! Quando a estes, possam eles não se mostrarem nem filhos ingratos nem filhos pródigos, e compreender melhor o porquê do seu sucesso, não para reservar para si o privilégio, mas para dele guardar viva a força exemplar (…).”

A relação entre confiança e desenvolvimento é assim central[3] sendo que a atividade econômica representa uma parte crucial da vida social e se entrelaça com uma grande variedade de normas, regras, obrigações morais e outros hábitos que, juntos, moldam a sociedade. Uma das lições mais importantes que podemos extrair de uma observação da vida econômica é a de que bem-estar de uma nação, bem como a sua capacidade de competir, são condicionados por uma única e sutil característica cultural: o nível de confiança inerente à sociedade em causa[4].

Anthony Giddens, em percuciente trabalho, explica como a confiança torna-se uma relação institucional nas sociedades pós-modernas, ressaltando que se percebem três grandes forças dinâmicas na sociedade contemporânea: 1) a separação do tempo e espaço; 2) a existência de relações sociais em contextos sociais locais, sem que necessariamente haja contato face a face, mediadas pela confiança em meios de intercâmbio como dinheiro ou conhecimento; e 3) a reflexividade institucional, que corresponde à entrada contínua de conhecimento afetando as ações dos indivíduos e grupos, desestabilizando certas formas básicas de relações de confiança e resultando na ampliação da sensação de instabilidade e incerteza.

A separação entre tempo e espaço tende a impedir a formação das bases tradicionais de confiança fundamentadas na família, na amizade e no parentesco. Ao mesmo tempo, os sistemas abstratos tendem a desempenhar papel semelhante ao transferir a confiança rosto no rosto para o sistema legal, o governo e os códigos de conduta, para citar alguns exemplos, fazendo surgir uma situação ambivalente. De um lado os indivíduos depositam confiança em instituições ou mecanismos técnicos avalizados pelo conhecimento científico ou pela tradição e, de outro, assumem uma atitude reservada, intimista, sem abertura para a interação com o outro em relações pessoais. A confiança é referenciada mais pelos sistemas abstratos ou peritos do que pelo especialista.

Já a reflexividade social é baseada na afirmação de que as condições em que vivemos hoje na sociedade são cada vez mais o resultado de nossas próprias ações e, inversamente, nossas ações vivem cada vez mais para administrar ou enfrentar os riscos e oportunidades que nós mesmos criamos. Então, a confiança não é dada apenas pela filiação a uma família ou comunidade, mas também é construída por meio de escolhas.

Assim, a separação entre tempo e espaço, os mecanismos de desencaixe e a reflexividade institucional desestimulam certas formas básicas de relações de confiança dos atributos de contextos locais. Embora a confiança seja propriedade de expectativa de comportamento bilateral, existente entre indivíduos, ela também pode ser estendida para troca entre organizações, uma vez que os relacionamentos interorganizacionais são gerenciados por indivíduos em cada organização. A confiança nas relações interorganizacionais inclui, assim, um conjunto de expectativas entre parceiros com relação ao comportamento dos diversos indivíduos e à satisfação de cada um.[5]

Questão complexa é aquela de saber se a frustração da confiança de outrem é suscetível de conduzir à obrigação de indenizar: existe o risco de excesso, perante o caráter aberto e extenso da proteção negativa da confiança. Há que se verificar, portanto, quais são os contornos da tutela jurídica daquilo que Luhmann define como a confiança institucional.

O regime próprio da responsabilidade pela frustração da confiança e sua articulação com as modalidades comuns de imputação de danos permanece incerto no direito. Aqui, pode assistir-se a uma inflação não apropriada do conceito indenizatório: não há porventura nenhuma delimitação rigorosa nem da base normativa que a desencadeia, nem das respectivas consequências. Há que se balizar isso com precisão.

Na doutrina alemã, a proteção indenizatória da confiança apresenta-se-nos para os casos em que alguém deve responder pelos danos causados por uma declaração sua viciada ou inexata, ou então pela respectiva omissão, como ocorre, por exemplo, em situações de responsabilidade por informações incorretas. Corresponde-lhe uma responsabilidade por declarações (Erklärungshaftung): e a proteção indenizatória da confiança terá por função, antes de mais, tutelar posições jurídicas contra ataques lesivos (Eingriffsschutz) à pessoa ou ao patrimônio alheio, conduzindo à reparação dos danos daí resultantes. Eis, decisivo, o pensamento da confiança, porque este tipo de responsabilidade radica na circunstância de o lesado expor os seus bens, no âmbito do tráfico negocial, à intrusão da outra parte, e, nesse sentido, na atitude de confiar nela. A parte contrária apresentar-se-ia, enfim, onerada com deveres de proteção não subsumíveis à responsabilidade por declarações e responderia pelos danos causados pela sua violação[6].

No entanto, como esclarece Carneiro da Frada, o problema está na ambiguidade do conceito de confiança, do qual tanto se pode exprimir um dado psicológico individual do sujeito como a posição daquele que beneficia, independentemente de um ato de consciência da tutela jurídica de um interesse. A confiança deixa por saber se aquele que, por exemplo, no âmbito de um contrato, sofre um dano no seu restante patrimônio, é protegido porque confiou de fato na correção do comportamento da outra parte ou se é tutelado porque devia poder confiar (figurando-o ou não) em que o outro observaria a conduta exigível. No último caso avulta que parece que o decisivo na qualificação do ato lesivo é o puro e simples desrespeito da conduta violada. A querela entre uma concepção psicológica e um entendimento normativo ou objetivo da confiança reflete o quanto nessa doutrina se mistura o fático e o normativo, deixando-se de distinguir claramente entre causa e efeito da proteção jurídica. Carneiro da Frada,[7] citando Bar, alerta que se corre o risco da argumentação circular: “É lícito confiar porque existe um fundamento para a pretensão, esta nasce, porém, quando se confia”.

Para superar essa aporia, no pensamento jurídico contemporâneo a mera referência à confiança como fundamento indenizatório surge, depois, substituída pelo conceito de relação de confiança (fiduciary relationship): singulariza, dentre as diversas situações de expectativas, aquelas que são de reconhecida relevância para efeito de responsabilidade.

Não obstante, orientações deste gênero prendem-se ainda assim ao pensamento da confiança, e podem mesmo chegar a suprimir a referência à tutela das expectativas. Emerge aqui uma neutral responsabilidade derivada da existência de ligações ou relações especiais (special relationship), base de deveres particulares de conduta capazes de conduzir à responsabilidade quando violados. Estes desenvolvimentos são, porém, uma compreensível tentativa de dar à confiança uma concepção objetivada: não importa o plano individual e psicológico, se o sujeito acreditou em determinada situação, mas averiguar racionalmente quando e até onde podia confiar. Destarte, o cerne da responsabilidade encontra-se nos fatores que decidem, e já não na confiança.

Para este entendimento contribuem evidentemente as dificuldades de prova de um estado de espírito concreto. Entra também em linha de conta, neste domínio, a ambiguidade da experiência dos sujeitos que misturam, passo a passo, confiança e desconfiança: as atitudes de confiança recortam-se antes de mais na conflitualidade; pelo lado inverso, é nos cenários de frustração das expectativas e da desconfiança que a tutela dos convencimentos mais é necessária.

Todos estes motivos implicam a construção da responsabilidade pela confiança em sede, sobretudo, da expectativa de cumprimento de determinados deveres de comportamento a que os sujeitos se teriam de vincular nos relacionamentos, pois os demais deveriam poder contar com a sua observância. Daqui a pergunta: não será mais exato fundamentar a obrigação de indenizar na violação das posições dos sujeitos protegidas por esses deveres, e como situação objetiva de responsabilidade? Não se tratará aqui de simples deveres de proteção direta dos interesses que realmente estão por detrás de uma situação de expectativa?

Este ponto de vista forneceria uma interpretação desligada das ficções aditadas frequentemente às relações de confiança, e que servem por vezes de refúgio à responsabilidade pela frustração de expectativas. Importaria, portanto, substituir a confiança por critérios dogmáticos que atendam às características objetivas da situação interpessoal e às condutas que nela impõe a ordem jurídica.

Contudo, deste modo a confiança deixa de integrar o modelo normativo da responsabilidade e de ser fundamento desta: a construção da obrigação de indenizar sobre fatores objetivos, independentes das representações dos sujeitos, lança a responsabilidade pela frustração de expectativas para a órbita da responsabilidade por fatos ilícitos, uma vez que em responsabilidade civil o princípio é o de a obrigação de indenizar pressupor a infração de uma regra de conduta, sem importar para o efeito que esses deveres decorram do contrato ou de negócio jurídico, que tenham sido imperativamente fixados na lei ou se fundamentem, em qualquer caso, nas determinações do direito objetivo[8].

A verdade é que esta concepção obriga a enfrentar a questão da relação entre responsabilidade pela confiança e as modalidades tradicionais da responsabilidade civil: terá de ser averiguado especialmente em que medida as pretensões indenizatórias por frustração da confiança não estarão inseridas simplesmente na inobservância comum de normas de comportamento, inobservância geradora, consoante os casos, de uma responsabilidade delitual ou obrigacional (sem que a confiança desempenhe então qualquer papel na emergência da obrigação de ressarcir os prejuízos).

Será pertinente diferenciar no seio da responsabilidade civil a ordem de proteção fundada na doutrina da confiança? O problema exige, em particular, uma análise no campo da responsabilidade delitual: o âmbito do negócio e da responsabilidade contratual está longe de abranger muitas das situações para as quais é reclamada uma tutela das expectativas. O ato danoso e a lesão são frequentemente produzidos porque o lesado confiou na adoção, por outrem, da conduta que lhe era exigida e acabou por sofrer prejuízos. Se a confiança então não surge como fator de responsabilidade, porventura nada distinguirá e legitimará uma responsabilidade especial pelas expectativas frustradas.

A tutela da confiança, como sustenta Carneiro da Frada, deve abarcar um espaço próprio entre as duas grandes modalidades clássicas da responsabilidade civil (contratual e aquiliana), constituindo um terceiro gênero, uma pista autônoma de responsabilidade. A responsabilidade pela confiança se afirma aí onde a tutela das expectativas se deva considerar o elemento determinante do sistema de responsabilidade e não simples razão auxiliar para a obrigação de indenizar[9].

Estamos assim diante do elemento chave para a responsabilização jurídica da chamada confiança institucional. A forma impessoal de confiança de que falava Luhmann, condição de desenvolvimento das sociedades pós-modernas, estará tutelada sempre que a confiança não se reduza a outros elementos como o cumprimento da norma (responsabilidade delitual) ou dos deveres laterais de conduta (impostos pela boa-fé), sendo razão auxiliar da obrigação de indenizar, mas sim sendo o elemento constitutivo-causal dos seus efeitos. Deste modo, integrando a confiança o Tatbestand de responsabilidade, a não verificação em concreto de expectativas – ou mesmo o non liquet acerca de sua ocorrência – tem como consequência inexorável a irresponsabilidade do sujeito. Nenhuma regra (de responsabilidade ou outra) se pode aplicar se não está demonstrada ou se reinam incertezas acerca da ocorrência da confiança. Pelo contrário, apresentando-se a confiança apenas como um telos de uma norma, a não verificação de expectativas determina (quando muito) a necessidade de uma redução teleológica[10].

A obrigação de indenizar por frustração de expectativas alheias, com os contornos e a extensão acima descritos, não encontra, segundo Carneiro da Frada, no ordenamento civil português uma consagração geral. Não obstante, estabelece aquele ordenamento alguns dispositivos que preveem a proteção da confiança[11].

Esclarece Carneiro da Frada a fundamentação autônoma do dano de confiança, distinto da responsabilidade delitual e dos deveres laterais de conduta decorrentes da boa-fé, através da promessa de casamento. Para o autor é inviável considerar que a promessa de casamento cria um vínculo de natureza contratual ou negocial – não faz sentido admitir-se um vínculo que (afinal!) não vincula. Na realidade, a reparação do dano decorrente do respectivo desrespeito deriva da consideração do compromisso como fato gerador da confiança: nesse aspecto é sempre o resultado de uma ponderação objetiva por parte do ordenamento, não efeito diretoda autonomia negocial (ainda que ligado a um Tatbestand negocial). A responsabilidade pela confiança é também autônoma em relação à violação dos deveres laterais de conduta impostos pela boa-fé. Existe responsabilidade por frustração das expectativas, distinguindo-se esta da responsabilidade decorrente da negligência no não esclarecimento da falta de disponibilidade para a sua celebração ou de provocação dolosa da respectiva convicção: ambos os comportamentos contrariam sem dúvida exigências de correção e probidade de conduta que impendem sobre os nubentes e se intensificam naturalmente com a promessa de casamento, mas não se confundem com a responsabilidade por confiança.

Do mesmo modo, a ausência de motivo não transforma a retratação num ilícito, como a culpa do sujeito no rompimento da relação não chega para macular com a ilicitude o seu comportamento. O conceito de culpa (em rigor incompatível, ao pressupor uma ilicitude, com a manutenção da celebração do casamento) deve entender-se como um conceito não técnico. Ele equivale ao recesso injustificado ou ao injustificado provocar do recesso alheio para efeito de identificação do campo em que a responsabilidade pela confiança é chamada a operar[12]. Tudo conflui assim para interpretar a responsabilidade por frustração de uma promessa de casamento como afloramento da teoria da confiança[13].

Mesmo não podendo admitir-se com caráter de generalidade a existência de um dever de corresponder à confiança alheia, importa concluir que a responsabilidade pela confiança se distingue na realidade daquela que emerge da violação de deveres de agir. Depuram requisitos de proteção como a razoabilidade e o investimento de confiança. Tais pressupostos são completamente estranhos a um simples responder por violação de normas de agir, mas são congruentes com um modelo de responsabilidade compensatória, segundo a primazia desejável da tutela negativa da confiança. Outrossim, a singularidade dogmática da responsabilidade pela confiança ancora na ligação genérica à razão prática e incorpora a dimensão prudencial que caracteriza especificamente a interação. Fica assim ultrapassado o paradigma da causalidade, inerente às formas de responsabilidade clássicas.

A doutrina da confiança em si mesma não se limita a formular um princípio jurídico, eleva-se a verdadeira teoria jurídica, organizada em torno daquele princípio. Envolve um conjunto articulado de enunciados através dos quais se procura (i) explicitar o conteúdo de justiça material que lhes é subjacente (ii) e se proporcionar um enquadramento de solução para outros casos.

Mas neste revestimento a teoria da confiança não propiciará, por si só, as soluções de casos concretos, enquanto requeira o complemento ou a especificação através de normas, logrando ainda assim preservar o seu valor, mesmo perante as restrições que tenha de admitir: a sobrevivência da teoria da confiança depende assim do seu cabal desempenho heurístico, atingindo o problema, especialmente a proteção negativa das expectativas.

A regulação legal fornece porventura apoios para essa responsabilidade. Entretanto, a sua construção jurídica geral ultrapassa, e em muito, o mero preenchimento de lacunas que essa regulação eventualmente apresente. Com efeito, não é assim só: os afloramentos da responsabilidade pela confiança são demasiados dispersos para que possa tratar-se do mero completar da teia normativa de acordo com a sua própria lógica. Transcende esse nível. Decerto movimenta-se num espaço nesse sentido livre de normas, situado para além do seu horizonte,[14] mesmo quando se ampara em certas cláusulas gerais ou conceitos indeterminados como o abuso de direito e a boa-fé: a operação envolvida não se traduz na simples concretização de uma determinada regra, obedecendo para isso à pauta valorativa que ela contém; ler numa delas a responsabilidade pela confiança não é possível sem pontos de fixação exteriores a essa mesma norma.

Este tipo de expansão do sistema jurídico só se compreende superando o dogma do positivismo normativista que o identifica com a lei, e contra o qual estão fatores vários, entre os quais, por exemplo, a proibição da denegação da justiça.

Acresce, além disso, que a consagração legislativa de cláusulas gerais ou conceitos indeterminados como o abuso do direito envolve uma autorização de ultrapassagem do limiar da lei por parte do ordenamento. Por conseguinte, tudo se resume a averiguar como justificar este desenvolvimento. E a proteção da confiança corresponde, depois, a um princípio ético-jurídico, indeclinável, saliente nas imposições que se sentem de modo particular quando não há alternativa prática que evite, para além da razoabilidade, a ameaça de ficar por satisfazer uma forte necessidade de tutela jurídica: quem induz outrem a confiar, deve responder caso frustre essa confiança, causando prejuízos.

O pensamento da confiança integra-se, pois, no sistema jurídico sem romper as suas estruturas e sua coerência. Numa época marcada pela pressão no sentido do incremento da interação humana e pela tendência da impessoalidade, correlato da urgência de uma maior e enérgica autonomia dos sujeitos, a proteção da confiança diminui os riscos da ação ligada à progressiva interdependência dos sujeitos. Aprofundar os dois pilares da liberdade e da responsabilidade, eis, para Frada, a via do direito[15].

Nas primeiras décadas do século XX, Vittorio Salandra, ao tratar da extensão e fundamento jurídico da responsabilidade pelas obrigações de uma sociedade irregular, consoante o art. 98 do Código de Comércio italiano[16], já salientava as peculiaridades da responsabilidade por confiança, que não podia enquadrar-se nos limites estreitos nem da culpa aquiliana nem da contratual:

“Voltamos agora à natureza jurídica da responsabilidade do art. 98. Esta não pode dizer-se derivada da culpa aquiliana, nem da culpa contratual. Na primeira categoria não me parece que possa enquadrar-se, porque não é vista culpa no operar em nome de uma sociedade que efetivamente existe e que a lei não proíbe. E nem mesmo se pode falar de responsabilidade objetiva. O terceiro de fato não age para remover um efeito danoso que havia sofrido em seu patrimônio em dependência da ação de que lhe fizeram crer na existência de uma sociedade. Ele age para obter o adimplemento de uma obrigação e não para ser ressarcido do efeito do inadimplemento. Por isso não é o caso nem mesmo de se falar em culpa contratual”[17]

Em conclusão, a responsabilidade pela confiança é parte integrante do direito civil vigente. Na sua essência, exprime a justiça comutativa, na forma específica de justiça corretiva e compensatória. Tem fundamento na diretiva jurídica pela qual deve responder pelos danos causados, aquele que origina a confiança e a frustra. E a sua intervenção autônoma, superadora do plano da lei, terá naturalmente de compatibilizar-se com as demais determinações, princípios e valores que informam a ordem jurídica. Tal qual qualquer outro princípio de caráter geral, a força expansiva que lhe é inerente conhece por isso limites e restrições no processo de concretização-aplicação.

A sociedade pós-moderna em seu processo de desenvolvimento dinâmico, como ressalta Peyrefitte, exige que se dê à multiplicação das exteriorizações materiais e legais das relações jurídicas uma segurança dinâmica que possa alicerçar a vida social, o que traduz na noção de confiança no direito, e o que implica em uma dispensa maior de investigações nas transações civis e comerciais.


Nota e Referências:

[1] Niklas Luhmann, Confianza, Antrophos Editorial, 2005.

[2] Alain Peyrefitte, A sociedade de confiança: ensaio sobre as origens e a natureza do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Topbooks, 1999, p. 23-25.

[3] Sobre as relações entre confiança e desenvolvimento econômico e social das sociedades ver, dentre outros, os seguintes livros: Alain Peyrefitte, A sociedade de confiança: ensaio sobre as origens e a natureza do desenvolvimento, op. cit.; Francis Fukuyama, Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade, Rio de Janeiro: Rocco, 1996; J. Coleman, The foundations of social theory, Cambridge: Harvard University Press, 1990, EVANS, Peter. O Estado como problema e solução. Lua Nova, São Paulo, n. 28-29, p. 107-157, Apr.  1993. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64451993000100006&lng=en&nrm=iso>. access on  03  Oct.  2017.  http://dx.doi.org/10.1590/S0102-64451993000100006; Anthony Giddens, As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991, p. 177; R. D. Putnam, Comunidade e democracia: a experiência da Itália moderna. Rio de Janeiro: FGV, 1996; C. Lane, Introduction: theories and issues in the study of trust, in C. Lane e R. Bachmann (ed.), Trust within and between organizations: conceptual issues and empirical applications, Oxford: Oxford University Press, 1998.

[4] Francis Fukuyama, Confiança: as virtudes sociais e a criação da prosperidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1996, p. 21.

[5] Anthony Giddens, As conseqüências da modernidade, cit.

[6] Manuel Antonio Carneiro da Frada, Contrato e deveres de protecção, Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 251.

[7] Manuel Antonio Carneiro da Frada, Contrato e deveres de proteção. Coimbra: Coimbra Editora, 1994, p. 252-253.

[8] Sobre o papel da confiança na fundamentação de negócios jurídicos, ver, por todos: Cesare Grassetti, Del negocio fiduciario e della sua admissibilittá nel nostro ordinamento giuridico, in Rivista di Diritto Commerciale, v. 34, Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1936, p. 345-378 e do mesmo autor Trust anglosassone, proprietá fiduciaria e negozio fiduciario, in Rivista di Diritto Commerciale, v. 34, Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1936, p. 548-553.

[9] Manuel Antonio Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil. Lisboa: Almedina, 2004, p. 350.

[10] Ibidem, p. 355.

[11] “Art. 899. O vendedor é obrigado a indemnizar o comprador de boa-fé, ainda que tenha agido sem dolo nem culpa; mas, neste caso, a indemnização compreende apenas os danos emergentes que não resultem de despesas voluptuárias.”

“Art. 909. Nos casos de anulação fundada em simples erro, o vendedor também é obrigado a indemnizar o comprador, ainda que não tenha havido culpa da sua parte, mas a indemnização abrange apenas os danos emergentes do contrato.”

“Art. 1.594. (…) 1. Se algum dos contraentes romper a promessa sem justo motivo ou, por culpa sua, der lugar a que outro se retracte, deve indemnizar o esposado inocente, bem como os pais deste ou terceiros que tenham agido em nome dos pais, quer das despesas feitas, quer das obrigações contraída na previsão do casamento.”

[12] Veja-se que não admitir a tutela do dano de confiança, nos casos em que inexiste violação aos deveres de conduta da boa-fé, significa deixar situações iníquas sem reparação, o que não parece admissível em uma concepção moral do direito, como a das sociedades pós-modernas. Nesse sentido, cf. TJRS, 7ª Câm. Cív., ApCív 70.012.349.718, rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves.

[13] Manuel Antonio Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, op. cit., p. 836-837.

[14] Manuel Antonio Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, cit., p. 889.

[15] Manuel Antonio Carneiro da Frada, Teoria da confiança e responsabilidade civil, cit., p. 896-897.

[16] “Art. 98. Se o sócio, promotor, administrador ou todo aquele que opera uma sociedade não legalmente constituída contrae em nome dessa sociedade, é vinculado solidariamente e sem limitação pelas obrigações que esta assume.” (trad. livre)

[17] Vittorio Salandra, Extensione e fondamento giuridico della responsabilità personale per le obligazzioni delle società irregolari, in Rivista di Diritto Commerciale, v. 26, 2ª Parte, Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1928, p. 10, trad. livre.

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RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – TJRS. 7ª Câmara Cível. Apelação Cível nº. 70.012.349.718. Relator: Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgamento em 07.12.2005.

SALANDRA, Vittorio. Extensione e fondamento giuridico della responsabilità personale per le obligazzioni delle società irregolari, in: Rivista di Diritto Commerciale, v. 26, 2ª Parte, Casa Editrice Dottor Francesco Vallardi, 1928.


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