Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini
O objetivo do presente artigo é o de se verificar se, no regime legal sindical atual do Brasil, os motoristas que se utilizam de plataformas digitais, no caso de presente estudo, a Uber, podem efetuar negociações coletivas com tais plataformas. Para que ele seja atingido, importante que se analise como premissa dessa possibilidade legal, a estrutura sindical brasileira, bem como a legalidade dos negócios jurídicos, com base na legislação civil, com foco na definição do “agente capaz”.
Com efeito, somente a entidade sindical legalmente reconhecida, é capaz de negociar instrumento coletivo que se insira na esfera legal brasileira, como legal e legítimo. Ela é, e somente ela, o “agente capaz” da lei civil.
A estrutura sindical brasileira
A estrutura sindical brasileira deriva de uma legislação da década de 1930, posteriormente consolidada na CLT (Consolidação das leis do Trabalho) através do decreto 5.452/1943, que estabelece a unicidade sindical por categorias econômica e profissionais, sem nenhuma alteração significativa em sua estrutura desde então.
A Constituição Federal de 1988 (CF/88) manteve o regime de unicidade sindical em seu artigo 8º, inciso II: “(…) é vedada a criação de mais de uma organização sindical, em qualquer grau, representativa de categoria profissional ou econômica, na mesma base territorial (…)”, mas tentou dar uma liberdade maior na criação de entidades sindicais ao estabelecer sua livre criação com mero registro em órgãos competentes, hoje, os Cartórios de Registro Civil de Pessoas Jurídicas.
Diz o artigo 8º, in verbis:
Art. 8º É livre a associação profissional ou sindical, observado o seguinte:
I - a lei não poderá exigir autorização do Estado para a fundação de sindicato, ressalvado o registro no órgão competente, vedadas ao Poder Público a interferência e a intervenção na organização sindical;
Importante salientar, que em vista da ausência de regulamentação que permita aferir-se a representatividade e legalidade sindical no regime de unicidade sindical brasileiro, senão pela simples existência jurídica e legal de tal entidade; considerando-se ainda que a filiação e a representação do trabalhador ou do empregador por uma entidade sindical é imposta por lei, o Supremo Tribunal Federal (STF) emitiu a súmula 677 determinado que caberia ao Ministério do Trabalho o controle de registro de tais entidades, como forma de garantir a preservação da unicidade sindical.
Súmula 677/STF – 09/10/2003. Sindicato. Princípio da unicidade. Registro de entidades sindicais. Ministério do Trabalho. CF/88, art. 8º, I e II. Até que lei venha a dispor a respeito, incumbe ao Ministério do Trabalho proceder ao registro das entidades sindicais e zelar pela observância do princípio da unicidade.
Assim, legal é a entidade sindical registrada no, então, Ministério do Trabalho.
A despeito de tal “controle e preservação da unicidade sindical”, em 2001, o IBGE apurou a existência de 15.961 (quinze mil, novecentos e sessenta e um) sindicatos, dos quais 11.347 (onze mil, trezentos e quarenta e sete) com registro e 4.614 (quatro mil, seiscentos e catorze) sem registro.
Atualmente existem 16.908 (dezesseis mil, novecentos e oito) sindicatos registrados no MTE, entre profissionais (11.613) e patronais (5.295).
Dessa forma, hoje, o panorama legal no Brasil é o da unicidade sindical por categoria econômica e profissional, com base territorial máxima definida em lei, dependente, a entidade sindical, para ter personalidade jurídica de entidade sindical, e não mera associação, do registro sindical no Ministério do Trabalho, atualmente, por força da MP 870 (artigo 37, VI), e até que ela tenha vigência, pelo Ministério da Justiça.
O artigo 511 da CLT traz a exata definição de cada categoria – econômica e profissional, não cabendo outra sistemática de representatividade sindical sob pena de ilegalidade, e consequente ilegitimidade de representação.
Art. 511. É lícita a associação para fins de estudo, defesa e coordenação dos seus interesses econômicos ou profissionais de todos os que, como empregadores, empregados, agentes ou trabalhadores autônomos ou profissionais liberais exerçam, respectivamente, a mesma atividade ou profissão ou atividades ou profissões similares ou conexas.
§1º A solidariedade de interesses econômicos dos que empreendem atividades idênticas, similares ou conexas, constitui o vínculo social básico que se denomina categoria econômica.
§2º A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica ou em atividades econômicas similares ou conexas, compõe a expressão social elementar compreendida como categoria profissional.
§3º Categoria profissional diferenciada é a que se forma dos empregados que exerçam profissões ou funções diferenciadas por força de estatuto profissional especial ou em consequência de condições de vida singulares.
§4º Os limites de identidade, similaridade ou conexidade fixam as dimensões dentro das quais a categoria econômica ou profissional é homogênea e a associação é natural.
Portanto, não basta criar uma entidade sindical como diz a regra constitucional, necessário que ela se enquadre nos estros termos legais de definição de categoria e que tenha tal legalidade reconhecida por registro no Ministério do Trabalho, e ainda que tal registro respeite a lei.
Em resumo podemos claramente dizer que o Brasil não possui estrutura sindical livre de autorização governamental, nem permite livre associação dos empregadores e trabalhadores senão através de categorias econômicas e profissionais com definição rígida em lei.
Legalidade do negócio Jurídico
A lei civil sempre teve aplicação para verificação da legitimidade de uma pessoa jurídica ou física, para firmar um negócio jurídico. Com efeito, ao se aferir se uma entidade sindical possuía registro no Ministério do Trabalho, e consequentemente teria legitimidade de representação, nada mais se fazia do que se aplicar a regra civil do dito “agente capaz”.
Ratificando essa regra, que sempre existiu para qualquer negócio jurídico, a CLT foi alterada pela dita “reforma trabalhista” (artigo 8º, § 3º), para que os instrumentos coletivos fossem analisados somente com base no artigo 104 do Código Civil, que trata da legitimidade do negócio jurídico.
Como se tal regra não existisse antes, e mais, como se tal regra fosse restringir a análise pelo Judiciário… será que prestaram atenção ao elemento “objeto ilícito”?
Enfim, não vamos tecer considerações sobre a licitude dos objetos negociais, pois que não é o objeto deste trabalho, e vamos nos ater meramente à legitimidade de parte, ou seja, ao exame de “agente capaz” em possíveis negociações entre os motoristas que se utilizam de plataformas digitais de contato com usuários finais e os operadores dessas plataformas.
Elemento essencial para que a negociação seja possível do ponto de vista legal.
Para tanto, consideraremos como “agente capaz” de tal negociação, em cumprimento ao artigo 104 do Código Civil, a entidade sindical assim reconhecida por lei, e no cumprimento dos estritos termos legais de definição da categoria econômica e profissional.
Com esse panorama legal, ingressamos no tema do nosso artigo, que vai se restringir somente aos motoristas e não demais trabalhadores de outras plataformas digitais que hoje existem.
Instrumentos Coletivos e os motoristas que se utilizam de plataformas digitais.
São instrumentos coletivos os Acordos Coletivos (ACT) e as Convenções Coletivas (CCT), sendo os primeiros firmados entre uma Empresa e uma ou mais entidade sindical profissional, e as segundas entre Sindicatos de categoria econômica e profissional.
Neste artigo, quando nos referirmos a instrumentos coletivos nos referiremos a ambas as possibilidades indistintamente. E usaremos os nomes técnicos em siglas (ACT ou CCT) quando nos referirmos a cada um separadamente.
Como visto acima, a legalidade dos instrumentos coletivos depende de agente capaz, e agente capaz do ponto de vista do sindicato profissional será o que represente os trabalhadores seguindo as diretrizes legais.
E quem são tais trabalhadores. Analisando-se a legislação brasileira, verifica-se que a entidade sindical profissional não representa senão os empregados. Assim, é que a entidade sindical que representa os agentes autônomos é uma entidade patronal, a depender da categoria econômica de tal agente - comércio, serviços, advocacia, engenharia ou outras.
Portanto, por força de lei, uma entidade sindical não representa meros trabalhadores mas sim, e tão somente quando tais trabalhadores laboram sob o contrato de emprego em seu estrito senso, como se depreende da descrição de categoria profissional contida no parágrafo 2º do artigo 511 da CLT, citado acima: “A similitude de condições de vida oriunda da profissão ou trabalho em comum, em situação de emprego na mesma atividade econômica…” (grifo nosso)
Essa definição é indica por José Carlos Arouca.:(grifo no original)
Organização profissional e empresarial. A qualificação categorial ou grupal atem-se como regra à atividade empresarial, e sendo, profissional, excepcionalmente, à profissão.
[…]
A categoria profissional constitui o conjunto de empregados que se ativam numa mesma atividade econômica ou em atividades assemelhadas, unidos por força do trabalho em comum. A atividade econômica, por sua vez, expressão da solidariedade em função de interesses econômicos daqueles que empreendem atividades idênticas ou conexas. Pode-se dizer, portanto, que a constituição básica assenta-se normalmente na atividade econômica e excepcionalmente na profissão, dos que se diferenciam por serem regidos por estatuto profissional ou particularidades especiais, tendo como limite mínimo a área de um município.
Tanto é verdade que somente empregados são representados por entidades profissionais, que o próprio autor, no mesmo livro ao tratar de sindicato de trabalhadores aposentados, conclui:
“Levando-se à risca o que se pode extrair do inciso VII do artigo 8º da Constituição, o aposentado só encontra espaço na entidade a que se filiou enquanto vinculado a um emprego. Esse raciocínio conduz, necessariamente, à conclusão de os sindicatos dos aposentados existentes ficarem à margem da organização sindical, com agravo da garantia do art. 561 da CLT, que reserva a palavra sindicato às organizações como tal reconhecidas. Significa dizer que não têm a prerrogativa de defender direitos e interesses, individuais e coletivos perante órgãos administrativos e judiciários, de fixar através de assembleia geral, contribuição confederativa.”
E conclui: “São assim, simples associações civis.”
Portanto, as diretrizes legais para verificação da possibilidade e validade de um instrumento coletivo firmado entre motoristas e a empresa Uber são válidos são:
Que o sindicato de empregados da empresa Uber tenha existência jurídica legal, seja como categoria dominante, seja como categoria diferenciada;
Que tal sindicato represente trabalhadores que são empregados da empresa Uber.
Que os instrumentos coletivos sigam os requisitos legais de validade dos negócios jurídicos.
O primeiro passo, é a verificação da categoria econômica da empresa Uber, o que se verifica através da análise de usa atividade econômica principal, aferida por sua inscrição fiscal, mas precisamente no CNAE.
E a análise da inscrição fiscal da empresa Uber, nos traz os seguintes dados:
COMPROVANTE DE INSCRIÇÃO E DE SITUAÇÃO CADASTRAL
NÚMERO DE INSCRIÇÃO 17.895.646/0001-87
MATRIZ
DATA DE ABERTURA 09/04/2013
NOME EMPRESARIAL UBER DO BRASIL TECNOLOGIA LTDA.
CÓDIGO E DESCRIÇÃO DA ATIVIDADE ECONÔMICA PRINCIPAL
74.90-1-04 - Atividades de intermediação e agenciamento de serviços e negócios em geral, exceto imobiliários (g.n.)
Portanto, o Sindicato patronal que representa a Uber será o que representar, por força de lei a atividade econômica ali indicada. E o Sindicato profissional, será o que representar os empregados dessa categoria econômica, salvo se existente categoria diferenciada.
Veja-se que na nossa legislação sequer o empregado se inscreve em um sindicato. É a empresa empregadora que o faz. Registra-se ela no sindicato profissional, com seus dados cadastrais, e a partir daí todos os empregados que tiver estão, automaticamente, filiados a tal sindicato.
Portanto, os empregados administrativos da Uber serão inscritos no sindicato profissional que representar os empregados na categoria econômica da Uber. Mas não os motoristas, pois que não mantém relação de emprego com a empresa.
No entanto, nosso intuito neste momento não é o de verificar a possibilidade de enquadramento sindical dos motoristas de Uber em algum sindicato específico, ou não, o que já fizemos em outro artigo, e concluímos pela impossibilidade de um sindicato específico, pois nada os diferencia de qualquer motorista, já que a forma de acionamento não torna diferente a profissão de motorista.
Partindo-se do pressuposto hipotético da existência de um sindicato que os represente, deveriam tais motoristas ser reconhecidos como empregados da Uber para que qualquer negociação coletiva pudesse ser entabulada.
Justamente porque nosso sistema sindical é falho e só contempla empregados e não trabalhadores em geral.
Como visto acima, considerando nossa sistemática legal, como bem conclui o Professor Arouca, a entidade sindical representa empregados enquanto mantém vínculo empregatício. Fora dele, ainda que a entidade se autodenomine “sindicato”, será, para efeito legal, mera associação, sem nenhum poder de negociação como entidade sindical. Não será agente capaz na forma do artigo 104 do Código Civil, para entabular negociações coletivas de trabalho.
Portanto, ainda que se crie, como aliás se já se criaram entidades denominadas sindicatos de trabalhadores com aplicativos, ou motoristas de aplicativos, ou qualquer outra entidade denominada sindicato, na realidade serão simplesmente associações, que poderão representar seus associados em algumas negociações, mas não terão representatividade sindical, não representarão a categoria profissional erga omnes, e sequer poderão obrigar que a Uber participe de qualquer negociação.
Portanto, podemos concluir que não há previsão legal para que os motoristas que usam aplicativo da Uber possam obrigar negociações coletivas com a empresa, e se eventual negociação ocorrer por mera liberalidade empresarial, será uma negociação não sindical, de uma empresa com uma associação, com efeito civil, limitado aos associados da dita entidade, ainda que ela se denomine “sindicato”.
Toda essa situação nos mostra a necessidade urgente de alteração da Constituição federal de maneira a gerar verdadeira liberdade sindical no Brasil, permitindo toda e qualquer forma de associação sindical de empregados, trabalhadores de qualquer natureza e mesmo empresas, de forma a gerar uma plena liberdade negocial, o que, com certeza, fortalecerá o sindicalismo brasileiro, hoje pulverizado em milhares de entidades sindicais, muitas não representativas.
Notas e Referências
Consolidação das Leis do Trabalho
Constituição Federal
IPEA: Sindicatos No Brasil: O Que Esperar No Futuro Próximo? http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/TDs/td_2262.pdf -
Sistema Mediador MTE: http://www3.mte.gov.br/sistemas/mediador/.
TRT 9ª Região RT 0011359-34.2016.5.03.0112
TRT 2ª Região RT 1001574-25.2016.5.02.0026
http://www3.mte.gov.br/sistemas/cnes/relatorios/painel/GraficoTipo.asp
Arouca, José Carlos – Curso Básico de Direito Sindical, 2ª edição LTr, SP 2009
Imagem Ilustrativa do Post: Where will they lead me? // Foto de: Tomasz Baranowski // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/155376904@N07/43322064210
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