A NEGAÇÃO DA POLÍTICA E A POLÍTICA DA NEGAÇÃO

02/07/2018

O jovem compositor confessa: “A nossa indignação é uma mosca sem asas/não ultrapassa as janelas das nossas casas” e sentencia: indignação indigna, indigna nação”[1]. É curioso notar que o eu-lírico inclui-se na desordem da qual se queixa. A assunção subjetiva de uma realidade oposta à dignidade da pessoa humana é acompanhada da assunção da própria responsabilidade pela recusa ou denegação da rendição total à ideia que se materializaria na ação coerente e decorrente dela.

De fato, os efeitos corrosivos do hiperindividualismo na sociedade contemporânea apontam para a promoção liberal de indivíduos egocêntricos que adotam o discurso de negação da política numa clara e contundente política da negação.

Recentemente, um famoso empresário brasileiro, no gozo de seus direitos políticos, filiou-se a um partido político, candidatou-se a prefeito de São Paulo, foi eleito e assumiu o cargo de Prefeito, tonando-se, assim, um agente político do Estado. Em diversas ocasiões, porém, fazia a constante afirmação: “eu não sou político”, pelo que foi seguido por muitos de seus eleitores e simpatizantes, mormente nas redes sociais, que repetiam a mesma “verdade”: “O prefeito não é político” (sic!).

As teorias políticas também sofrem uma subversão nos seus conceitos consagrados que as identificam e as distinguem umas das outras. O termo anarquismo, por exemplo, é comumente confundido com o liberalismo sobretudo entre os jovens. Qualquer tentativa de demover o sujeito do possível “equívoco” que comete em relação à diferença abissal entre as duas teorias, sobretudo, no que concerne ao Estado, é completamente inútil. A bem da verdade, esta tentativa de apropriação das ideais libertárias pelos defensores do liberalismo político e econômico não é um fenômeno novo e nem ingênuo, mas apenas ganha ares irracionalistas no atual contexto. Já na década de 70, o filósofo e professor norte-americano, Robert Nozick (1938-2002), publicou um livro intitulado Anarquia, Estado e utopia, no qual há uma clara defesa do Estado, o qual precisa adquirir certas características a fim de que possa receber uma defesa mais plena e um nome mais sofisticado: Estado mínimo. Note que não há uma teorização acerca das características inerentemente autoritárias do Estado enquanto tal, como fizeram os teóricos anarquistas ao longo de séculos, mas, pelo contrário, a defesa do Estado, que só precisa fazer um strip-tease para que seja “aceito” (MORRISON, 2012). Então, por que o título fazendo referência ao anarquismo?

Zizek (2014 p. 50) observa com profunda perspicácia, que há uma violência inerente na linguagem humana. Ele problematiza a noção comum de que a fala, pelo diálogo, pela comunicação, seja sempre a negação da violência, e oferece um exemplo bem simples para apresentar sua tese: “Quando chamamos o ouro de “ouro”, extraímos violentamente um metal de sua textura natural, investindo nele nossos sonhos de riqueza, poder, pureza espiritual etc., ao mesmo tempo que nada disso tem relação com a realidade imediata do ouro”.

Quando falamos “política” ou “Estado” podemos estar atribuindo a eles a responsabilidade por tudo que deu errado ou poderia dar certo em nossas vidas. Seria bom pensar que, talvez, quando mencionamos o nome de nosso candidato preferido, estamos revivendo nosso narcisismo primário, agindo como quando éramos crianças onipotentes. Concordamos em projetar num outro, as nossas fantasias de força, coragem, inteligência, etc.

Nesse caso, o voto no candidato, é dizer, a participação na política por meio do voto, não se dá pelo assentimento moral e intelectual a um programa partidário que reflita uma teoria política em conformidade com a Constituição da República, mas por razões subjetivas e particulares.

Em um texto intitulado A Negação (Die Verneinung), Freud (1925, p. 275) chama a atenção para uma situação clínica onde o mecanismo psíquico da negação[2] ou recusa aparece na fala dos seus pacientes. Ele diz:

O modo como nossos pacientes apresentam suas ideias espontâneas, no trabalho psicanalítico, nos fornece a oportunidade para algumas observações interessantes. “Você agora vai pensar que eu quero dizer algo ofensivo, mas não tenho de fato essa intenção”. Ou: “Você pergunta quem pode ser esta pessoa no sonho. Minha mãe não é”. Corrigimos: então é a mãe.

O fenômeno da negação da política tem a sua dimensão coletivo-institucional. Vários partidos políticos modificaram seu próprio nome, retirando o significante “partido” ou substituindo o velho nome por outro, numa clara estratégia política de negação da política. Numa linguagem bancária, depositaram na conta da instituição partidária, a paga pela imagem negativa que construíram com suas próprias condutas.

No que tange ao Direito, não tem sido diferente. Não raras vezes, a Lei, em sentido amplo, tem sido apontada como a responsável pelas condutas criminosas que determinados agentes cometem. Mais uma vez, é a instituição que deve ser punida pelos crimes que pessoas capazes para os atos da vida civil realizam.

Daí por que a norma cristocêntrica segundo a qual nosso falar deve ser “sim, sim; não, não”[3] só pode ser posta em prática pelo ser falante que responsabiliza-se não só pelos atos que comete conscientemente, mas também pelo seu inconsciente, o que tem sido raro nos dias atuais.

Forbes (2013, p. 12) num livro cujo título faço questão de citar, Inconsciente e Responsabilidade, chama a atenção para as características da sociedade do século XXI, que, segundo ele, exige que se dê atenção a este fenômeno de irresponsabilização do sujeito provocado pela apropriação caricata do discurso psicanalítico e que traz consequências para o direito contemporâneo e para a educação:

No discurso da psicanálise difundida nos meios de comunicação, responsabilidade e inconsciente não são termos que aparecem conjugados, chegando a serem considerados excludentes. Assim, a responsabilidade estaria associada à consciência plena e onde houvesse inconsciência não poderia haver responsabilidade. Diante de um ato que cometeu – voluntária ou involuntariamente – e sobre o qual estranha a própria participação, é comum a pessoa dizer: “Só se foi o meu inconsciente”.

Na atual sociedade de seres desbussolados, os ódios se manifestam por razões político-ideológicas tanto quanto por razão nenhuma, de modo que a negação da política se constitui a política mais descompromissada de exercer direitos individuais como o da liberdade de expressão, sob a proteção da Constituição da República de 1988, que criou o Estado democrático de direito.

A mesma Constituição que reconhece e garante o direito à liberdade de expressão estabelece para esta, limites claros e inequívocos. No art. 220 da Lei Maior, o constituinte determina que não haverá restrição ao direito de manifestação de pensamento, criação, expressão e informação, mas ressalva o disposto no art. 5º, incisos IV, V, X, XIII e XIV”. 

Assim, o direito constitucional permite o que a sociedade desbussolada proíbe, a saber, que haja um poder capaz de chamar à responsabilidade aqueles que se expressam livremente e por isso não têm razão para se esconder no anonimato; que garanta o direito de resposta e a indenização por danos morais, patrimoniais e à imagem daqueles que são injustamente atacados; que busque preservar a intimidade, a vida privada e a honra das pessoas. Desnecessário dizer que o desrespeito e a afronta a esses direitos não significa que a Constituição deve ser responsabilizada, mas os autores dos fatos tipificados como criminosos.

Notas e Referências

BAHIA, Flávia (Org). Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. In: VADE MECUM CONSTITUCIONAL. 13ª ed. Salvador: Jus Podium, 2018.

Bíblia Sagrada. Antigo e Novo Testamento. Trad. João Ferreira de Almeida. Revista e Corrigida. 4 ed. Barueri –SP: Sociedade Bíblica do Brasil, 2013.

FORBES, Jorge. Inconsciente e Responsabilidade: psicanálise no século XXI. Barueri-SP: Manole, 2012.

FREUD, Sigmund. “A Negação” (1925). In: FREUD, S. O eu e o id, “autobiografia” e outros textos (1923-1925). Obras completas. Vol. 11. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. Pp. 275-282.

MORRISON, Waine. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

ZIZEK, Slavoj. Violência. Trad. Miguel Serras Pereira. 1ª ed. São Paulo: Boitempo, 2014.    

[1] Disponível em: https://www.cifraclub.com.br/skank/indignacao/. Acesso em: 28/06/2018

[2] Aproveito para fazer a importante ressalva de que as citações referentes à literatura psicanalítica estão simplesmente para oferecer maior subsídio à reflexão do leitor, sem qualquer propaganda de um viés pedagogizante ou psicologizante da psicanálise.

[3] Mateus 5:37

 

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