A natureza jurídica do precedente judicial – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

19/06/2017

Antes de iniciar a coluna de hoje, que trata da natureza jurídica do precedente judicial, impende conceituar que, para os limites desta coluna, todo precedente judicial é também uma decisão judicial, em que pese nem toda a decisão poder ser considerada um precedente. Esta ressalva se faz necessária, tendo em vista que a correta identificação da natureza jurídica do precedente judicial tem que levar em consideração que ele é também uma decisão, um fato, portanto.

Embora seja correta a afirmação que a decisão judicial é um fato, ela pode configurar, simultaneamente, mais de um fato jurídico.[1] É possível, portanto, catalogar a decisão como ato-fato jurídico ou como ato jurídico, categoria em que é comumente inserida. No que interessa a presente investigação, que analisa a decisão judicial na sua feição de precedente judicial, parece mais apropriada a sua definição como ato-fato jurídico (o que não impede que ela também seja, ao mesmo tempo, um ato jurídico).[2]

Os atos-fatos processuais são os fatos jurídicos em que, apesar de produzidos por ação humana, a vontade de praticá-los é desprezada pelo Direito; daí serem atos recebidos pela ordem jurídica como fatos, em razão de se abstrair o elemento ‘vontade humana’ presente nos atos jurídicos (atos jurídicos em sentido estrito e negócios jurídicos).[3]

Considerar a decisão, também, como ato-fato jurídico, tem a vantagem de conseguir identificar os efeitos jurídicos que dela decorrem independentemente de sua permanência no mundo jurídico. Mesmo que a decisão-ato - tomada como ato jurídico[4] - seja invalidada, reformada ou rescindida, a decisão-ato-fato está apta a produzir seus efeitos.[5]

A importância da ideia de decisão judicial como ato-fato jurídico processual está, como dito, na sua ligação com a eficácia dos precedentes judiciais. Estes tomados como fato, produzem efeitos independentemente da vontade do órgão que proferiu a decisão e os mantêm independentemente da permanência da decisão no mundo jurídico, mesmo porque os atos-fatos jurídicos não passam pelo plano da validade.[6]

É comum no direito brasileiro se classificar os precedentes judiciais, ao menos, de três formas distintas, levando-se em consideração a influência que eles têm sobre a decisão judicial de um caso semelhante, vale dizer, pelos efeitos jurídicos da sentença ou decisão judicial vista como precedente: a) eficácia vinculante; b) eficácia obstativa de revisão das decisões; e c) eficácia persuasiva.[7]

Tem-se por vinculante o efeito do precedente que impõe a obrigatoriedade da adoção da ratio decidendi (binding authority). O magistrado do caso futuro, e similar, está obrigado a seguir a ratio decidendi (ou princípio jurídico, diante da sua força gravitacional) firmada no precedente, mesmo que a considere incorreta (regra do stare decisis). Seria, no direito brasileiro, a eficácia proveniente das decisões elencadas no art. 927, do CPC-15[8], ressaltando-se que nem tudo que está ali elencado pode ser tido como precedente judicial. Há, entretanto, correntes doutrinárias que já fazem distinções acerca dos graus de vinculação, os dividindo em: i) precedentes normativos; ii) precedentes normativos formalmente vinculantes; e iii) precedentes normativos formalmente vinculantes fortes.[9]

Por outro lado, há precedentes que produzem o efeito de obstar a revisão de decisões judiciais, seja por meio de recursos, seja por remessa necessária. Parece fora de dúvida que esse efeito está intimamente ligado à eficácia vinculante de certos precedentes, permitindo o legislador que o órgão jurisdicional negue provimento (ou seguimento) a determinados recursos ou dispense a remessa necessária quando eles estiverem em desacordo com precedentes judiciais, notadamente emanados das cortes supremas. Seriam exemplos os arts. 496, § 4º e 932, IV do CPC-15, e o art. 894, II e § 3º, I da CLT.[10]

O precedente persuasivo não ostenta eficácia vinculante, possui apenas força persuasiva. Os juízes dos casos futuros semelhantes não são obrigados a segui-lo, mas se o seguem é por estarem convencidos de sua correção.[11] É certo que o grau de persuasão desse tipo de precedente deve levar em consideração, além da sua correção em si, outros fatores, por exemplo: a posição do tribunal que proferiu a decisão, o prestígio do juiz condutor da decisão, a data da decisão, se foi unânime ou por maioria e, principalmente, a sua fundamentação, entre outros. [12]

Bem se vê que essa classificação dos precedentes levando-se em consideração os efeitos que eles produzem, tem como fundamento a natureza jurídica do precedente como ato-fato jurídico processual. Este, por sua vez, tem existência autônoma ao ato-jurídico também veiculado na decisão, daí a manutenção desta no mundo jurídico ser irrelevante para se ter a decisão como precedente. Dito de outro modo, “o fato em si da decisão já havia gerado o efeito de permitir o uso do precedente e essa situação jurídica não se altera quando o ato jurídico veiculado na decisão (juntamente com o ato-fato) venha a ser decretado inválido”.[13]

O precedente não se autonomiza dos fatos que lhe deram origem e isso independe da vontade do redator do texto (precedente) em dar uma extensão abstrata e geral ao que redigiu, tampouco sua vontade pode limitar ou impossibilitar o uso futuro que eventualmente se fará da sua produção.[14]Não é, como parece intuitivo, o decisor do caso que afirma tratar-se a sua decisão de um precedente, mas sim o juiz do caso futuro que o tomará, levando em consideração a sua força gravitacional, como precedente a ser considerado na decisão a ser proferida no presente.

Uma decisão, máxime se proferida pelas cortes superiores, não pode ser ignorada; ela está lançada no mundo e faz parte da história. Pode até nem ser seguida (adoção da ratio decidendi), em razão da possibilidade de overruling por uma decisão futura, mas jamais não ser levada em consideração. Essa necessidade de ser levada em consideração, ao que parece, demonstra que a vontade do decisor é irrelevante para a caracterização do precedente judicial.

A decisão estará no mundo e por mais que se tente dar a ela qualquer limitação ou extensão, não é o juiz do caso pretérito que definirá o seu alcance, mas o do caso presente (futuro) que poderá, sem dúvida alguma, retomar àqueles fundamentos, como ganhos hermenêuticos para a compreensão da norma jurídica, pouco importando se aquele precedente foi ou não confirmado por decisões futuras, diante do dever que o juiz tem de ler tudo o que foi produzido pelos juízes do passado, para entender o que eles fizeram coletivamente.[15]

Tomando-se o precedente judicial como ato-fato jurídico, tendo em vista que a vontade do magistrado na prolatação da decisão judicial empós tomada como precedente é irrelevante para a produção dos efeitos jurídicos dela decorrentes, não há razão para se tomar o conceito do precedente como jurídico-positivo, ou seja, como um conceito que deve ser construído com fundamento em determinada realidade normativa, limitando-se o seu campo de aplicação a essa realidade.[16]

Até mesmo no Brasil, tradicionalmente filiado ao civil law, não há qualquer preocupação legislativa em conceituar o que seria precedente judicial. O CPC-15 não se preocupa em momento algum em conceituar o que seria um precedente judicial – talvez por entender tratar-se de um conceito jurídico fundamental -, limitando-se a atribuir a alguns pronunciamentos judiciais tidos como precedentes, eficácia vinculativa, por vezes obstativa de revisão, e só. Não há qualquer conceito jurídico-positivo de precedente judicial.

Mais do que isso. O Código de Processo Civil de 2015 não se preocupa, sequer, em fazer uma distinção – importantíssima para a ciência jurídica e para o manejo da teoria dos procedentes judiciais – entre jurisprudência, súmula e precedente judicial, por vezes parecendo baralhar esses conceitos ao longo do texto normativo. Tomando-se o conceito de precedente como jurídico-fundamental[17] a aparente confusão perde importância, porque a conceituação desse instituto é filosófica, pertencente à teoria geral do direito, independendo do direito positivo.

Ser o precedente vinculante, persuasivo ou obstativo de revisão de decisões tem a ver com os efeitos que ele produz em dado ordenamento jurídico, mas não com a sua existência em si. Estar-se-ia discutindo, ao que parece, o plano da eficácia do mundo jurídico e não o da existência. Precedente sempre haverá, não importa o sistema jurídico, já os efeitos que ele produzirá estão atrelados ao regramento jurídico-positivo estabelecido.


Notas e Referências:

[1] NOGUEIRA, Pedro Henrique P. Negócios jurídicos processuais. Salvador: Juspodivm, p. 199. No mesmo sentido: MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da existência. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 199.

[2] DIDIER JÚNIOR, Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos fatos jurídicos processuais. Salvador: Juspodivm, 2011, p. 49.

[3] Idem, ibidem, p. 43.

[4] Sobre o conceito de ato jurídico: MELLO, Marcos Bernardes de. Op. Cit., especialmente o capítulo 10.

[5] NOGUEIRA, Pedro Henrique P. Op. Cit., p. 201.

[6] Sobre o plano da validade, consultar: MELLO, Marcos Bernardes de. Teoria do Fato Jurídico: plano da validade. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.

[7] NOGUEIRA, Pedro Henrique P. Op. Cit., p. 202. No mesmo sentido consultar: TARANTO, Caio Márcio Gutterres. Precedente judicial: autoridade e aplicação na jurisdição constitucional. Rio de Janeiro: Forense, 2010, p. 137 e ss.

[8] Art. 927.  Os juízes e os tribunais observarão:

I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade;

II - os enunciados de súmula vinculante;

III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos;

IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional;

V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados.

[9] ZANETI JÚNIOR, Hermes. O valor vinculante dos precedentes judiciais: teoria dos precedentes normativos formalmente vinculantes. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2016, em especial o capítulo 4. Em sentido semelhante: SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Do precedente judicial à súmula vinculante. 1. ed. 2. reimpr. Curitiba: Juruá, 2013, p. 54-55.

[10] DIDIER JÚNIOR, Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael Alexandria de. Curso de Direito Processual civil. 10. ed. v. 2. Salvador: Juspodivm, 2015, p. 457.

[11] SOUZA, Marcelo Alves Dias de. Op. Cit., p. 53.

[12] Idem, ibidem,, p. 53.

[13] NOGUEIRA, Pedro Henrique P. Negócios jurídicos processuais. Salvador: Juspodivm, p. 204.

[14] RAMIRES, Maurício. Crítica à aplicação de precedentes no direito brasileiro. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010 p. 90-91.

[15] O tema voltará a ser abordado com mais profundidade no último capítulo deste trabalho.

[16] Cuida-se de noção que somente poderá ser compreendida após o conhecimento do direito positivo, a ele limitada e sem pretensão de universalização. Sua definição variará conforme o tempo e o espaço. Não há o que se falar numa disciplina única para esses institutos, são variáveis às mudanças do direito positivo ao longo do tempo. Cf. DIDIER JÚNIOR, Fredie. Sobre a teoria geral do processo, essa desconhecida. 2. ed. Salvador: Juspodivm, 2013, p. 40.

[17] Importante é observar que, num sistema conceptual, científico, nem todos os conceitos ocupam o mesmo plano. Há uma hierarquia lógica que coordena e subordina os conceitos entre si. Uns têm âmbito de validez específico, outros, genérico. Uns são fundamentais e principais, outros derivados e adjacentes.

[...]

Em todo sistema conceptual, existe um grupo de conceitos fundamentais, cuja amplitude cobre todo o território científico sobre o qual dito sistema repousa.


 

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