Discutir o que seja a natureza jurídica do direito concernente aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade e a sua tutela (se delimita assim o objeto desse estudo, que não se refere a outros tipos de conhecimentos tradicionais) implica em definir o que seja esse conhecimento.
O conhecimento tradicional associado à biodiversidade, no sentido estrito aqui utilizado, é um bem intangível, criado e processado pelas comunidades locais tradicionais a partir de sua observação e transformação da natureza.
Trata-se de um conhecimento sobre as características da diversidade biológica, em uma interação socioambiental, como esclarece Antônio Carlos Diegues:
As populações tradicionais não só convivem com a biodiversidade, mas nomeiam e classificam as espécies vivas segundo suas próprias categorias e nomes. Uma particularidade, no entanto, é que essa natureza diversa não é vista pelas comunidades tradicionais como selvagem em sua totalidade; foi e é domesticada, manipulada. Uma outra diferença é que essa diversidade da vida não é tida como “recurso natural”, mas como um conjunto de seres vivos detentor de um valor de uso e de um valor simbólico, integrado numa complexa cosmologia.
Pode-se falar numa etnobiodiversidade, isto é, a riqueza da natureza da qual também participa o homem, nomeando-a, classificando-a e domesticando-a. Conclui-se, então, que a biodiversidade pertence tanto ao domínio do natural como do cultural, mas é a cultura, como conhecimento, que permite às populações tradicionais entendê-la, representá-la mentalmente, manuseá-la, retirar suas espécies e colocar outras, enriquecendo-a, com freqüência[1].
No que concerne à natureza jurídica desse conhecimento, em direito da propriedade intelectual (DPI), há ver a distinção entre descoberta e invenção.
Consoante Gama Cerqueira, a invenção é a criação de uma coisa até então inexistente, ao contrário da descoberta, que é apenas a revelação do que já existe na natureza. Reforça-se, assim, na diferenciação com o conceito de descoberta, a característica da invenção de ser capaz de atender necessidades de ordem prática; a descoberta não apresenta fins práticos preestabelecidos[2].
A invenção é o ato de criação de caráter especial: que representa uma solução nova para um problema técnico existente. Isto inclui o fato de que na invenção haverá uma manipulação humana da eventual descoberta, tornando-a diferente do produto originalmente encontrado na natureza. Para a legislação brasileira, uma invenção é uma criação intelectual de ordem técnica, que, pelos seus fins, constitui um meio de satisfazer as exigências e necessidades práticas do homem[3].
A proteção à invenção pode se dar por duas vias. A primeira é a do segredo, que é proteção exclusivamente fática. A outra é por meio da outorga, pelo poder público, de uma patente de invenção àqueles que a solicitarem e cuja validade se julgar pertinente, culminando na concessão da patente; esta é uma forma de proteção por direito, já que seu detentor passa a ser o titular do direito exclusivo, ou seja, exclui terceiros de explorar seu invento e detém a propriedade (por tempo limitado[4]), sobre o uso da patente.
Patentes de invenção são privilégios legais concedidos pelo Estado[5] a autores de invenções de produtos, de processo de fabricação ou de aperfeiçoamento de produtos e processos já existentes. Sua concessão visa proteger a invenção, de forma que seu titular detenha a propriedade e exclusividade de exploração de tal invenção.
No Brasil, as patentes são regulamentadas pela Lei de Propriedade Intelectual ou LPI (Lei 9610/98), de disciplina e fiscalização a encargo do INPI. Segundo tal lei, apenas são passíveis de registro formal criações intelectuais que patenteiem algo inédito, útil, não-óbvio e com aplicação industrial.
Patentes de invenção inserem-se, de acordo com a doutrina do direito brasileiro, nos direitos de propriedade industrial, porque as criações do intelecto não se adaptam integralmente à divisão do direito privado, ou seja, dos direitos pessoais, obrigacionais e reais. Os direitos de propriedade intelectual têm, outrossim, caráter patrimonial, no âmbito do direito sobre bem incorpóreo.
Os requisitos legais brasileiros de patenteabilidade[6] são:
a) Novidade
O artigo 11 da LPI baliza o atributo de novidade de uma invenção da seguinte forma:
A invenção e o modelo de utilidade são considerados novos quando não compreendidos no estado da técnica, ou estado da arte[7].
§ 1º O estado da técnica é constituído por tudo aquilo tornado acessível ao público antes da data de depósito do pedido da patente, por descrição escrita ou oral, por uso ou qualquer outro meio, no Brasil ou no exterior[8], ressalvando-se o disposto nos artigos 12, 16 e 17[9].
Ou seja, só é novo o que não tenha sido publicado anteriormente, na forma de pedido ou concessão de patente. Ressalve-se que a simples divulgação de conhecimentos, sem que estes estejam vinculados à proteção de determinada invenção, não constitui base para eventuais reivindicações posteriores acerca dos DPI cobertos pela patente. Somente pode ser considerado como novo aquilo que ainda não tenha sido conhecido por ninguém. Isso significa que, para uma invenção ser considerada uma novidade, deverá apresentar um resultado que não exista em um estado da técnica, ou seja, que ainda não tenha se tornado acessível ao público antes da data do depósito do pedido de patente, por descrição escrita, oral ou outro meio, seja no país onde ocorreu o depósito, ou fora dele[10].
b) Atividade Inventiva
Segundo a legislação brasileira, a invenção é dotada de atividade inventiva sempre que, para um técnico no assunto, não decorra de maneira evidente ou óbvia do estado da técnica (art 13, LPI). Claro que esta disposição leva à busca de definição do estado da técnica, verificando-se se a atividade inventiva é não-óbvia, condição essencial para que o requisito de patenteabilidade seja determinado[11].
c) Aplicação Industrial
O requisito de aplicação industrial preenche o fundo de patenteabilidade de uma invenção, e está disposto no artigo 15 da LPI:
A invenção e o modelo de utilidade[12] são considerados suscetíveis de aplicação industrial quando possam ser utilizados ou produzidos em qualquer tipo de indústria.
A aplicação industrial é o que justifica a invenção, ou seja, delimita a materialidade da ideia inventiva criada para solucionar tecnicamente problemas técnicos de produção, existentes em ramo da atividade econômica. O critério distintivo da aplicação industrial parte da ideia de suscetibilidade de aplicação industrial. Assim, a aplicação industrial de uma invenção é caracterizada quando: a) puder ser utilizada em qualquer tipo de indústria, ou seja, que o seu objeto seja tecnicamente alcançável e não apenas teoricamente atingível (o que impediria o patenteamento) – a invenção precisa funcionar de fato; ou b) puder ser produzida em qualquer tipo de indústria, ou seja, que a invenção possa ser repetida diversas vezes e constantemente no processo de fabricação, obtendo-se sempre o mesmo resultado para o qual se reivindicou a proteção[13].
A natureza do objeto conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, por seu turno, aproxima-se mais do conceito de descoberta. Isso porque, sendo um conhecimento coletivo e tradicional de propriedades e usos da diversidade biológica, transmitido oralmente de geração a geração, ainda que não disponibilizado fora de determinados círculos das comunidades locais, não poderiam se classificar como novos, em princípio, estando compreendidos no estado da arte.
Faltaria a esses conhecimentos tradicionais o requisito positivo de patenteabilidade da novidade. O conhecimento tradicional, como seu nome indica, não é necessariamente novo. Pode até sê-lo, mas em geral é ancestral e transmitido oralmente de geração em geração, não sendo a novidade o seu marco distintivo, mas sim o critério cultural. Via de regra, também, define-se como conhecimento novo, para fins de patente de invenção, somente aquele capaz de ensinar alguém a chegar a uma invenção. Nesse diapasão, não sendo os conhecimentos tradicionais divulgados em termos técnicos ou químicos, são estes considerados insuficientes para direcionar a atividade inventiva. Logo, mesmo que tais conhecimentos tenham servido como atalho para que um pesquisador ou uma empresa desenvolvessem um produto, eles não seriam tidos como aptos a anular a novidade e, consequentemente, para obstaculizar a obtenção de uma patente desse modo obtida[14].
O acesso desse conhecimento pelo público (ainda que um acesso restrito às comunidades locais) através da tradição oral, também se constitui em obstáculo para o reconhecimento da novidade.
O requisito da inventividade na manipulação e transformação de elementos da biodiversidade pelas comunidades locais, de maneira não-óbvia do estado da técnica, dando-lhe novas funções úteis, também não parece se aplicar. Para haver inventividade, no sentido dos direitos de propriedade industrial, é necessário um esforço intelectual que ultrapasse os limites do conhecimento existente, no estado da técnica, ou seja, não decorra da obviedade, da previsibilidade ou do exercício rotineiro de um técnico especializado na matéria. Como o conhecimento tradicional é, via de regra, mas não necessariamente, um conhecimento coletivo, sua técnica é conhecida, ao menos no grupo restrito da comunidade local[15]. Falta então a inventividade.
A aplicação industrial direta dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade das comunidades locais também resta duvidosa. Por aplicação industrial entende-se que a invenção deve ter finalidade de uso na produção econômica, seriada, industrial. O termo industrial, no caso, abrange todos os ramos da atividade econômica de fabricação de mercadorias, como agricultura, pesca, produção mineral.
Os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, via de regra, têm uma testabilidade restrita e não são reproduzíveis em escala seriada, no seu estágio da técnica. Não pode ser reproduzida em qualquer tipo de indústria, ou seja, a invenção não pode ser repetida diversas vezes e constantemente no processo de fabricação, obtendo sempre o mesmo resultado. As misturas de plantas e extratos caracterizam-se, muitas vezes, pela mutabilidade, pela inconstância natural da matéria viva, fruto de processos biológicos naturais inerentes, o que acaba por inviabilizar a compreensão plena do processo, inviabilizando a concretização da aplicação industrial da invenção.
Constituem os conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade um indício forte da existência de um produto, mas não são o produto em si. É o caso, por exemplo, do jaborandi (Pilocarpus microphyllus), planta nativa da Amazônia brasileira, utilizada por tribos indígenas no preparo de chás diuréticos e expectorantes. Embora identificadas pelas tribos indígenas as propriedades e usos da planta, é somente com o isolamento de seu princípio ativo, a pilocarpina, que se adquire a possibilidade de aplicação industrial, seriada, e sua utilização em tratamentos de calvície e no controle do glaucoma.
Não obstante, ainda que não seja aquilo que se define como um conhecimento patenteável pela atual legislação de propriedade intelectual, pela ausência, em princípio, de alguns requisitos legais há que se determinar qual seja a natureza do direito intelectual coletivo das comunidades locais decorrente dos seus conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade.
A primeira questão a ser abordada é a dimensão econômica desse direito. O interesse em plantas como fonte de drogas e medicamentos começa no Brasil ainda no início do século XIX, mas, desde lá, são poucas as plantas que foram estudadas exaustivamente em seu valor potencial, isto é, testadas para vários efeitos ao invés de apenas um. Considera-se que, das 250.000 a 750.000 espécies que se estimam existentes, 119 drogas são obtidas de menos de 90 espécies[16]. Uma fração muito pequena das plantas estudadas chega às prateleiras das farmácias. Embora haja numerosas substâncias derivadas das florestas, elas estão escondidas entre milhares de espécies em milhões de hectares. Além disso, o processo de desenvolvimento de um novo produto farmacêutico pode levar muitos anos, além de ser um processo muito oneroso[17].
O desenvolvimento de um fármaco[18] é extremamente dispendioso, tanto com relação a tempo, quanto ao dinheiro. É um investimento de risco que, nos Estados Unidos, por exemplo, leva de 10 a 15 anos e consome cerca de US$ 300 milhões de investimentos em estudos e testes clínicos. Entretanto, através dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade é possível se conseguir um “atalho” (short-cut) nesse processo, o que indubitavelmente expressa o valor de mercado de tal conhecimento:
Se os fitoquímicos tiverem que investigar ao acaso os componentes dos efeitos biológicos de 80.000 espécies das plantas amazônicas, a tarefa pode nunca terminar. Concentrar os esforços em espécies experimentadas por essas pessoas por milênios possibilita um atalho ao descobrimento de novos componentes médicos ou industriais[19].
É hábito entre os integrantes das comunidades tradicionais e indígenas o uso milenar de plantas há séculos para fins terapêuticos específicos. Muitos deles têm comprovação científica da eficácia não só para a finalidade determinada pelas comunidades, mas muitas outras que foram descobertas em pesquisas em laboratórios a partir do conhecimento e uso tradicional[20].
Muitas plantas desenvolveram defesas químicas para deter a predação feita por animais herbívoros. As pessoas nos trópicos possuem um conhecimento sofisticado dessas plantas, utilizando-as frequentemente como remédio ou veneno.
Mark Plotkin relata diversas experiências em que o uso por índios de certas plantas ou substâncias como veneno para caça e pesca serviram de base para a produção de inseticidas e pesticidas. Segundo ele, há muitas perspectivas de se conseguir mais resultados semelhantes, uma vez que se multipliquem os testes. Como exemplo, ele cita uma das espécies da qual se extrai a uma substância utilizada como base para venenos para flechas e curares: a Chondrodendron tomentosum.
Dela se originou um anestésico, o d-tubocurarina, utilizado para cirurgias abdominais. Assim, é expresso o valor de tal conhecimento tradicional associado à biodiversidade:
Os povos das florestas tropicais são a chave para se entender, utilizar e proteger a diversidade tropical de plantas [...] Uma única tribo de índios da Amazônia pode usar mais de 100 espécies diferentes de plantas apenas com objetivos medicinais, mas até o momento muito poucas populações tribais sofreram uma análise etnobotânica completa, e a necessidade de fazê-lo se torna mais urgente a cada ano que passa[21].
A configuração do direito concernente ao conhecimento tradicional associado à biodiversidade está prevista, no direito brasileiro, no art. 10, II, da lei nº. 13.123/2015, que prevê o direito de ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações. A lei federal nº. 13.123/2015 exige que o interessado em um pedido de patente demonstre ao órgão patentário a observância da lei – que se traduz na autorização expedida pelo colegiado governamental criado para gerir o patrimônio genético brasileiro (CGEN), sob administração do Ministério de Meio Ambiente (MMA) – e informe a origem do material genético e do conhecimento tradicional acessado[22]. O Brasil, assim, elegeu o certificado de procedência legal (que inclui a declaração de origem) como mecanismo de rastreamento para repartição de benefícios.
Fica assegurado pelo art. 8º, § 4º da lei federal nº. 13.123/2015 o intercâmbio e a difusão de componente do patrimônio genético e do conhecimento tradicional associado praticado entre si por comunidades indígenas e comunidades locais para seu próprio benefício e baseados em prática costumeira, ainda que esse conhecimento tenha sido objeto de relação contratual com terceiros. Trata-se de uma determinação de ordem pública, à qual o contrato de formas de acesso ao conhecimento tradicional e repartição de benefícios terá que se adaptar.
Também garantiu a lei federal nº. 13.123/2015 em seu art. 8º, caput, o direito dos detentores do conhecimento tradicional associado à biodiversidade de impedir terceiros não autorizados de utilizar, realizar testes, pesquisas ou exploração, relacionados ao conhecimento tradicional associado e ainda de divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações que integram ou constituem conhecimento tradicional associado, como a utilização e exploração ilícita. Para tanto, o art. 9º, caput, da lei federal nº. 13.123/2015 dispõe que o acesso a conhecimento tradicional associado de origem identificável depende de anuência prévia de seu titular, anuência entendida como consentimento prévio informado.
Previu também o direito de perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, cujos direitos são de sua titularidade. Isso se traduz no art. 17, caput, da lei federal nº. 13.123/2015 que prevê que os benefícios resultantes da exploração econômica de produto acabado ou de material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético de espécies encontradas em condições in situ ou ao conhecimento tradicional associado, ainda que produzido fora do país, serão repartidos, de forma justa e equitativa, sendo que no caso do produto acabado o componente do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional associado deve ser um dos elementos principais de agregação de valor, em conformidade ao que estabelece a dita lei.
Os benefícios decorrentes da exploração econômica de produto ou processo, desenvolvido a partir de amostra do patrimônio genético ou de conhecimento tradicional associado, constituir-se-ão das modalidades monetária e não monetária. A modalidade não monetária inclui: projetos para conservação ou uso sustentável de biodiversidade ou para proteção e manutenção de conhecimentos, inovações ou práticas de populações indígenas, de comunidades tradicionais ou de agricultores tradicionais; transferência de tecnologias; disponibilização em domínio público de produto, sem proteção por direito de propriedade intelectual ou restrição tecnológica; licenciamento de produtos livre de ônus; capacitação de recursos humanos em temas relacionados à conservação e uso sustentável do patrimônio genético ou do conhecimento tradicional associado; e distribuição gratuita de produtos em programas de interesse social. Ato do Poder Executivo disciplinará a forma de repartição de benefícios da modalidade não monetária nos casos de acesso a patrimônio genético (art. 19, § 2º).
Quando a modalidade escolhida for a repartição de benefícios monetária decorrente da exploração econômica de produto acabado ou de material reprodutivo oriundo de acesso ao patrimônio genético, será devida uma parcela de 1% (um por cento) da receita líquida anual obtida com a exploração econômica, ressalvada a hipótese de redução para até 0,1 (um décimo) por acordo setorial (art. 20).
Como preceitua o art. 27 da lei federal nº. 13.123/2015, caso seja realizada a exploração econômica de produto ou processo desenvolvido a partir de conhecimento tradicional associado, acessado em desacordo com as disposições da lei, isso sujeitará o infrator a diversas sanções por infração administrativa contra o patrimônio genético ou contra o conhecimento tradicional associado, na forma do capítulo das sanções administrativas da lei federal nº. 13.123/2015.
Trata-se aqui de uma tutela legal da função social do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, criado, desenvolvido, detido ou conservado pelos povos indígenas e comunidades locais.
O conhecimento intelectual é eminentemente social e, em princípio, comum a todos. Reproduz-se e divide-se material cultural com uma facilidade e vontade que não são observáveis em relação a bens materiais justamente porque eles são bens públicos, no sentido econômico da palavra: ou seja, porque são bens não-rivais e não-excludentes[23]. Não há, em outras palavras, escassez natural. Estes bens são inexauríveis, e qualquer escassez que exista é hoje em dia provocada apenas artificialmente, a partir do ordenamento jurídico[24]. É difícil chamar de propriedade o que todos, pelo menos potencialmente, do mesmo podem ter sem desprover os demais. Como esclarece Thomas Jefferson, um dos pais fundadores da sociedade norte-americana e um dos primeiros responsáveis pelo escritório de patentes dos Estados Unidos:
Se a natureza produziu uma coisa menos suscetível de propriedade exclusiva que todas as outras, essa coisa é a ação do poder de pensar que chamamos de ideia, que um indivíduo pode possuir com exclusividade apenas se mantém para si mesmo. Mas, no momento em que a divulga, ela é forçosamente possuída por todo mundo e aquele que a recebe não consegue se desembaraçar dela. Seu caráter peculiar também é que ninguém a possui de menos, porque todos os outros a possuem integralmente. Aquele que recebe uma ideia de mim, recebe instrução para si sem que haja diminuição da minha, da mesma forma que quem acende um lampião no meu, recebe luz sem que a minha seja apagada[25].
O mesmo Thomas Jefferson lembrava, contudo, da necessidade de se estimular a criação de invenções “para o bem do público” e esse estímulo – para ele – só poderia ser a recompensa (com bens materiais) ao “criador”[26]. As ideias, justamente porque têm a característica de uma vez expressas serem assimiladas por todos que a recebem, devem ser especialmente protegidas, para que os criadores de ideias não fiquem desestimulados de criá-las e expressá-las. Aquele que cria a ideia deve ter o direito sobre ela, de forma que toda a vez que alguém a utilize ou a receba, ele tenha uma recompensa material. O autor de um livro deve receber os direitos autorais pela publicação e o inventor, o direito pelo uso da patente. Assim, diz a Constituição norte-americana: "O Congresso deve ter o poder de promover o progresso das ciências e das artes úteis assegurando aos autores e inventores, por um período limitado, o direito exclusivo aos seus escritos e descobertas”[27]. Com o direito exclusivo às suas criações, os autores e inventores podem explorar comercialmente as suas ideias e conseguir a justa recompensa pelo seu esforço e talento. A recompensa é o estímulo para que o criador produza ainda mais e a sociedade progrida em direção ao bem comum.
As coisas, como é o caso do conhecimento intelectual, têm uma função social em si mesmas, e cabe ao direito tutelá-las. Darcy Bessone bem esclarece a função social das coisas e sua destinação em comum, demonstrando que as coisas têm a função social vinculada a si mesmas e não às prerrogativas, porventura egoísticas, que alguns homens entendem destinarem-se somente a eles:
Seria fácil intuir-se, ainda que os historiadores do direito se omitissem a respeito, que, antes de qualquer formulação jurídica, já as coisas se submetiam ao poder do homem, como condição de fato, para o uso e gozo delas.
Convenha-se, contudo, em que, mesmo antes de qualquer experiência de direito, antes do Estado e do ordenamento jurídico, o homem já usava, gozava e dispunha materialmente das coisas.
Então, pode-se concluir que o poder de fato sobre as coisas preexistiu ao de direito.
Aconteceu, contudo, que os bens necessários ou úteis ao homem não se ofereceram, na natureza, em condições de uso e em quantidade bastante. A insuficiência engendraria lutas terríveis e destruidoras, se não se encontrassem formas de apropriação e uso, convenientemente disciplinadas. A escassez dos bens lhes conferiu sentido econômico e exigiu técnicas jurídicas que ordenassem e disciplinassem a posição do homem, em face da coisa, e as relações entre os homens, a respeito dela.
O poder de fato erigiu-se, assim, em poder de direito.
Surgiu, obviamente, o direito de propriedade como um produto cultural, uma criação da inteligência, considerada adequada à organização da vida em sociedade, isto é, da vida social. Seria contraditório que o direito subjetivo de propriedade fosse anterior ao direito objetivo, pois, na conhecida definição de Ihering, entende-se por direito subjetivo o interesse protegido pela lei, o que quer dizer que a sua caracterização requer, além do elemento material – o interesse, o elemento formal, que a lei, o direito objetivo, estabelece. Até porque Adolfo Merkl aponta, como condição prévia e necessária do direito subjetivo, a presença do direito objetivo, pois aquele é conteúdo deste.
Se o poder de fato sobre as coisas precedeu o direito objetivo, o direito de propriedade, como direito subjetivo, é conteúdo e fruto dele, como forma técnica de ordenamento da vida social.[28]
Se há uma função social do conhecimento tradicional associado à biodiversidade, criado, detido ou conservado pelos povos indígenas e comunidades locais pela qual este permite reduzir o caminho, se conseguir um “atalho” (short-cut) para o desenvolvimento de um fármaco ou medicamento útil para a humanidade, economizando milhões de dólares e anos de pesquisas científicas, essa função social (equiparável a uma “revelação” ou “descoberta”) deve ser tutelada pelo direito para que se cumpra o desiderato da proteção da propriedade intelectual, contribuir para o estímulo do progresso do conhecimento útil e necessário ao desenvolvimento da humanidade[29].
Veja-se que mesmo a tutela jurídica da descoberta não é estranha ao direito da propriedade intelectual. Nos Estados Unidos as patentes concedidas pelo escritório norte-americano de patentes (USPTO) vem-se aproximando cada vez mais do conceito de descoberta, sem utilidade industrial explícita ou de aplicação técnica. A obtenção de patentes de sequências de DNA é o melhor exemplo deste fato, sendo o argumento norte-americano para a proteção de direitos de propriedade intelectual (DPI) sobre genes, de que estes são consubstanciados em sequências de DNA, entidades reveláveis apenas por meio do intelecto humano.
Nos EUA, a legislação sobre direitos de propriedade intelectual (DPI) apresenta aprofundadas conceituações no balizamento de patentes que envolvam genômica. A expertise científica neste campo é grande e faz sentido tornar patenteáveis os descobrimentos, plantas, variedades vegetais, raças animais, microrganismos e genes que tenham sido obtidos em consequência de trabalho intelectual humano.
Os conceitos utilizados no julgamento de pedidos de patentes genômicas pelo United States Patent and Trade Office (USPTO), seguem a lógica de que genes não são encontrados isolados na natureza; formam parte de uma molécula denominada DNA; cada gene pode ser comparado a uma parte de um composto X, formado por partes menores, A, B e C. Se uma destas partes for descoberta e isolada por meio de trabalho intelectual, então ela pode ser patenteada, já que não existe sozinha na natureza. Se o composto B for isolado, e se alguma utilidade tecnológica for alcançada para ele, poderá ser patenteado, porque a atividade intelectual humana buscou seu isolamento e utilidade.
Esta interpretação, compartilhada pelo Japão, Austrália e União Européia, dissocia o conceito de natureza do conceito de ciência, facilitando a proteção de agrobiotecnologias genômicas (ABG) e dos métodos de pesquisa associados a ela[30]. Como há utilidade na descoberta, ainda que não uma aplicação industrial definida, ela cumpre o escopo da proteção da propriedade intelectual (ou sua função social), o estímulo à pesquisa para o progresso do conhecimento útil ao desenvolvimento da humanidade, e, como tal, de acordo com os parâmetros próprios do direito norte-americano, merece o privilégio da tutela jurídica temporária através da patente.
A ideia de uma função social da patente, que respeite os direitos das comunidades locais que viabilizaram a própria existência do produto, através da descoberta possibilitada por seus conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade é claramente definida na Constituição da República. A Constituição, no seu art. 5º, inciso XXXIX elege o valor social como necessário para a tutela desta espécie proprietária. A ordem constitucional vigente condiciona a proteção do invento ao interesse social e o desenvolvimento tecnológico do país. In verbis:
XXXIX: A lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes das empresas e a outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país.
Mais adiante, no art. 216, inciso III, o mesmo texto constitucional reafirma o caráter social das criações científicas (objeto das patentes), as inserindo dentro do patrimônio cultural nacional:
Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à nação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
[...]
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas.
Assim, retira-se por completo a absolutização do direito de propriedade e a condiciona a um valor social. Como bem expõe Denis Borges Barbosa:
Segundo a Constituição Brasileira vigente, a propriedade resultante das patentes e demais direitos industriais não é absoluta – ela só existe em atenção ao interesse social e para propiciar o desenvolvimento econômico e tecnológico do país. Assim, não há espaço para um sistema neutro ou completamente internacionalizado de propriedade industrial no Brasil[31].
Na verdade o art. 5º, inciso XXXIX, é um reforço à funcionalização, a qual já se percebia pela incidência do princípio da função social da propriedade (art. 5º, inciso XXIII, e 170, III) como o conteúdo de toda e quaisquer espécies proprietárias. O reconhecimento de uma patente, no contexto nacional, que não contemple a sua função social, é uma inconstitucionalidade, seja por força da aplicação genérica do art. 5º e 170, seja pela específica redação do art. 5º, XXXIX e 216, III, da Constituição Federal.
Com a evolução da biotecnologia assume relevo às informações concernentes não à vida propriamente dita, mas sim as informações contidas na matéria viva (mapeamento genético) às quais, a manipulação plurigeracional das comunidades locais, através de seus conhecimentos tradicionais, oferece uma via privilegiada de acesso.
O natural, enquanto matéria-prima – quer seja vegetal, animal ou mesmo humana –, passa a interessar pesquisadores da área de biotecnologia. A biodiversidade é alvo de investigações científicas para, a partir dela, desenvolver novos produtos e/ou serviços. A essa nova demanda do conhecimento humano, deve corresponder o atendimento às necessidades das coletividades que detém a reserva do conhecimento milenar de propriedades e usos das plantas e extratos da natureza.
Se o conhecimento intelectual é, fundamentalmente, um conhecimento de utilização comum para, tendo em vista o interesse social, o progresso do desenvolvimento tecnológico e econômico do país, cada inovação e cada descoberta deve ser estimulada. Esta é a função social da patente de invenção, um privilégio de utilização exclusiva temporária de um produto que depois, após a expiração do prazo da patente, terá seu uso estendido gratuitamente à toda a coletividade. Pela mesma razão, a revelação ou descoberta que possibilitou o patenteamento do novo produto deve ser estimulada através de mecanismos de repartição equitativa dos benefícios oriundos dessa patente.
Na nossa hipótese, do uso do conhecimento tradicional, se a este não for atribuído uma justa repartição dos benefícios, ele tenderá a ser escondido e não beneficiar de nenhum modo a totalidade da coletividade. A Carta de São Luís, expressão do pensar indígena, de dezembro de 2001, declaração subscrita por pajés, xamãs, rezadores e curandeiros, provenientes de dezenas de povos indígenas de todas as regiões do Brasil, reunidos na cidade de São Luís do Maranhão, expressam, com clareza, a posição indígena brasileira reticente quanto à revelação de conhecimentos tradicionais que não revertam em benefícios para as comunidades:
Este conhecimento é coletivo e não uma mercadoria que se pode comercializar como qualquer objeto no mercado. Nossos conhecimentos da biodiversidade não se separam de nossas identidades, leis, instituições, sistemas de valores e da nossa visão cosmológica como povos indígenas[32].
Os direitos intelectuais coletivos dos povos indígenas e comunidades locais concernentes aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, na realidade, consoante o art. 10 da lei federal nº. 13.123/2015 consistem nos direitos de: a) ter reconhecida sua contribuição para o desenvolvimento e conservação de patrimônio genético, em qualquer forma de publicação, utilização, exploração e divulgação; b) ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional associado em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações; c) conservar, manejar, guardar, produzir, trocar, desenvolver, melhorar material reprodutivo que contenha patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado; d) participar do processo de tomada de decisão sobre assuntos relacionados ao acesso a conhecimento tradicional associado e à repartição de benefícios decorrente desse acesso, na forma do regulamento; e) usar ou vender livremente produtos que contenham patrimônio genético ou conhecimento tradicional associado, observados os dispositivos das leis nº. 9.456, de 25 de abril de 1997, e 10.711, de 5 de agosto de 2003; e perceber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, nos termos da lei, cujos direitos são de sua titularidade, direitos esses cujo conteúdo econômico será o benefício econômico auferido pela empresa ou laboratório ao conseguir, através desse conhecimento um “atalho” (short-cut) no processo de obtenção de um novo produto útil e seu consequente patenteamento.
Entendido que, consoante a lei, qualquer conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado será considerado de natureza coletiva, ainda que apenas um indivíduo de população indígena ou de comunidade tradicional o detenha (art. 10, § 1º).
Deste modo, os direitos intelectuais coletivos dos povos indígenas e comunidades locais concernentes aos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade estão relacionados à transformação na forma de apropriação do conhecimento. Aquilo que era velado, restrito ao uso e ao proveito de um reduzido grupo, a comunidade local, pelo consentimento informado de seus detentores/criadores, passa a ser disponibilizado para toda a coletividade.
Essa apreensão do conhecimento se faz de uma maneira especifica. De posse da revelação do conhecimento tradicional até então velado, a empresa ou laboratório reduz a complexidade das pesquisas necessárias à obtenção de um novo produto útil, tendo, com isso, considerável proveito econômico. Esse novo produto é patenteado e, por um prazo legal de vinte anos, a empresa ou laboratório se beneficia daquilo que, por esse esforço conjunto, foi acrescido ao conhecimento de toda a sociedade. A empresa ou laboratório, em contrapartida, deverá assegurar a repartição justa e equitativa dos benefícios auferidos com aqueles integrantes detentores do conhecimento tradicional que possibilitaram a redução dos custos de desenvolvimento do novo produto.
O direito surge da mudança da forma de apropriação do conhecimento tradicional. O que era velado, restrito, passa a ser público e instrumentalizado, por terceiros, através de uma patente de invenção. Por essa forma de disponibilização do seu conhecimento e pela sua contribuição econômica no processo de desenvolvimento do produto os povos indígenas e comunidades locais devem ser beneficiados, justa e equitativamente, na exata medida de sua contribuição, para que não ocorra um enriquecimento sem causa.
Deste modo os direitos intelectuais coletivos de que estamos tratando consubstanciam-se em direitos sobre coisa alheia, ou seja, não afetam, prejudicam ou limitam o exercício dos direitos de propriedade intelectual expressos na patente (capítulo VI da lei federal nº. 13.123/2015), mas impedem a utilização e exploração ilícita do conhecimento tradicional associado e outras ações lesivas (art. 8º, da lei federal nº. 13.123/2015).
Os conhecimentos sociais tradicionais dos povos indígenas e comunidades locais funcionalizados diante do confronto com a propriedade industrial sem função social (instrumentalizada através da patente) não eliminam o direito de propriedade industrial, mas impedem a forma ilícita do seu exercício.
Assim, a patente de um produto pode ser obtida desde que se comprove a observância dos requisitos da patenteabilidade de invenção ou modelos de utilidade: a novidade, a atividade inventiva e a aplicação industrial, sendo condição de procedibilidade do pedido a suficiência descritiva. Não obstante, quando estiverem em causa, conhecimentos tradicionais associados, a concessão das prerrogativas inerentes ao direito de propriedade industrial ficará condicionada ao disposto na lei federal nº. 13.123/2015.
Deste modo, o exercício dessas prerrogativas concernentes ao privilégio da invenção, instrumentalizado pela patente, fica condicionado à indicação de origem do acesso ao conhecimento tradicional, à anuência prévia informada dos detentores/criadores desse conhecimento e à justa e equitativa repartição dos benefícios decorrentes da patente. Não cumprida a indicação de origem do acesso ao conhecimento tradicional, a anuência prévia informada dos detentores/criadores desse conhecimento e a justa e equitativa repartição dos benefícios decorrentes da patente, os titulares do conhecimento tradicional poderão, através de uma pretensão judicial ou administrativa junto ao INPI, obstaculizar o exercício das prerrogativas inerentes à patente, até que o patenteador satisfaça a obrigação legal.
O capítulo VI da lei federal nº. 13.123/2015 é expresso ao estabelecer que a exploração econômica de produto ou processo desenvolvido de conhecimento tradicional associado ou patrimônio genético, acessada em desacordo com suas disposições, sujeitará o infrator a uma série de sanções por infração administrativa contra o patrimônio genético ou contra o conhecimento tradicional associado.
Certo é então que o exercício das prerrogativas inerentes à patente não pode prosseguir, sem que sejam satisfeitos os detentores dos conhecimentos tradicionais associados em sua pretensão à justa repartição de benefícios auferidos. Portanto, um direito de terceiros que incide sobre o direito de propriedade industrial desfuncionalizado, obrigando-o à sua funcionalização. Como bem diz a lei nº. 13.123/2015, que prevê que apresentado o pedido de regularização previsto no capítulo VIII, isso autoriza a continuidade da análise de requerimento de direito de propriedade industrial em andamento no órgão competente.
Esse caráter de direito sobre coisa alheia, com vistas à sua funcionalização social, está expresso no art. 25 do Decreto nº. 8772, de 11 de maio de 2016, que regulamenta a lei nº 13.123, de 20 de maio de 2015, que dispõe sobre o acesso ao patrimônio genético, sobre a proteção e o acesso ao conhecimento tradicional associado e sobre a repartição de benefícios para conservação e uso sustentável da biodiversidade, disciplinando, entre outras questões, as sanções aplicáveis às condutas e atividades lesivas ao patrimônio genético ou ao conhecimento tradicional associado. Pela Seção III desse Decreto o exercício ilícito das prerrogativas inerentes à patente (sem observância do disposto na lei nº 13.123/ 2015) consubstancia uma série de infrações passíveis de multas, mas essas multas terão sua exigibilidade suspensa se o autuado, por termo de compromisso aprovado pela autoridade competente, obrigar-se à adoção de medidas específicas para adequar-se ao disposto na lei nº 13.123/ 2015. Cumpridas integralmente as obrigações assumidas pelo autuado, os valores das multas aplicadas com base nos arts. 19, 21, 22, 23 e 24 do Decreto no 5.459, de 7 de junho de 2005, atualizadas monetariamente, serão reduzidos em 90% (noventa por cento) do seu valor.
Em outras palavras, o exercício das prerrogativas inerentes ao direito de invenção, expressas na patente, não pode ser realizado de forma desfuncionalizada, sem a observância do direito dos povos indígenas e comunidades locais de indicação da origem do conhecimento acessado e da justa e equitativa repartição dos benefícios.
A solução aqui preconizada foi adotada pelo Ministério Público Federal no Acre, ainda no âmbito da norma regulamentar então vigente, a Medida Provisória nº. 2.186-16, que expediu recomendação ao Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), para determinar a suspensão das prerrogativas inerentes ao exercício da patente relativa à formula do sabonete de murmuru, obtido a partir do conhecimento tradicional da comunidade indígena ashaninka, do Rio Amônia, no Acre. A patente de nº PI0301420-7 foi homologada pelo proprietário da empresa Tawya Comércio de Produtos do Vale do Juruá, Fabio Fernandes Dias, localizada na cidade de Cruzeiro do Sul.
A elaboração da manteiga de murmuru se deu mediante o acesso a conhecimentos tradicionais da comunidade, quando Fabio Fernandes Dias, físico, ex-professor da Unicamp, realizava projeto de pesquisa e levantamento de produtos florestais em parceria com a organização não-governamental Núcleo Cultura Indígena, sediada em São Paulo. Ao final da pesquisa, decidiu implantar uma empresa de beneficiamento para produzir a manteiga de murmuru em escala industrial. Os índios forneceriam as sementes e teriam direito a 25% dos rendimentos obtidos pela empresa. Com isso, os ashaninka preocuparam-se em formar e capacitar a comunidade para exploração da castanha de murmuru de forma sustentável.
Segundo notícias da FAPESP, A empresa Tawya Comércio de Produtos do Vale do Juruá funcionava, inicialmente, no Vale do Juruá, mas logo foi transferida para Cruzeiro do Sul, impedindo a comunidade de participar da fabricação. A fábrica, produz 250 mil sabonetes por ano, mas tem capacidade instalada para chegar a 500 mil, e 2 toneladas de gordura, com previsão de 10 toneladas em dois anos. Segundo Fábio Fernandes Dias, "o sabonete já foi testado nos Estados Unidos, onde teve excelente aceitação". O preço médio nos Estados Unidos está estimado em US$ 3 (três dólares)[33].
Como a repartição de benefícios do produto patenteado, acessado através do conhecimento tradicional da comunidade indígena ashaninka associado ao patrimônio genético não foi efetuada, nem o registro na patente da origem do conhecimento tradicional que possibilitou a aplicação industrial em referência, cabível foi a recomendação do Ministério Público ao INPI, que objetiva resguardar os direitos e interesses dos ashaninka para fins de repartição de eventuais benefícios oriundos de produtos elaborados a partir de informações obtidas de seus conhecimentos tradicionais[34].
No que se refere à duração da proteção jurídica aos direitos intelectuais coletivos dos povos indígenas e comunidades locais concernentes à biodiversidade, há que se diferenciar esses direitos em direitos morais e direitos patrimoniais.
No que pertine aos direitos morais, sendo garantido pelo art. 10, II, da lei federal nº. 13.123/2015, à comunidade indígena e à comunidade local que criam, desenvolvem, detêm ou conservam conhecimento tradicional associado, o direito de ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações, tal direito constitui modalidade de direito moral, o direito de ter a origem do acesso ao conhecimento tradicional através da comunidade local nomeada e anunciada em toda a utilização dos produtos a ele referentes. Não se trata propriamente de direito moral de autor, na forma do art. 24, II, da lei nº. 9610/98, mas sim de outra modalidade de direito moral criada por lei, o direito moral do detentor ou guardião do conhecimento tradicional associado.
Nesse sentido, esse direito moral é: a) personalíssimo daquele povo indígena ou comunidade local, e somente ele poderá exercê-lo, coletivamente; b) irrenunciável, significando que o povo indígena ou comunidade local não pode desprezar os seus direitos morais, porque estes não pertencem apenas às pessoas existentes hoje que comungam aquele modo de vida, mas também as gerações futuras; c) imprescritível, podendo ser reclamado por via judicial a qualquer tempo; d) perpétuo; e) inalienável, pois, mesmo o povo indígena ou comunidade local cedendo seu conhecimento tradicional e estipulando o competente contrato para dispor da eventual repartição de benefícios oriundos da comercialização por terceiros de produtos obtidos através daqueles conhecimentos, conservam os detentores/guardiães do conhecimento o direito moral; f) impenhorável ou inexpropriável pela própria característica de ser inalienável; g) absoluto, por ser oponível contra todos (erga omnes); h) extrapatrimonial, pois não comporta quantificação pecuniária.
Na outra acepção dos direitos intelectuais coletivos, falando daquilo que se refere às consequências econômicas advindas do exercício desses direitos, mais precisamente o direito à repartição dos benefícios patrimoniais, não pode este ter as mesmas características do direito moral, pois atentaria contra o interesse público, concedendo privilégios de repartição de benefícios sem data de caducidade.
Como é de sabença, segundo a Constituição brasileira vigente, a propriedade resultante das patentes e demais direitos industriais não é absoluta - ela só existe em atenção ao seu interesse social e para propiciar o desenvolvimento tecnológico e econômico do país. Assim, não há espaço para um sistema neutro ou completamente internacionalizado de propriedade industrial no Brasil.
Aceitando-se como princípio que a proteção “natural” das tecnologias é o segredo[35], a criação de monopólio ou exclusividade legal para a exploração de tecnologia é um mecanismo artificial, resultante da intervenção do Estado, destinado a proteger o investimento e incentivar o desenvolvimento técnico - um instrumento de política industrial, enfim.
Em um sistema econômico de trocas algum tipo de propriedade da tecnologia é inevitável, a patente oferece a melhor relação custo/benefício social. Com efeito, ao obter a patente, o titular identifica sua tecnologia e tem que revelar, em termos tecnológicos e mesmo empresariais, algo de seu conteúdo ou das suas fronteiras. Como a patente é limitada no tempo, algum ganho sempre haverá para a sociedade, acelerando o progresso tecnológico[36].
Em outras palavras, a finalidade econômico-social do sistema é que os conhecimentos sociais das diversas tecnologias passem, a longo prazo[37], ao domínio público.
Considerando-se que o prazo para o usufruto exclusivo dos direitos inerentes à patente de um produto obtido através do acesso ao conhecimento tradicional associado é de vinte anos, o direito à repartição de benefícios com os povos indígenas ou comunidades locais, como direito acessório em relação ao primeiro, principal, também deve observar o mesmo prazo. Assim, os direitos intelectuais dos povos indígenas e comunidades tradicionais também deverão observar o disposto no artigo 5º, XXXIX, da Constituição, ou seja, a proteção a esses direitos correlatos de propriedade intelectual também terão de levar em conta o interesse social de toda a sociedade brasileira e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país, que impõe a temporalidade do uso exclusivo decorrente do conhecimento de tecnologias.
O benefício da proteção legal erga omnes através da patente e da respectiva repartição dos benefícios auferidos, impõe o correlato ônus de, a longo prazo, da disseminação do conhecimento através do domínio público. Não obstante, tais os povos indígenas e comunidades locais poderão sempre por optar por não divulgar o conhecimento tradicional, mantendo-o em segredo, tal qual o segredo industrial (art. 195, XI e XII da lei nº 9279/96), como o art. 10, IV, da lei federal nº. 13.123/2015, expressamente faculta. Deste modo, a determinação de um período de gozo do privilégio de repartição dos benefícios é o mesmo daqueles demais direitos patrimoniais advindos da proteção intelectual (direito do autor, patentes, etc.).
A alegada incompatibilidade entre direitos de propriedade intelectual e proteção aos conhecimentos tradicionais desaparece quando o interesse é a repartição dos benefícios decorrentes da utilização do direito conferido a outrem (patente do novo produto), como é o caso presente. Em outras palavras, se a opção é o reconhecimento e a remuneração pelo acesso aos conhecimentos tradicionais, acesso que possibilita o surgimento de um novo produto patenteável, há que se observar as regras de direito econômico aplicáveis aos demais privilégios existentes nas economias capitalistas, inclusive com a previsão destes conhecimentos passarem ao domínio público, após um determinado período de exploração.
Deste modo, se afigura como imprópria a confusão que se faz entre direitos morais e direitos patrimoniais decorrentes dos direitos intelectuais coletivos concernentes aos conhecimentos tradicionais associados de povos indígenas e comunidades locais para o fim de considerar os direitos patrimoniais como imprescritíveis, tais como corretamente são imprescritíveis os direitos morais[38].
No que se refere à prescrição específica para a pretensão oriunda da violação do direito à repartição de benefícios, não há prazo previsto na lei federal nº. 13.123/2015. Assim, aplica-se a regra subsidiária geral do Código Civil brasileiro, a qual determina que a prescrição ocorre em dez anos (art. 205 CC).
Concluindo, podemos dizer que os direitos intelectuais coletivos dos povos indígenas e comunidades locais sobre seus conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade se inserem na realidade maior da função social da propriedade intelectual de, tendo em vista o interesse social, de contribuir para o desenvolvimento tecnológico e econômico do país (art. 5º, XXXIX da CF).
Uma compatibilização necessária deve existir entre a preservação da biodiversidade e dos estilos de vida tradicionais de povos indígenas e comunidades locais assecuratórios da reprodução dessa biodiversidade, e o novo contexto da economia informacional, que possibilita o surgimento de novos produtos úteis à coletividade através do aproveitamento dessa biodiversidade.
A justiça social e econômica na gestão do saber tradicional não é uma decorrência automática, que surgiria de seu simples uso como mercadoria, mas sim da inclusão de princípios socialmente equânimes e ambientalmente sustentáveis ao longo de seu acesso e uso.
Sendo o saber tradicional um impulsionador (short-cut) de utilidades para novos produtos, sendo representado, retrabalhado e utilizado de maneiras novas e, até inesperadas, pelas indústrias e seus consórcios de pesquisa e desenvolvimento é necessário que o diálogo entre essas duas vertentes do conhecimento se faça de maneira proveitosa, com os menores custos de transação e devidamente tutelado pelas normas de proteção especial da lei federal nº. 13.123/2015 e da legislação de propriedade intelectual. Com a alteração das formas de apropriação desse saber e o uso de mecanismos de propriedade intelectual, abre-se um amplo caminho para o desenvolvimento de inovações tecnológicas benéficas para ambas as partes.
Há que se levar em consideração que a natureza tem um valor intrínseco para os detentores do saber tradicional e que a manutenção local desses saberes e práticas dependem do território, tradicionalmente, ocupado por essas populações e que a dinâmica do saber tradicional interna a essas comunidades frequentemente observa um conjunto de regramentos costumeiros que determina e condiciona o uso desse saber, e possibilita a manutenção das estruturas e práticas sociais de cada população.
A compreensão e o respeito dessa singularidade do saber tradicional são essenciais, por isso se ressalta a natureza singular dos novos direitos intelectuais coletivos como direitos morais e materiais.
Direitos morais personalíssimos, irrenunciáveis, imprescritíveis, perpétuos, inalienáveis, impenhoráveis, absolutos e extrapatrimoniais de ter nominada a origem do conhecimento, sua titularidade e integridade em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações que tiverem sido originadas através do acesso aos conhecimentos tradicionais associados.
Direitos patrimoniais de repartição dos benefícios que também deverão observar o disposto no artigo 5º, XXXIX, da Constituição, ou seja, a proteção a esses direitos correlatos de propriedade intelectual também terão de levar em conta o interesse social de toda a sociedade brasileira e o desenvolvimento tecnológico e econômico do país, que impõe a temporalidade do uso exclusivo decorrente do conhecimento de tecnologias.
Notas e Referências:
[1] DIEGUES, Antonio Carlos org. et al. Os saberes tradicionais e a biodiversidade no Brasil. São Paulo: Universidade de São Paulo. 2000, p. 33.
[2] GAMA-CERQUEIRA, J. A. Tratado da propriedade industrial. v. 1., 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982, p. 222.
[3] Idem, p. 222.
[4] O período de exploração exclusiva, no Brasil, é de 20 anos, contado a partir da data do depósito ou, no mínimo, de 10 anos, a contar da data de concessão. No caso de sistema sui generis, como no caso de proteção a cultivares, este período pode ser de apenas 15 anos.
[5] No Brasil, o órgão público competente para a expedição de patentes é o Instituto Nacional de Propriedade Industrial – INPI.
[6] DAL POZ, Maria Ester Soares. Redes de inovação em biotecnologia: genômica e direitos de propriedade intelectual. Tese. (Doutorado em Política Científica e Tecnológica). UNICAMP. Campinas, SP.: UNICAMP, 2006, p. 108-109.
[7] Conceito semelhante ao utilizado pela maioria das legislações de outros países; em inglês: the state of the art.
[8] Ou seja, o estado da técnica não contempla a dimensão geográfica do mundo.
[9] Não são consideradas como “estado da técnica” as divulgações realizadas pelo próprio inventor ou as que o tenham como fonte direta ou indireta das informações. Esta disposição visa preservar as informações que, porventura, estejam incluídas nos depósitos de pedido de patente efetuados dentro de um período de 12 meses anteriores ao depósito da patente em questão.
[10] DIAFÉRIA, Adriana. Patentes de genes humanos e a tutela de interesses difusos: o direito ao progresso econômico, científico e tecnológico. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 42-43.
[11] Por técnico no assunto deve entender-se aquele com mediana experiência e conhecimento, e não um experto ou técnico com elevadíssimo e vasto conhecimento técnico na área.
[12] Modelo de Utilidade diferencia-se da patente pelo fato de não se exigir dele plena atividade inventiva. Refere-se necessariamente a um objeto de uso prático, ou parte deste, que proporcione certa melhoria de uso ou fabricação.
[13] DIAFÉRIA, Adriana. op. cit., p. 50-51.
[14] A Noruega e o Reino dos Países Baixos pediram ao Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, em outubro de 1998, através do Processo nº. C-377/98, nos termos do artigo 173 do Tratado CE (que passou, após alteração, a artigo 230 CE), a anulação da Directiva 98/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 6 de Julho de 1998, relativa à proteção jurídica das invenções biotecnológicas. Argumentavam a Noruega e a Holanda, dentre outras coisas, que o próprio objeto da Diretiva, que consiste em tornar patenteáveis as invenções biotecnológicas em todos os Estados-Membros, é contrário à partilha justa e equitativa dos benefícios que advêm da utilização dos recursos genéticos, que é um dos objetivos da CDB.
Considerou, todavia, o Tribunal que os riscos invocados pelos recorrentes são-no em termos hipotéticos e não resultam diretamente das disposições da Diretiva, mas, quando muito, da utilização que desta poderia ser feita. Com efeito, disse o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, que não se pode ter por estabelecido, na falta da demonstração que se verifica no caso em apreço, que o simples fato de proteger com uma patente as invenções biotecnológicas teria por consequência, como é sustentado, privar um país em desenvolvimento da capacidade de controlar os seus recursos biológicos e de ter acesso aos seus conhecimentos tradicionais, ou que teria por consequência favorecer a monocultura ou desencorajar os esforços nacionais e internacionais de conservação da biodiversidade.
Disciplinou naquela ocasião o Tribunal que, se o artigo 1° da CDB tem por objetivo a partilha justa e equitativa dos benefícios que advêm da utilização dos recursos genéticos, designadamente através do acesso adequado a esses recursos e da transferência apropriada das tecnologias relevantes, esclarece que isto será alcançado tendo em conta todos os direitos sobre esses recursos e tecnologias. Nenhuma disposição da CDB prevê como condições para a atribuição de uma patente a invenções biotecnológicas que sejam tidos em conta os interesses dos países dos quais os recursos genéticos são originários ou a existência de medidas de transferência tecnológicas. Disponível em: < http://curia.europa.eu/pt/transitpage.htm> Acesso em 09 de março de 2017. Deste modo, consoante o Tribunal de Justiça das Comunidades Européias, a existência de interesses dos países e das comunidades locais de partilha justa e equitativa dos benefícios oriundos do acesso aos conhecimentos tradicionais associados e de transferência apropriada das tecnologias relevantes, não é obstáculo para a obtenção de patentes de invenção por terceiros, desde que o exercício dos privilégios outorgados pela patente respeite os direitos das comunidades locais sobre esses recursos e tecnologias, nomeadamente o direito à partilha justa e equitativa dos benefícios oriundos do acesso aos conhecimentos tradicionais associados.
[15] Por exemplo, o povo Wapixana vive em terras situadas em Roraima e na Guiana Inglesa. Entre as tradições deste povo indígena, transmitidas oralmente ao longo de inúmeras gerações, está a pesca com a utilização de ma planta denominada cunani. Os Wapixana misturam as folhas desta planta com mandioca, formando uma massa que é usada como isca para peixe. Quando a ingerem, os peixes começam a pular e são facilmente capturados. Para controlar hemorragias, disenterias e malária, os Wapixana utilizam outra planta, denominada tipir (ou biribiri), de grande valor medicinal.
[16] FARNSWORTH, N. R. Testando plantas para novos remédios. In: WILSON, E. O. (Orgs.). Biodiversidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
[17] BALICK, M. J. et al. Valuation of extractive medicines in tropical forests: exploring the linkage to conservation. In: MEFFE, G. K.; CARROLL, R. C. Principles of Conservation Biology. Sunderland: Sinauer Associates, 1994.
[18] É a substância existente na formulação do medicamento, responsável pelo seu efeito terapêutico.
[19] MORAN, K. & KING, E. R. & CARLSON, T. J. Biodiversity prospecting: lessons and prospects. Annual Review of Anthropology, Palo Alto, v. 30, p. 505-526, 2001, p. 512.
[20] Com relação à efetividade dos tratamentos à base de plantas empregados pelos indígenas, Von Martius comenta: “O efeito das compressas de ervas frescas que algumas vezes vimos os médicos indígenas empregarem nas úlceras malignas foi tão rápido e eficaz que atingiu as raias do maravilhoso” (p. 233). No que se refere à busca da origem do saber indígena relacionado às plantas, discorre: “[...] nenhum conhecimento seguro explica onde o aborígene brasileiro as encontrou, nem quando e como, pela primeira vez as utilizou. (...) Sem dúvida, recebeu a orientação essencial pelo sentido da analogia que se acha no íntimo da natureza humana”. (p. 286). MARTIUS, C. F. von. Natureza, doenças, medicina e remédios dos índios brasileiros (1844). Rio de Janeiro: Nacional, 1939, p. 233 e 286.
[21] PLOTKIN, Mark. J. A perspectiva para os novos produtos agrícolas e industriais dos trópicos. In: WILSON, E. O. (org.). Biodiversidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997, p. 143-147, passim.
[22] Lei Federal nº. 13.123/2015. Art. 47. A concessão de direito de propriedade intelectual pelo órgão competente sobre produto acabado ou sobre material reprodutivo obtido a partir de acesso a patrimônio genético ou a conhecimento tradicional associado fica condicionada ao cadastramento ou autorização, nos termos desta Lei.
[23] Bens são excludentes se for relativamente fácil excluir indivíduos de consumi-los uma vez produzidos, e não-excludentes se for impossível ou muito custosa a exclusão. São não-rivais se o consumo de uma unidade adicional do bem implicar custo marginal social zero. (NICHOLSON, Walter. Microeconomic theory: basic principles and extensions, 8th ed. Sem local: South-Western/Thomson Learning, 2002, p. 670-671). Bens públicos puros são ao mesmo tempo não-rivais e não-excludentes. Mas basta que um bem seja estritamente não-rival para que seja considerado público (outro nome utilizado para designar um bem público excludente é club good). Ver SAMUELSON, Paul. The pure theory of public expenditure. The review of economics and statistics, v. 36, n. 4, p. 387-389; BUCHANAN, James M. An economic theory of clubs. Economica, v. 32, n. 165, p. 1-14; HESS, Charlotte; OSTROM, Elinor. Introduction: An Overview of the Knowledge Commons. In: Understanding knowledge as a commons: from theory to practice. Cambridge: MIT Press, 2006; BENKLER, Yonchai. The wealth of networks: how social production transforms markets and freedom. New Haven: Yale University Press, 2006, p. 35-36.
[24] Os suportes físicos do conteúdo, naturalmente escassos, nunca foram pleno óbice para sua reprodução. No passado, constituíam obstáculo de força variável (copiar um poema à mão, por exemplo, é mais fácil do que copiar um livro). Nos dias de hoje, contudo, digitalização e mídia barata de armazenamento permitem duplicação inesgotável de conteúdo a custos extremamente baixos e, dependendo do caso, tendentes a zero.
[25] Carta de Thomas Jefferson para Isaac McPherson de 13 de agosto de 1813. JEFFERSON, Thomas. The Writings of Thomas Jefferson. v. 13. Washington: Thomas Jefferson Memorial Association, 1905, p. 333-335.
[26] Ou, no caso que estamos nos referindo, dos conhecimentos tradicionais associados à biodiversidade, ao descobridor.
[27] Cláusula de direitos autorais e de patentes da Constituição norte-americana, art. I, § 8, cl. 8.
[28] BESSONE, Darcy. Direitos reais. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996, p.52-53.
[29] Como se pode verificar das pesquisas científicas, as chances de se encontrar um composto ativo numa planta rastreada a partir de uma informação etnobotânica é mais de mil vezes maior do que as chances das técnicas de rastreamento randômicas convencionais. ELISABETSKY, E. Etnofarmacologia como ferramenta na busca de substâncias ativas. In: SIMÕES, C. M. O. (Org.). Farmacognosia: da planta ao medicamento. 6. ed. Porto Alegre / Florianópolis: UFRGS, 2010, p. 95.
[30] DAL POZ, Maria Ester Soares. Redes de inovação em biotecnologia: genômica e direitos de propriedade intelectual. Tese. (Doutorado em Política Científica e Tecnológica). UNICAMP. Campinas, SP.: UNICAMP, 2006, p. 155.
[31] BARBOSA, Denis Borges. Uma introdução à propriedade intelectual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003, p. 627.
[32] CARTA DE SÃO LUÍS DO MARANHÃO. Cópia em reprografia, São Luís do Maranhão, 06.12.2003.
[33] FAPESP Pesquisa On Line. Murumuru disputa mercado nos EUA. Edição Impressa 75. Maio de 2002. Disponível em: <http://www.revistapesquisa.fapesp.br/?art=1089&bd=4&pg=1&lg=> Acesso em 11 de março de 2017.
[34] Associação Ashaninka do Rio Amônia. FONSECA, Fabiana. MPF/AC recomenda a quebra de patente do sabonete de murmuru. Disponível em: < http://apiwtxa.blogspot.com/> Acesso em 11 de março de 2017.
[35] Tal se dá porque a propriedade das informações não é natural - resulta de uma concessão do Estado que, por meio do sistema de patentes, objetiva conseguir a circulação das informações tecnológicas. A doutrina e a jurisprudência dão à patente um valor constitutivo da propriedade industrial, e não somente probatória. Em outras palavras, a exclusividade de fato não se transforma em monopólio de direito, a não ser quando o detentor da informação solicita as vantagens, e se sujeita às desvantagens do sistema de patentes.
[36] BARBOSA, Denis Borges. O valor social das patentes de invenção. Palestra. Anais do III Encontro de Propriedade Intelectual e Comercialização de Tecnologia, Rio de Janeiro, 24, 25 e 26 de julho de 2000, Rede de Tecnologia do Rio de Janeiro, Associação Brasileira das Instituições, de Pesquisa Tecnológica - ABIPTI, Instituto Nacional da Propriedade Industrial – INPI. Disponível em: <http:// denisbarbosa.addr.com/39.rtf> Acesso em 11 de março de 2017.
[37] No Brasil, o período de exploração exclusiva para as patentes é de 20 anos, e, a partir daí, o conhecimento cai em domínio público.
[38] CARTA DE SÃO LUIS DO MARANHÃO
Nós representantes indígenas no Brasil pluriétnico onde vivem 220 povos, falando 180 línguas distintas entre si, com uma população de 360 mil indígenas, ocupando 12% do território brasileiro, reunidos na cidade de São Luís do Maranhão, de 04 a 06 de dezembro de 2001, para discutir o tema “A Sabedoria e a Ciência do Índio e a Propriedade Industrial”, convidados pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), declaramos:
(..)
15. Propomos que se adote um instrumento universal de proteção jurídica dos conhecimentos tradicionais, um sistema alternativo, sistema sui generis, distinto dos regimes de proteção dos direitos de propriedade intelectual e que entre outros aspectos contemple: o reconhecimento das terras e territórios indígenas, conseqüentemente a sua demarcação; o reconhecimento da propriedade coletiva dos conhecimentos tradicionais como imprescritíveis e impenhoráveis e dos recursos como bens de interesse público; com direito aos povos e comunidades indígenas locais negarem o acesso aos conhecimentos tradicionais e aos recursos genéticos existentes em seus territórios; do reconhecimento das formas tradicionais de organização dos povos indígenas; a inclusão do princípio do consentimento prévio informado e uma clara disposição a respeito da participação dos povos indígenas na distribuição eqüitativas de benefícios resultantes da utilização destes recursos e conhecimentos; permitir a continuidade da livre troca entre povos indígenas dos seus recursos e conhecimentos tradicionais. Disponível em: < http://www.amazonlink.org/gd/diversidade/SenadoraMarinaPORT.doc> Acesso em: 11 de março de 2017.
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Imagem Ilustrativa do Post: Earth // Foto de: Kevin Gill // Sem alterações
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