A Multa Astreinte e sua eventual redução quanto aos valores vencidos no novo Código de Processo Civil – Por Ana Luísa Fioroni Reale

20/12/2016

Coordenador: Gilberto Bruschi

As astreintes correspondem a importante instrumento de coerção no que toca à satisfação das obrigações. Sob forte inspiração francesa, veio regulamentada pelo sistema processual civil brasileiro objetivando o cumprimento das decisões judiciais.

Trata-se de uma multa pecuniária a ser imposta pelo juiz, de ofício ou a requerimento da parte, destinada a atuar no psicológico do réu/executado, no sentido de fazer com que ele cumpra determinada obrigação, que pode ser de entrega de coisa, fazer e não fazer, e, agora, de acordo com o novo Código de Processo Civil, de pagamento de quantia, sob pena de ter que arcar com o valor dessa multa fixada, não havendo o cumprimento espontâneo desta obrigação.

Dentre outros valores estabelecidos por nossa Constituição Federal, ela está atrelada ao princípio da efetividade do processo, no que diz respeito à ideia de que processo efetivo é aquele que conta, também, com o cumprimento dos comandos emitidos pelo judiciário. E a multa veio regulamentada com este intuito, considerada como importante técnica processual voltada ao cumprimento de decisões judiciais.

A tutela jurisdicional precisa ser prestada de modo adequado pelo Estado, já que impediu às partes a realização da justiça pelas próprias mãos, assumindo o monopólio da jurisdição na resolução dos conflitos de interesses.

Com relação à prestação da tutela jurisdicional efetiva, José Roberto dos Santos Bedaque expõe:

Ineficácia ou inefetividade da tutela jurisdicional representa verdadeira denegação dessa mesma tutela, pois não confere ao titular do direito a proteção a que se propôs o Estado, ao estabelecer o monopólio da jurisdição. Direito à tutela jurisdicional, como garantia constitucional (CF, art. 5º, inciso XXXV), significa direito à tutela efetiva, o que somente se torna possível se houver instrumentos adequados para alcançar esse resultado. [1]

As reformas do processo, cada vez mais, buscam mecanismos para que se concretize o direito do litigante dentro de um espaço de tempo razoável, necessário para o deslinde da causa, respeitando-se todas as garantias constitucionais, tanto do autor como do réu, e a multa astreinte atua neste sentido, como mecanismo destinado a se fazer cumprir um comando jurisdicional, para que se tenha o respeito e, consequentemente, a autoridade das decisões judiciais.

Inclusive, neste mesmo sentido, o artigo 4º do novo Código de Processo Civil que regulamenta o princípio do Acesso à Justiça não elucida, apenas, que o jurisdicionado tem direito à prolação de uma decisão, mas, muito além disso, que esse seu direito seja realizado, que a pacificação aconteça em concreto, visando a satisfação daqueles que buscam o poder judiciário. Isso significa dizer que a entrega da tutela jurisdicional se dá mediante atos de acertamento e de realização do direito posto em jogo.

Pelo fato de não constar da lei um parâmetro exato que o juiz deva considerar para fixar a multa astreinte, alguns questionamentos a seu respeito, surgem, inevitavelmente.

É o artigo 537 do novo regramento processual civil que regulamenta o instituto de modo específico. Pela sua redação, e já considerando o entendimento da doutrina e jurisprudência sobre o assunto, o juiz poderá fixar a multa, de ofício ou a requerimento da parte, em procedimento cognitivo, executivo, em tutela provisória ou na sentença, desde que seja compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para o cumprimento da decisão.

Neste sentido, é o artigo em referência, a saber:

Art. 537.  A multa independe de requerimento da parte e poderá ser aplicada na fase de conhecimento, em tutela provisória ou na sentença, ou na fase de execução, desde que seja suficiente e compatível com a obrigação e que se determine prazo razoável para cumprimento do preceito.

§ 1o O juiz poderá, de ofício ou a requerimento, modificar o valor ou a periodicidade da multa vincenda ou excluí-la, caso verifique que:

I - se tornou insuficiente ou excessiva;

II - o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.

§ 2o O valor da multa será devido ao exequente.

§ 3º  A decisão que fixa a multa é passível de cumprimento provisório, devendo ser depositada em juízo, permitido o levantamento do valor após o trânsito em julgado da sentença favorável à parte.  (Redação dada pela Lei nº 13.256, de 2016) (Vigência)

§ 4o A multa será devida desde o dia em que se configurar o descumprimento da decisão e incidirá enquanto não for cumprida a decisão que a tiver cominado.

§ 5o O disposto neste artigo aplica-se, no que couber, ao cumprimento de sentença que reconheça deveres de fazer e de não fazer de natureza não obrigacional. [2]

Muito embora este artigo trate a respeito da multa Astreinte, ele não estabelece parâmetros muito definidos para essa eventual fixação. A doutrina e a jurisprudência, na realidade, é que indicam alguns critérios que deve o juiz levar em consideração para essa ponderação. Temos, então, que deve levar em conta critérios de proporcionalidade e razoabilidade, a condição econômica do réu, bem como sua capacidade de resistência no tocante ao cumprimento da obrigação. [3]

Diante disso, quais seriam os limites para a fixação da multa astreinte? Se fixada em valor excessivamente elevado poderá acarretar o enriquecimento ilícito do credor, situação não desejada por nosso ordenamento jurídico; se fixada em valor não tão elevado, pode fazer com que não cumpra sua finalidade coercitiva.

Segundo doutrina majoritária, a multa deve ser fixada em valor elevado, obviamente considerando a situação fática, o caso concreto, mas em valor suficiente para forçar a parte devedora a cumprir efetivamente o comando contido na decisão judicial. Estabelece a lei, no entanto, que poderá haver a modificação do valor da multa fixada, para mais ou para menos, a fim de que se adeque à obrigação específica.

Infelizmente, vemos, não raras vezes, o devedor aguardar muito tempo, não se posicionando no momento oportuno ético sobre a impossibilidade do cumprimento da obrigação principal, permitindo que a multa atinja um patamar elevado, alegando, então, o não atendimento do comando contido na decisão em razão de seu valor desproporcional e desarrazoado, apontando o enriquecimento ilícito do credor, já que não incide sobre a multa a coisa julgada.

Nos posicionamos no sentido de que se isso eventualmente ocorrer, não estaríamos diante de um enriquecimento sem causa, muito pelo contrário, é dever da parte colaborar para que a justiça se dê, para que o processo se desenvolva regularmente com a efetividade necessária à entrega concreta da tutela jurisdicional. Parece-nos não competir ao credor a incumbência de se manifestar diante de uma fixação a longo prazo das astreintes. Ele é o destinatário do cumprimento do preceito e pretende que o mesmo seja cumprido o quanto antes.

As partes devem cooperar para o desenvolvimento do processo. Essa regra vem estampada, expressamente, em nosso novo diploma processual civil, artigo 6º. Porém, não é viável eximir o devedor a responsabilidade que ele tem de informar ao judiciário, por qualquer meio, que não possui condições de cumprir a obrigação na forma específica. O sistema processual caminhou a ponto de conquistar instrumentos de efetivação do direito do credor, diante de uma situação em que ele tenha direito ao cumprimento da obrigação, não podendo esse mesmo sistema lhe impor algo que não lhe compete. Não seria um enriquecimento ilícito, mas sim, lícito. Ou seja, há neste caso uma causa legal e legítima para a ocorrência de eventual prejuízo e enriquecimento neste sentido.

No tocante a esta questão, o novo Código de Processo Civil, em seu artigo 537, §1º, estabelece que a modificação do valor ou da periodicidade da multa pode ocorrer quanto às obrigações vincendas, quando seu valor se tornou insuficiente ou excessivo; ou quando o obrigado demonstrou cumprimento parcial superveniente da obrigação ou justa causa para o descumprimento.

Parece-nos que, pelo menos em regra, a alteração do valor da astreinte deve produzir efeitos ex nunc, não atingindo as prestações já vencidas, apenas as vincendas. Se pensarmos em sua eficácia ex tunc, pelo menos como regra geral, detectaríamos visivelmente um esvaziamento do caráter coercitivo da multa, pois o devedor teria conhecimento de que pode contar com sua redução de forma retroativa, o que facilitaria condutas de sua parte de descaso e desídia, permitindo o acúmulo consciente e até mesmo desejado de seu valor.

Segundo pensamos, e há vários julgados neste sentido, para eventual redução do valor das astreintes deve o julgador considerar os parâmetros de razoabilidade e proporcionalidade no momento de fixação da multa e não o seu valor final. Se ela foi fixada com base em parâmetros razoáveis e se avoluma diante do não cumprimento da decisão, entendemos não ser razoável sua redução. Já, se fixada de modo desarrazoado, poderia, nos termos da lei, haver sua adequação.

Neste sentido, citamos o AgRg no Ag em REsp 828.198 – 3ª Turma – j. 23/8/2016, a saber:

A apuração da razoabilidade e da proporcionalidade do valor da multa diária deve ser verificada no momento da sua fixação, em relação ao da obrigação principal, uma vez que a redução do montante fixado a título de astreinte, quando superior ao valor da obrigação principal, acaba por prestigiar a conduta de recalcitrância do devedor em cumprir a decisão judicial e estimula a interposição de recursos a esta Corte para a redução da sanção, em total desprestígio da atividade jurisdicional das instância ordinárias. Precedente. Inafastável a incidência da Súmula nº 83 do STJ…

… A Terceira Turma desta Corte, no julgamento do REsp nº 1.475.157/SC, de relatoria do Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, firmou entendimento de que a apuração da razoabilidade e da proporcionalidade do valor da multa diária deve ser verificada no momento de sua fixação em relação ao da obrigação principal, uma vez que a redução do montante total a título de astreinte, quando superior ao valor da obrigação principal, acaba por prestigiar a conduta de recalcitrância do devedor em cumprir as decisões judiciais, bem como estimula a interposição de recursos com esse fim a esta Corte, em total desprestígio da atividade jurisdicional das instância ordinárias.

Em suma, se deve ter em conta o valor da multa diária inicialmente fixada e não o montante total alcançado em razão da demora no cumprimento da decisão…

se o deslocamento do exame da proporcionalidade e razoabilidade da multa diária, em cotejo com a prestação que deve ser adimplida pela parte, for transferido para o momento de sua fixação, servirá de estímulo ao cumprimento da obrigação, na medida em que ficará evidente a responsabilidade do devedor pelo valor total da multa, que somente aumentará em razão de sua resistência em cumprir a decisão judicial.

5. Sob esse prisma, o valor total fixado a título de astreinte somente poderá ser objeto de redução se fixada a multa diária em valor desproporcional e não razoável à própria prestação que ela objetiva compelir o devedor a cumprir, nunca em razão do simples valor total da dívida, mera decorrência da demora e inércia do próprio devedor.

6. Esse critério, por um lado, desestimula o comportamento temerário da parte que, muitas vezes e de forma deliberada, deixa a dívida crescer a ponto de se tornar insuportável para só então bater às portas do Judiciário pedindo a sua redução, e, por outro, evita a possibilidade do enriquecimento sem causado credor, consequência não respaldada no ordenamento jurídico.[...].

8. Recurso especial parcialmente provido. (REsp 1.475.157/SC, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE. [4]

A título de conclusão, em recente decisão proferida, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça pretendeu definir alguns critérios para a fixação das astreintes. No voto, adotou-se os parâmetros da razoabilidade e proporcionalidade em correspondência ao valor da obrigação principal, para eventual redução da multa fixada.

A relatora do Recurso em referência, Ministra Maria Isabel Gallotti consigna, em seu voto, critérios que devem ser levados em conta para redução da multa, apontando o valor da obrigação e a importância do bem jurídico tutelado; o tempo para cumprimento; a capacidade econômica e de resistência do devedor e, por fim, a possibilidade de adoção de outros meios pelo magistrado e dever do credor de mitigar o próprio prejuízo. [5]

Conforme já exposto, reduzir o valor da multa levando em consideração o valor da obrigação corresponde a um retrocesso, situação que vinha regulamentada pelo Código de Processo Civil de 1939 quanto à fixação das astreintes; bem como atribuir ao credor qualquer tipo de responsabilidade quanto à sua incidência.

Parece-nos o posicionamento da 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça mais acertado, no sentido de considerar o momento em que a multa foi fixada para eventual detecção de excesso e consequente redução.

Este valor deve ser razoável e proporcional ao cumprimento da obrigação, por isso a lei não estabeleceu valor específico, deixando ao critério do juiz sua aferição. Ele deve fixá-lo considerando o caso específico e a possibilidade do cumprimento da obrigação para o exercício da pressão coercitiva dentro do que se pode alcançar.


Notas e Referências:

[1] BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas Sumárias e de Urgência. 3ª ed. Malheiros: São Paulo, 2003. p. 25.

[2] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm.

[3] O CPC de 1939 regulamentava que a multa pecuniária não poderia superar o valor da obrigação a que estivesse vinculada. Esta era a redação do artigo 1005 deste diploma. Mesmo não tendo o CPC de 1973 repetido essa norma, as astreintes foram equiparadas à pena convencional do artigo 920 do Código Civil de 1916, circunstância em que muitas decisões foram proferidas restringindo o valor das astreintes ao valor da obrigação, de modo equivocado, segundo pensamos.

[4] STJ - AgRg no Ag em REsp 828.198 - 3.ª Turma - j. 23/8/2016 - julgado por MOURA RIBEIRO. Superior Tribunal de Justiça. Conteúdo Exclusivo WEB | Ago / 2016 | JRP\2016\11038. 

[5] https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.2&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201501628853.

BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela Cautelar e Tutela Antecipada: Tutelas Sumárias e de Urgência. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

BRASIL, Lei 8.069 de 13 de julho de 1990. Presidência da República. Casa Civil. Subchefia para assuntos jurídicos. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069.htm. Acesso em 10 de dezembro de 2016.

Disponível em: https://ww2.stj.jus.br/processo/pesquisa/?src=1.1.2&aplicacao=processos.ea&tipoPesquisa=tipoPesquisaGenerica&num_registro=201501628853. Acesso em 10 de dezembro de 2016.

STJ - AgRg no Ag em REsp 828.198 - 3.ª Turma - j. 23/8/2016 - julgado por MOURA RIBEIRO. Superior Tribunal de Justiça. Conteúdo Exclusivo WEB | Ago / 2016 | JRP\2016\11038.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Coins, coins, coins! // Foto de: Adriano Makoto Suzuki // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/makoto-suzuki/8678674875

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura