A moto e o acaronado ladrão?

25/12/2015

Por Charles M. Machado – 25/12/2015

Em 2007, eu fiz minha primeira visita à China, país exuberante em que a primeira imagem que me saltava aos olhos, eram famílias inteiras em cima de uma moto, algo muito comum aqui também, no interior brasileiro. Em 2009, por força dos negócios, eu resolvi morar na China. Qual não foi minha surpresa, que as centenas de motos que eu havia visto, ao menos na cidade de DongGuan, onde resolvi morar, tinham simplesmente desaparecido. Consultei meu cunhado chinês, que de imediato, explicou-me o que havia acontecido, mas eu, incrédulo, resolvi pesquisar a versão que ele havia me contado, e que, para meu espanto, era pura realidade.

Estavam ocorrendo diversos assaltos a lojas e pessoas com motos e seus respectivos garupas, e logo, algumas prefeituras, proibiram as motos, o que é fantástico, a total usurpação do direito de propriedade e de ir e vir de milhões de chineses, por força de uma Lei Municipal e o mais fantástico, no País da pena de morte, tudo ocorreu sem nenhum protesto. Basta uma viagem de trem entre DongGuan e Guangzhou que você avistará milhares de motos apreendidas. Naquela época, eu tentei imaginar: o que ocorreria se algo assim fosse tentado no Brasil?

Como nada é tão ruim, que não possa ser piorado, eis que no último mês do ano surge a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo, através do Projeto de Lei N° 71 de 2013, com o objetivo de regulamentar o trânsito de motocicletas com carona, no âmbito do Estado de São Paulo, com o seguinte teor:

Artigo 1º - Fica regulamentado o trânsito de motocicletas com dois ocupantes, chamados “carona” ou “garupa” conforme parágrafo único.

Parágrafo único – O trânsito de motocicletas com dois ocupantes fica proibido durante os dias úteis da semana compreendidos entre segunda a sexta feiras nos horários das 10:00 às 16:30 e das 23:00 às 5:00 horas.

Com o propósito de combater a violência, o Legislador Estadual entende que ao proibir a carona, diminui os assaltos nas saídas de banco, o curioso é que se combate a violência através da supressão das garantias individuais e com a presunção de culpa de todo acaronado, pessoa que recebe a carona.

A limitação fere diversos dispositivos constitucionais, vejamos então:

“Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I -..........;

II - cidadania;

III - a dignidade da pessoa humana;

A construção do conceito de cidadania, é feita com o respeito indiscriminado das pessoas, seja para os que utilizam a motocicleta como trabalho, moto-taxi, ou como meio de locomoção em resposta ao caótico trânsito das grandes cidades e a baixa qualidade do transporte coletivo, o que acaba por compelir as pessoas de menor renda para o meio de locomoção mais rápido e barato. Não se constrói a cidadania com a usurpação dos valores constitucionais e de mãos dadas com o preconceito e presunção de culpa, como quem define um tipo Lambrosiano.

No instante que a Lei desiguala o cidadão que anda de moto, fere também o princípio da dignidade humana, na medida em que o acaronado da motocicleta terá de utilizar outro meio de locomoção pela presunção de caráter e intensão do segundo ocupante da moto. O mesmo não ocorre com carros com dois ocupantes, ou quem sabe vamos presumir que automóvel com quatro ocupantes em horário bancário presume formação de quadrilha? A dignidade Humana, também está protegida no primeiro artigo da nossa Magna Carta.

Sobre duas rodas as pessoas se locomovem e não podem escolher horários. Imagine uma equipe que faz manutenção em aparelho de ar condicionado, calefação e tantos outros serviços que utilizam a motocicleta como meio de transporte? A Magna Carta em seu primeiro artigo, inciso IV, estabelece os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.

Logo, o cerceamento dessa locomoção para atividades laborais fere a Magna Carta, também ao criar dificuldade para quem trabalha de moto.

A Constituição Federal ainda prevê, como objetivos fundamentais:

Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:

I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;

II - garantir o desenvolvimento nacional;

III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação

Não se atinge nenhum desses objetivos ao se limitar cidadãos de transitar livremente, com a presunção de culpa, e logo tal discriminação é vedada.

No capítulo das garantias individuais o legislador Constituinte vai além:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

XIII - é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer"

Qualquer vedação que não tenha como critério de discrímen, conduta objetiva, e valor sopesado para proteger, é vedada pela Magna Carta, constituindo-se de forma clara, limitador ao exercício profissional.

As limitações à locomoção em todo território nacional, decorrem apenas das previstas na Magna Carta, o que não é o caso. A Constituição Federal sobre isso é clara, no artigo 5° das Garantias individuais:

“ XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;"

Fere-se ainda, o Direito de propriedade, pois esses veículos automotores pagam IPVA, como qualquer um outro no Estado de São Paulo e suas limitações de uso devem estar previstas no Código Nacional de Trânsito. Previsão normativa que cria limitação ao Direito de Propriedade, fere frontalmente a Constituição, como previsto no artigo 5°, capítulo das garantias individuais:

“ XXII - é garantido o direito de propriedade”

A norma estadual ainda regulamenta, os horários de sábados, feriados e domingos, para circulação:

“ Artigo 2º - Ficam liberados os sábados, domingos e feriados, bem como os demais horários.”

De acordo com a norma, em total afronto ao Código Nacional de Trânsito, motociclista só pode circular acompanhado nos finais de semana e fora das horas úteis.

Algumas medidas estão corretas e são úteis para o trabalho policial, como “Artigo  3º - Torna-se obrigatório o uso de capacetes e coletes com o número da placa da motocicleta afixado na parte de trás dos mesmos em dimensões e cor fluorescente que o mantenha legível, inclusive à noite.”

Como não poderia deixar de ser, existe uma norma punitiva pecuniária para quem descumprir:

“ Artigo  4º - O descumprimento do determinado no caput do artigo 1º bem como em seu Parágrafo Único e no caput do artigo 3º da presente lei acarretará ao infrator a imposição de multa, no valor de R$ 130,00 (cento e trinta reais) para cada uma das infrações cometidas.

Parágrafo único – O valor da multa de que trata este artigo será atualizado, anualmente, pela variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo – IPCA, apurado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE, acumulada no exercício anterior, sendo que, no caso de extinção desse índice, será adotado outro índice que reflita a perda do poder aquisitivo da moeda.

A competência para executar o cumprimento dessa norma, como já ocorre nas multas de trânsito, é exercido pela polícia militar do Estado e pelos Guardas Municipais e agentes de trânsito:

“Artigo  5º - O controle e a fiscalização da aplicação desta Lei ficará a cargo do Poder Executivo Estadual e Municipal.”

Se o objetivo da norma é evitar esse tipo de assalto, o legislador com o dispositivo abaixo, tratou de exportar de São Paulo, Guarulhos e Campinas esse tipo de bandido, criando o primeiro êxodo criminal que eu conheço., assim prevendo:

“Artigo  6º - Esta Lei é válida somente para as áreas urbanas de municípios com a população superior a um milhão de habitantes.”

A justificativa do projeto aprovado é bastante curiosa:

“A proibição do tráfego deste tipo de veículo com dois ocupantes têm duas finalidades distintas: a primeira é a de proporcionar maior segurança aos motociclistas, visto que os números de acidentes e mortes no trânsito envolvendo motos vêm batendo recordes a cada ano. A quantidade de motociclistas mortos no trânsito de São Paulo aumentou 11,7% em 2010, passou de 429 em 2009 para 478 em 2010, o fato é que se essa é a motivação da norma porque então não proibir as motos? Porque então não permitir o uso de corredores entre os carros para as motos? Quantas são as multas aplicadas para essa infração?

Ainda reforçando os argumentos na justificativa da lei motivada pelos acidentes o autor continua: “A situação nacional é ainda pior, foram 1721 mortos em 2011, quase 5 mortes por dia.”

Então porque não estender a proibição para todo Estado de São Paulo?

Mais adiante, ainda na justificativa do projeto, chega-se à principal motivação:  “A segunda finalidade do presente projeto de lei é a tentativa de diminuir uma modalidade de crime cada vez mais comum em São Paulo: o assalto à mão armada realizado quando a moto, ocupada por dois assaltantes, aborda pessoas que deixam estabelecimentos bancários (saidinha de banco) ou veículo (automóvel ou outra moto) e o chamado “garupa”, armado, escondendo o rosto no capacete que serve como máscara, rende a vítima e muitas vezes atira e mata.

Segundo dados do Departamento de Polícia da Capital – DECAP – os motoqueiros estão envolvidos em 61,5% dos crimes contra o patrimônio.

Lembramos ainda que geralmente são meliantes ocupando motos (piloto e garupa) que dão “cobertura” a assaltos a bancos, que atuam em casos de roubos em estabelecimentos comerciais e a pedestres. ”

O que se conclui, segundo o projeto aprovado, que todo acaronado numa moto, nessas três cidades que andam no horário bancário é potencialmente um assaltante; que brilhante!

Essa estratégia me faz lembrar o marido que ao chegar em casa descobre a mulher com o amante no sofá, ato contínuo ele aborrecido troca o sofá.

Tem sempre um gênio com soluções simples para problemas complexos, se esquecendo que crime é um negócio.

O criminoso mede o risco e o benefício de realizá-lo, pensa nas consequências e as sopesa diante das ações do Estado, ou de suas inações, e quando se amplia a limitação da sua conduta ele troca de tipo e lugar do crime, mas não muda de ramo, porque isso é um negócio. E não adianta trocar o sofá!!


Charles M. Machado é advogado formado pela UFSC, Universidade Federal de Santa Catarina, consultor jurídico no Brasil e no Exterior, nas áreas de Direito Tributário e Mercado de Capitais. Foi professor nos Cursos de Pós Graduação e Extensão no IBET, nas disciplinas de Tributação Internacional e Imposto de Renda. Pós Graduado em Direito Tributário Internacional pela Universidade de Salamanca na Espanha. Membro da Academia Brasileira de Direito Tributário e Membro da Associação Paulista de Estudos Tributários, onde também é palestrante. Autor de Diversas Obras de Direito. Email: charles@dantinoadvogados.com.br


Imagem Ilustrativa do Post: Motos en Taiwán // Foto de: Antonio Tajuelo // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/antoniotajuelo/12066666745 Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura