Há bons livros sobre história das ideias, das crenças, dos valores, das narrativas religiosas. Tudo isso tem data e local de nascimento. Esses livros abordam a história das ideias, crenças e valores da vida pública e da vida privada. Eu os sintetizaria em uma expressão: costumes.
Os costumes, em geral, nascem e morrem atrelados ao poder que os divulga e sustenta. Poder não é necessariamente alguém dando ordens diretas a outro alguém, usando de meios intimidatórios. Trata-se da capacidade de pôr um valor em circulação e de mantê-lo circulando.
Entre os rapazes do Ocidente era comum a prática de boxe, expressão do poder inglês e estadunidense. Com a ascensão do Japão, principalmente, e depois de outros países asiáticos, fomos tomados pela oferta de artes marciais as mais variadas, trocando luvas por quimonos.
O poder é um discurso incidente sobre nós, mas também é um fato material Se quisermos compreender a incidência discursiva do poder sobre as mulheres, podemos consultar as revistas femininas do século passado, todas formatando recatamento de maneiras do ser mulher.
Para entender a materialização do papel que os discursos atribuíam (e seguem atribuindo, ainda que menos) às mulheres, tente comprar um robe (penhoar) feminino; facilmente o encontrará com mangas três quartos, mas, dificilmente estará disponível em manga inteira.
Claro, o robe, assim como tantos outros utensílios, são a materialização do “destino” feminino discursado para as meninas. Ora, a manga é mais curta para que não sejam molhadas nas “prendas domésticas”, dado que as mulheres, de robe, lavam louça e banham crianças.
Há numerosos exemplos dessa distinção “natural” de funções materializada em objetos. Como as mulheres cuidam da casa, as vassouras têm o cabo medido à sua altura; como os homens dão concertos musicais, uma oitava de piano corresponde ao tamanho da mão masculina.
A ideia de propriedade do corpo é recente, adveio da Revolução Francesa. Antes das libertárias declarações liberais, os corpos (lembre-se, você não tem um corpo, você é um corpo), como tudo em dado território, pertenciam ao seu monarca. Não havia cidadão, havia vassalo.
Não existindo propriedade alguma, então, não havia propriedade do corpo. Com a invenção da propriedade, os homens passaram a ser proprietários de bens, o primeiro deles sendo o próprio corpo, mas, estou falando no masculino porque as mulheres não se tornaram proprietárias.
Mulheres, tal como crianças, ainda que as normas não o previssem, pelos costumes, tornaram-se propriedade de maridos ou pais. A Revolução Francesa não alforriou o sexo feminino, mantido sob o patriarcado romano-cristão, articulado pelo imperador católico Constantino.
É sabido que a liberdade de determinação das mulheres se consubstanciou após a Segunda Guerra, mas nunca se assentou de todo. Ainda as mulheres estão em campanha de afirmação de autonomia, sendo uma das principais a efetuada sob o lema “Meu Corpo, Minhas Regras”.
Formulado apenas na segunda década deste milênio, o slogan “pretende representar a ideia de autonomia corporal pessoal, integridade corporal e liberdade de escolha. A autonomia corporal constitui a autodeterminação sobre o próprio corpo sem dominação ou coação externa.
A integridade corporal é a inviolabilidade do corpo e enfatiza a importância da autonomia pessoal, autopropriedade e autodeterminação dos seres humanos sobre seus próprios corpos” (Wikipédia). Do direito sobre o corpo decorreriam escolhas sexuais, matrimoniais e reprodutivas.
Isso pode ressoar dispensável para muita gente. Engano. Em “carta para uma menina de 11 anos”, “judiciada” em SC, sob cuja decisão em abortar o fruto de um estupro tanto se discutiu, desrespeitando-se sua autonomia corporal, liberdade física e livre arbítrio, Jamil Chade escreve:
“Prezada menina, enquanto a tua história era alvo de um dramático debate no Brasil, te conto que numa sala aqui na sede da ONU (Organização das Nações Unidas), em Genebra, homens engravatados – e algumas poucas mulheres – negociavam um texto de uma resolução sobre teu destino.
O teu e o de milhões de garotas que querem sonhar. Ali, apesar das boas intenções de várias delegações, o que estava em jogo era a autonomia do teu corpo. Vocês têm ou não direito à educação sexual? O aborto deve ou não ser criminalizado? A quem pertence, enfim, o corpo de vocês?
Barganhavam a vida. Ouvindo aquele intenso debate, me passou pela cabeça uma pergunta: onde é que ficava a sala onde a autonomia do corpo masculino está sob negociação? Quem são os autores dos projetos que têm como objetivo limitar certos direitos sexuais para os homens?
Obviamente, essa sala não existe e essa negociação está fora de questão. Quem ousaria, não é? Como homem, é extremamente frustrante admitir que minha geração ainda não entendeu o significado da palavra ‘igualdade’. Em dezenas de países pelo mundo, o teu corpo é um ato político.
Teu ventre rende voto aos charlatães. Teu desejo é criminalizado. Teu destino não depende apenas de teus planos e medos. És, no fundo, mais uma camada da história da opressão estrutural com meninas e mulheres que se confunde com a própria História da Humanidade.
Com apenas onze anos, você descobriu da forma mais perversa a luta que uma menina enfrenta para existir. Uma luta numa sociedade que começa desde cedo a determinar o que vocês devem ser, o que não podem ser, onde devem andar, do que podem brincar, que palavras usar.
A luta por tua emancipação precisa ser a luta de uma sociedade. Mas qualquer debate passa em primeiro lugar pela autonomia do teu corpo. O ponto inicial de todas as lutas” (Uol, 02jul22, editado). A autonomia do corpo masculino está posta, lembro, há 233 anos, desde a Revolução Francesa.
Alguém pode pretextar que o aborto, no Brasil, é causa relevante. Sim, é. País religioso, na rabeira mundial da educação, claro, sobra ignorância sobre certos temas; aborto é um deles. Entretanto, a questão não é o aborto, o tópico que enfurece o patriarcado é a liberdade das mulheres.
Senão, veja-se: a Menina de SC foi insultada porque, com 11 anos, estuprada, arrastada pela Justiça, embora protegida pela legislação aplicável, resolveu abortar. O insulto, pois, seria contra a opção aborto. Mas, então, temos uma outra quase menina estuprada: Klara Castanho.
Klara opta pela transcorrência da gravidez e decide doar a criança, o que juíza e promotora gravadas “recomendavam” para a Menina de SC e o\as insultantes de redes sociais gritavam que deveria ser feito. Klara o fez. E o fez cumprindo a tabela conservadora e percorrendo a via legal.
Klarla pariu e doou a criança. Que mais queriam da moça? Vociferar contra a decisão de uma mulher. O Brasil, em 2021, registrou 66.020 estupros (sete por hora); desses, 61,3% são contra menores de 14 anos. Acusam-se mulheres e meninas. Jamais vi ser exigido o nome do estuprador.
Valores de delegacia de costumes: prender mulher por indecência de roupa; imputar violência de gênero a provocação; dizer que a violentada “alguma coisa fez”. Suspeite-se da mulher, releve-se o canalha. Que canalha? Ninguém sabe, nem importa saber, xingue-se a mulher da vez.
Imagem Ilustrativa do Post: brown wooden // Foto de: Tingey Injury Law Firm // Sem alterações
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