Coluna Advocacia Pública e outros temas Jurídicos em Debate / Coordenadores José Henrique Mouta e Weber Oliveira
Resumo: este artigo tem como intuito analisar a possibilidade de desistência do mandado de segurança sem a anuência da parte contrária e posteriormente à resolução do mérito, considerando, ainda, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema, bem como as previsões da Lei nº 12.016/2009 e do Código de Processo Civil, tudo sob a ótica do princípio da bilateralidade do direito de ação.
Sumário. Introdução; - 1. O Mandado de Segurança e o Princípio da Bilateralidade do Direito de Ação; - 2. A posição do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça; - 3. Controvérsias possíveis; - 3.1 Litigância de má-fé; - 3.2 Inutilização do § 4º do 485 do Código de Processo Civil. - 4. Conclusão. Referências
Introdução
O Mandado de Segurança, previsto pelo art. 5º, LXIX da CRFB/88 e pela Lei nº 12.016/2009, é, em sua essência, uma ação constitucional, no âmbito dos remédios constitucionais, visando à proteção de direito líquido e certo contra ato de autoridade pública ou delegada.
Nessa esteira, observa-se que a mencionada ação constitucional reproduz em sua forma um rito especial, criado com a lógica de proteção ao cidadão, uma autêntica garantia do particular, na busca da tutela justa e efetiva do seu direito. Assim, por ter forma específica e normativa especial, busca-se de modo inicial na Lei nº 12.016/2009 as respostas para as possíveis problemáticas surgidas em torno deste remédio constitucional. No entanto, em algumas ocasiões, a lei, por si só, não é capaz de solucionar determinadas questões, sendo uma delas o tema aqui proposto: a desistência da ação em sede de mandado de segurança.
A desistência é instituto previsto no art. 485, § 4º e § 5º, do Código de Processo Civil, e permite que a parte possa desistir da ação desde que atendido dois requisitos: (i) ela deve ser apresentada até a prolação da sentença e, (ii) após a contestação, ela apenas será deferida com a anuência da parte ré, respeitando-se a bilateralidade do direito de ação (por certo que, se a desistência se efetivar antes de oferecida a defesa, o ato será tido por válido e eficaz).
Com esse panorama, a resposta para a possibilidade de desistência na seara do mandado de segurança seria de fácil solução: como a Lei nº 12.016/2009 é silente sobre o instituto da desistência, seguir-se-ia então a regra geral prevista no CPC/2015, afinal, em caso de omissão da lei especial (Lei 12.016/2009), o ordinário é que a atenção deva ser dada para a regra geral (no caso, a lei processual).
Todavia, destoando desta premissa, a atual jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) adotaram entendimentos diferenciados para a desistência no âmbito do mandado de segurança, interpretando o uso do instituto de uma maneira mais ampliada que aquela prevista na norma processual geral, além de mais consentânea com a garantia representada pelo writ.
Assim, busca-se no presente artigo debruçar-se sobre o tema, fazendo um contraponto entre a omissão da Lei nº 12.016/2009, a previsão do CPC/2015 e o entendimento jurisprudencial do STF e do STJ – que parece ter mitigado o Princípio da Bilateralidade do Direito de Ação tal como previsto na lei processual. Questiona-se, pois: pode o impetrante desistir da ação de mandado de segurança a qualquer tempo e sem a anuência da parte contrária? Essa é a resposta a ser buscada.
1. O Mandado de Segurança e o Princípio da Bilateralidade do Direito de Ação
O mandado de segurança é um direito assegurado como uma garantia fundamental do cidadão pela Constituição Federal. Ao indivíduo que se sentir ofendido por ilegalidade ou abuso de poder dentro da sua esfera jurídica por ato de autoridade pública (ou a ela equiparada), poderá buscar sua tutela pelas vias ordinárias ou se utilizar do remédio constitucional de via expedita. No entanto, a escolha do mandado de segurança envolve o preenchimento de requisitos em razão do direito violado do impetrante, quais sejam: a sua liquidez e a sua certeza.
A expressão “direito líquido e certo” trata de uma evolução da locução “direito certo e incontestável”, estando ligada ao amadurecimento dos fatos nele discutidos, e não à sua complexidade. Consiste, portanto, em fato certo, comprovável de plano e que não depende de maior instrução probatória[1].
Portanto, carecendo de tal liquidez ou certeza, o direito do indivíduo, por mais que mereça a tutela do Estado, não encontrará no mandado de segurança o seu melhor caminho. Nessa esteira, frise-se o entendimento jurisprudencial de longa data consolidado no âmbito do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que no mandado de segurança “deve o impetrante fazer prova indiscutível, completa e transparente do seu direito líquido e certo”[2], sendo a dilação probatória incompatível com a natureza da ação mandamental[3].
No contexto dessas definições palmares sobre o mandado de segurança, surge a noção de que não faria maior sentido que o impetrante, ao escolher o writ para a tutela do seu direito, ficasse preso à anuência da parte contrária para poder desistir do feito. Ora, a via mandamental é instrumento criado para garantir os direitos do cidadão frente ao Estado (ou entidade atuando por delegação), não faria sentido, portanto, que o destinatário da norma protetiva (o impetrante) tivesse que aguardar o desfecho de todo o trâmite do remédio constitucional, cujas limitações cognitivas não se adequam mais à tutela do seu pretenso direito,[4] para colocar um imediato fim na discussão que não mais o interessaria.
Essa argumentação, porém, contrasta com o artigo 485, § 4º do CPC/2015, que prevê o consentimento da parte ré como requisito para a desistência da ação. Trata-se, a toda evidência, de norma geral cuja aplicabilidade subsidiária aos procedimentos especiais sem regra expressa sobre o tema seria uma consequência natural.
Mais do que isso, coadunando-se com o entendimento de que o mandado de segurança seria uma garantia fundamental do cidadão, a tornar despicienda a anuência da parte contrária para efetivação da desistência, o que se verificaria no ponto seria a mitigação do Princípio da Bilateralidade do Direito de Ação, segundo o qual a ré, quando chamada ao feito, adquire direito à composição jurisdicional da lide juntamente com o autor[5], a justificar o seu consentimento para efetivação do pedido da desistência.
Todavia, e como adiantado, é preciso pensar no mandado de segurança como uma técnica processual revestida de tutela jurisdicional diferenciada. É imperioso analisar esse processo conforme a sua função instrumental, com os meios aptos à realização do direito material. Assim, como bem versa José Henrique Mouta Araújo, se as tutelas diferenciadas normalmente traduzem a necessidade de maior efetividade e menor tempo de duração da litispendência, uma importante perspectiva de superação dos entraves encontrados no processo seria a justamente a ampliação dessas formas de tutelas diferenciadas[6], como a possibilidade da desistência do mandado de segurança, mesmo que sem a anuência da parte contrária, a mitigar o princípio da bilateralidade do direito de ação.
A seguir tal lógica, nada impediria que o impetrante pudesse recalcular a rota processual e desistisse do mandado de segurança, isso sem ser preciso o consentimento do impetrado, tudo a permitir a busca da tutela justa e efetiva do seu direito pelas vias ordinárias. Trata-se, como se vê, de uma tutela diferenciada que traduz uma autêntica permissão de correção de um erro estratégico inicial da parte, especialmente nas demandas em que a dilação probatória seria primo ictu oculi inexistente, mas com o desenrolar do processo revelou-se necessária.
Outra motivação que justifica o pedido de desistência do mandado de segurança e a sua efetivação sem a anuência da parte contrária é a perda de interesse do impetrante em relação à obtenção do direito que se quedou violado. No decorrer da ação mandamental, apesar do procedimento ter por objetivo a sumariedade e celeridade, por vezes, até a resolução do mérito do mandamus constitucional, o impetrante já não mais tem interesse no direito que inicialmente queria tutelar.
É o caso, por exemplo, do concurso público. O indivíduo pode ter se sentido lesado a respeito de um direito líquido e certo sobre pontos correlatos àquele, como por exemplo, em relação à inscrição, ou mesmo aos recursos da prova realizada ou também à obtenção da vaga oferecida pelo certame público. No entanto, ao longo do mandado de segurança o impetrante pode conseguir a aprovação em outro concurso, não havendo mais interesse na resolução do mérito da ação mandamental, já que o direito anteriormente buscado não possui mais utilidade ou interesse para o impetrante.
Em tal situação, portanto, mesmo existindo uma sentença de mérito ao impetrante, não faria sentido sua desistência ser brecada, muito menos que o impetrado precisasse anuir para que se permitisse a desistência da ação mandamental. Se o mandado de segurança foi criado como uma garantia fundamental em favor do cidadão, e este não possui mais interesse na continuação da ação, não há sentido em mantê-lo preso ao mandamus, já que a tutela que buscava já não lhe é mais necessária.
2. A posição do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça
A atual posição do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça parece se coadunar com o entendimento que prega pela mitigação do Princípio da Bilateralidade do Direito de Ação, ou seja, pela desnecessidade de observar os requisitos do CPC/2015 para a efetivação da desistência. Ambas as Cortes Superiores entendem que o mandado de segurança, como garantia fundamental de índole constitucional que é, permite “ao impetrante desistir da ação de mandado de segurança, independentemente de aquiescência da autoridade apontada como coatora ou da entidade estatal interessada (...) a qualquer momento antes do término do julgamento, mesmo após eventual sentença concessiva do ‘writ’ constitucional (...)”.[7]
Frise-se que esse entendimento se pacificou com o enfrentamento do RE nº 669.367/RJ[8], sendo que a partir de 2014, data do julgamento, e como determinava a própria lei que regulamentou a repercussão geral (Lei 11.418/2006), essa posição passou a ser a “norma jurídica” aplicada aos demais casos correlatos.
Justamente por isso que, a partir de então, o Superior Tribunal de Justiça passou a chancelar referido posicionamento, citando-se, apenas a título ilustrativo, 02 (dois) julgados, um mais antigo, de março de 2013, REsp n. 1.405.532/SP,[9] e outro mais recente, de março de 2023, REsp n. 1.474.318/PR [10], que espelham essa consonância entre os entendimentos dos referidos Tribunais Superiores.
Apesar do atual posicionamento convergente das Cortes, é possível dizer que o tema tinha entendimento oscilante nos dois pretórios. O Supremo Tribunal Federal possuía uma posição mais vanguardista, admitindo a desistência pelo impetrante em mandado de segurança de uma forma mais ampla, leia-se, para além dos permissivos do CPC (aquela época regulamentado pelo art. 267,§ 4º), enquanto o STJ, de forma oposta, possuía histórico de precedentes com posição mais legalista, ou seja, “a jurisprudência da Primeira Seção e de ambas as Turmas que a compõem pacificou-se no sentido de inadmitir a desistência do Mandado de Segurança após sentença de mérito, ainda que favorável ao impetrante, sem anuência do impetrado”.[11]
Foi justamente a partir do caso cujo excerto foi acima replicado, REsp nº 928.453/RJ, quando a Primeira Seção do Superior Tribunal de Justiça decidiu manter a sua jurisprudência inadmitindo pedido de desistência do mandado de segurança após a sentença de mérito, que a questão foi levada até ao STF, via recurso extraordinário, culminando com o seu julgamento sob o regime de repercussão geral, RE nº 669.367/RJ, que se fixou a tese atualmente aplicada, na qual é admissível a desistência do mandado de segurança, a qualquer tempo, desde que antes do término do seu julgamento, afastando-se o regramento geral do Código de Processo Civil.
3. Controvérsias possíveis
3.1 Litigância de má-fé
Apesar de a jurisprudência atual estar consolidada e uniforme, a antiga divergência entre as posições de STJ e STF, além da própria dissidência existente nos votos vencidos no recurso extraordinário julgado sob o regime da repercussão geral, gerou alguns embates jurídicos a respeito das consequências advindas com essa quase que atemporal desistência da ação do mandado de segurança pelo impetrante.
A exemplificar, um dos pontos levantados na discussão quando do julgamento da repercussão geral do tema foi a possibilidade de uma atuação desleal pela parte impetrante, que se utilizaria do permissivo da desistência a qualquer momento para o fim de concretizar pretensões não albergadas pelo Direito. Essa, aliás, foi a razão pela qual o Ministro relator Luiz Fux votou contra a tese atualmente prevalecente, ilustrando seu entendimento narrando a situação em que o impetrante consegue a entrega do bem da vida por meio de pedido liminar no mandado de segurança e, após a concessão da liminar, desiste da ação. Ou seja, o impetrante se utilizaria de um artifício jurídico para obtenção do proveito desejado e, quando o alcançasse, desistiria do remédio constitucional, renunciando ao mérito da ação, ignorando os possíveis custos e esforços jurídicos do impetrado – e tudo isso com o bem da vida em seu poder, pois ele já teria sido entregue por força da liminar.
De fato, pensando-se na utilização do mandado de segurança com tal intuito, criar-se-ia uma situação de evidente insegurança jurídica e de potencial utilização do Judiciário como mera porta para obtenção de benefícios próprios, legitimando a deslealdade da parte, e não uma autêntica tutela do direito líquido e certo. No entanto, apesar do elucidativo e percuciente raciocínio, é preciso ponderar que tal situação deve ser individualizada e analisada em apartado: a alegada má-fé do impetrante não se configura tão somente pela desistência do mandado de segurança, mas sim com a demonstração clara e inequívoca do intuito desleal do impetrante, já que a litigância de má-fé se caracteriza pelo agir em desconformidade com o dever jurídico de lealdade processual[12], nos termos do artigo 80 do Código de Processo Civil.
Assim, comprovando-se a má-fé do litigante com sua atuação de desistir do mandado de segurança para o fim de obter um proveito ilegítimo, ou mesmo demonstrado eventual prejuízo causado à autoridade indicada como coatora pela desistência do writ, caberá a responsabilização do agente causador do dano, leia-se, impetrante, que deverá responder pelas vias próprias.
Esse ponto foi, inclusive, alvo de atenção pelo Ministro Ricardo Lewandowski ao responder as ponderações do Ministro Luiz Fux nos debates travados quando do julgamento do RE nº 669.367/RJ, afirmando textualmente que se o impetrante “(...) agiu com litigância de má-fé, se causou prejuízo, ele responderá pelas vias próprias”.[13]
O ponto chave é: a admissão da desistência do mandado de segurança a qualquer tempo, mesmo sem a anuência do impetrado, tal como chancelado pela tese fixada em sede de repercussão geral, não pode ser obstada pela simples alegação de má-fé do impetrante. A deslealdade processual pode sim ser fator impeditivo da desistência, desde que comprovada, fato que pode ocorrer nos autos da própria ação (afinal os elementos objetivo e subjetiva da má-fé podem estar configurados nos próprios autos do mandado de segurança) ou em procedimento próprio (aqui, a desistência terá se operado, mas os eventuais prejuízos do impetrado poderão ser reparadas em ação própria).
3.2 Inutilização do § 4º do artigo 485 do Código de Processo Civil
Um segundo aspecto relevante no debate sobre a desistência da ação no mandado de segurança é a respeito da não incidência do § 4º do art. 485 do CPC/2015.[14] É preciso aqui retornar à introdução do presente trabalho quando se falou na omissão existente na Lei 12.016/2009 sobre o tema, e a previsão da norma processual geral, o CPC/2015, que estabelece requisitos para a validade e eficácia do instituto da desistência.
A solução ordinária, como se viu, seria buscar a solução presente no Código de Processo Civil., isso em decorrência da omissão da Lei de Mandado de Segurança (Lei nº 12.016/2009). Todavia, aplicando-se a regra da desistência tal qual prevista na lei processual vigente, ter-se-ia o grave risco de abandono da própria razão de criação do mandado de segurança, que como salientado no julgamento do RE nº 669.367/RJ, nas palavras da Ministra Carmen Lúcia, tem a “peculiar natureza constitucional de ser instrumento posto à disposição do cidadão para se livrar de alguma ilegalidade ou abuso de poder. (...)”.[15]
Dada essa “peculiar natureza” do mandado de segurança, que “é um remédio dado ao cidadão contra o poder; é intrínseco à defesa da liberdade do cidadão (...)”[16], para usar as palavras do Ministro Dias Toffoli no mesmo acórdão, parece não haver congruência entre as razões de criação e existência da garantia fundamental em análise, o mandado de segurança, e o requisitos restritivos para a incidência do instituto da desistência, tal como previsto no CPC/2015.
Daí a imperiosa intervenção do Supremo Tribunal Federal ao criar uma interpretação que protegesse os fundamentos clássicos do remédio constitucional e, simultaneamente, abrangesse a proteção do próprio jurisdicionado na sua relação com o remédio constitucional, além, por certo, de garantir a esperada segurança jurídica na aplicação dos institutos.
Isso posto, em que pese a importância do diploma legal processual, percebeu-se uma distância considerável entre o art. 485, § 4º, do CPC/2015, e os pressupostos do remédio constitucional, já que o dispositivo da lei processual mencionado tem por máxima o respeito ao princípio da Bilateralidade do Direito de Ação, ou seja, contestada a demanda, e pensando-se em posição de igualdade entre as partes que compõem o processo, a parte ré teria direito a uma decisão sobre o mérito, pois à ela também interessa a posição final sobre o bem da vida discutido.
Essa realidade, porém, não se verifica no procedimento do mandado de segurança. Claro que a paridade de armas e a isonomia são garantias constitucionais de qualquer processo, no entanto, dentro do mandamus constitucional, não se tem, tecnicamente, parte autora e parte ré, mas sim impetrante, um cidadão lesado, e impetrado, uma autoridade coatora praticante de uma suposta ilegalidade. O próprio objeto do mandado de segurança, portanto, trata de retirar a equivalência entre as partes para fins de resultado do processo, afinal, desistido do mandado de segurança, o status quo ante ao ajuizamento do writ seria retomado, ou seja, aquele ato praticado pela autoridade coatora retornaria ao seu estado originário, pré-discussão mandamental.
Portanto, e pelo que se viu do precedente julgado pelo STF, Tema 530 de Repercussão Geral, cuja tese é de observância obrigatória por todos os juízes brasileiros, parece não haver motivos para que a regra processual geral sobre a desistência da ação se aplique ao mandado de segurança, uma vez que a exigência de anuência da parte contrária não tem razão de ser no referido remédio constitucional.
Acertado, pois, o entendimento da Corte Suprema, que exaltando a figura de garantia constitucional do mandado de segurança, um remédio a favor do cidadão e contra a ilegalidade ou a arbitrariedade do Estado (ou dos agentes que façam suas vezes), não pode deixar à mercê da concordância da parte contrária a desistência de uma figura desenhada para proteger o próprio indivíduo.
4. Conclusão
Como se percebeu do trabalho, normativamente, o instituto da desistência estaria escorado no princípio da Bilateralidade do Direito de Ação, segundo o qual a parte ré de um processo judicial também tem direito ao julgamento do mérito da demanda, o que impediria ao autor de desistir da ação ajuizada após a contestação sem a anuência da parte contrária – inclusive, a desistência, de acordo com a lei processual vigente, somente poderia ser efetivada até a sentença do feito ajuizado (art. 485, §4º e §5o, do CPC/2015).
O que este texto, entretanto, procurou demostrar é que a lógica argumentativa da norma processual vigente para chancelar a desistência da ação pelo autor não se aplicaria ao mandado de segurança. Isto porque, como garantia fundamental que é, como ação dirigida à proteção do indivíduo frente a ilegalidades ou arbitrariedades cometidas pelo Estado (ou entidade atuando por delegação), não seria legítimo, ou mesmo constitucional, impor a exigência de concordância do impetrado para que o impetrante desistisse da ação mandamental.
Esse entendimento acabou sendo sedimentado e pacificado por meio do Tema 530 de repercussão geral, julgada pelo Supremo Tribunal Federal, que entendeu que nos processos de mandado de segurança, justamente pelos seus pressupostos de criação e existência, seria direito do impetrante desistir do seu processo a qualquer momento (desde que não findo o seu julgamento), sendo despicienda a autorização ou mesmo a anuência do impetrado.
Trata-se de posição vanguardista do Supremo, que acabou por unificar o entendimento sobre o tema em todo o país, findando, inclusive, com controvérsia existente junto ao Superior Tribunal de Justiça, que seguia a previsão do Código de Processo Civil, e seus requisitos autorizadores da desistência, para admitir a desistência do mandamus.
Nada mais salutar, portanto, a proteção conferida aos jurisdicionados, que tendo ao seu dispor uma garantia fundamental de salvaguarda contra atuações do Estado, não podem ficar à mercê da vontade do impetrado para desistir do mandado de segurança, sempre resguardado ao Poder Público o direito de debater eventuais ações maliciosas do autor da ação constitucional.
Notas e referências
ARAGÃO, E. D. Moniz. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2005.
ARAÚJO, José Henrique Mouta. Mandado de segurança. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2017.
DORIA, Rogéria Dotti. A litigância de má-fé e a aplicação de multas. São Paulo, 2005.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). REsp nº 1916374/PR. Relator: Ministro Benedito Gonçalves. DJ: 18/10/2022, STJ, 2022. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=202003461199&dt_publicacao=27/10/2022>. Acesso em: 14 fev. 2022.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). REsp nº 928.453/RJ. Relator: Ministro Herman Benjamin. DJ: 24/08/2011, STJ, 2011. Disponível em: <https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200700389297&dt_publicacao=06/09/2011>. Acesso em: 14 fev. 2022.
SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL (STF). RE nº 669.367/RJ. Relator: Ministro Luiz Fux. DJ: 02/05/2013, STF, 2013. Disponível em: <https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7081217>. Acesso em: 14 fev. 2022.
THEODORO JR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: procedimentos especiais. Vol II. 56. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022.
[1] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Mandado de segurança. 6. ed. Salvador: Juspodvim, 2017, p. 29-31.
[2] RMS n. 929/SE, relator Ministro Jose de Jesus Filho, Segunda Turma, julgado em 20/5/1991, DJ de 24/6/1991, p. 8623.
[3] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Mandado de segurança. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2017, p. 32.
[4] THEODORO JR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: procedimentos especiais. Vol. II. 56. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2022, p. 644.
[5] ARAGÃO, E. D. Moniz. Comentários ao Código de Processo Civil. Vol. II. Rio de Janeiro: Forense, 2005, pp. 452 a 453.
[6] ARAÚJO, José Henrique Mouta. Mandado de segurança. 6. ed. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 37.
[7] Excerto da tese de repercussão geral fixada no “Tema 530 - Desistência em mandado de segurança, sem aquiescência da parte contrária, após prolação de sentença de mérito, ainda que favorável ao impetrante.”. O inteiro teor da tese pode ser encontrado no site do Supremo Tribunal Federal. Disponível em https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4189777&numeroProcesso=669367&classeProcesso=RE&numeroTema=530. Acesso em: 14 ago. 2023.
[8] RE nº 669.367/RJ Relator: Ministro Luiz Fux. Redatora para o acórdão, Ministra Rosa Weber, DJ: 02/05/2013, STF, 2013. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7081217. Acesso em 20 ago. 2023.
[9] REsp n. 1.405.532/SP, relatora Ministra Eliana Calmon, Segunda Turma, julgado em 10/12/2013, DJe de 18/12/2013.
[10] AgRg no REsp n. 1.474.318/PR, relator Ministro Francisco Falcão, Segunda Turma, julgado em 7/3/2023, DJe de 13/3/2023.
[11] REsp nº 928.453/RJ Relator: Ministro Herman Benjamin. STJ, DJ 24/08/2011, 2011. Disponível em https://processo.stj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=200700389297&dt_publicacao=06/09/2011. Acesso em: 20 ago. 2023.
[12] DORIA, Rogéria Dotti. A litigância de má-fé e a aplicação de multas. São Paulo, 2005, p. 3.
[13] RE nº 669.367/RJ Relator: Ministro Luiz Fux. Redatora para o acórdão, Ministra Rosa Weber, DJ: 02/05/2013, STF, 2013. Disponível em https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=7081217. Acesso em 20 ago. 2023.
[14] Destaque-se que quando julgado o Tema 530 de repercussão geral pelo STF ainda vigia o CPC/1973, motivo pelo qual o dispositivo que foi referido na tese fixada era o art. 267, § 4º. A redação do referido texto foi praticamente replicada no art. 485, §4º, do CPC/2015.
[15] Acórdão disponível em https://portal.stf.jus.br/processos/downloadPeca.asp?id=273422583&ext=.pdf. Acesso em 23 ago. 2023.
[16] Idem.
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