A MITIGAÇÃO DE GARANTIAS CONSTITUCIONAIS COMO ESCOPO DE JUSTIÇA

14/03/2018

O presente trabalho tem por ideal demonstrar as intensas mitigações de garantias constitucionais de conduzidos e acusados como “escopo de justiça”, perfazendo o panorama atual dessas mitigações. Nosso compromisso aqui, caro leitor, será com direito – longe de paixões e emoções.

Viver sob o pálio de um “Estado tido por Democrático e de Direito” é, talvez, o maior desafio dos operadores da justiça, ao passo que esse “Estado” estipula regras específicas e predeterminadas de tratamento para o jogo processual penal e o pré-processual. Sabido é também que o jogo processual é composto por um juiz imparcial (é o que sempre se espera), acusação e defesa. Já na esfera pré-processual, a sistemática é outra. Geralmente é composta por uma investigação (MP ou Polícia), existe um juiz responsável pela determinação e medidas cautelares (quando necessárias) e, da mesma forma, existe a defesa (que geralmente entra em cena quando a investigação é cumprida, consagrando o famigerado contraditório diferido). Mas, é importante ressaltar, cada jogador possui uma função preestabelecida.

Nesse viés, o desrespeito às regras do jogo causa, além de um desequilíbrio processual/constitucional, graves prejuízos - muita das vezes irreparáveis.

Quando falamos da defesa de direitos e garantias constitucionais de acusados ou conduzidos, em tempos atuais, parece que estamos levantando a bandeira da impunidade. Nessa sociedade tida por “moderna” estamos prontos a condenar, mas tardios a absolver (nítida subversão da ordem constitucional). Nunca se falou tanto em condenações “relâmpagos”, prisões cautelares em massa e invasões coletivas -  não há mais respeito a liberdade, ao domicílio e ao lapso temporal necessário para acusação e defesa apresentarem suas provas e argumentos, buscando assim a correta aplicação da lei. Hoje, com a “evolução” (leia-se regressão) da jurisprudência, permite-se que a força pública realize buscas no domicílio do suspeito, sem mandado, caso sintam “forte odor de maconha” (STJ - HC 423.838), ou, até mesmo, de forma coletiva (sem a expressa observância da delimitação necessária para o cumprimento da ordem). Não se fala mais em demonstração do periculum e fummus! Tenho certeza que a “fumaça do bom direito” não se confunde com essa fumaça acima citada. E pior, tudo sob a falácia de se “fazer justiça”.

 Nesses tempos sombrios se prende (cautelarmente) para investigar, para delatar e punir. As medidas cautelares (sejam reais ou pessoais) perderam sua natureza excepcional, alcançando o status de regra geral. O Judiciário encontra-se, lamentavelmente, coagido frente a força midiática (que possui um poder extraordinário de condenar). Não fosse somente isso, o ativismo judicial encontra-se em ascensão, onde juízes vão ao encontro das provas (estado mental paranoico) ferindo de morte o sistema acusatório. O grande Jacinto Coutinho denomina esse “amor à primeira impressão” dos fatos de “primado da hipótese sobre os fatos”, que nada mais é do que um julgamento feito puramente por induções e presunções, ranço do sistema inquisitorial (https://www.conjur.com.br/2014-jul-14/constituicao-poder-quadro-mental-paranoico-nao-imperar)

Da mesma forma, as conduções coercitivas estão sendo usadas como forma de coação e constrangimento, sem o devido respeito ao preceituado no art. 218 do Código de Processo Penal. O maior exemplo disso é a operação Lava Jato (não estamos aqui sustentando a ilegalidade de todos os mandados ou a ilegalidade da operação), em que, somente do juiz Sérgio Moro, temos ciência de 222 mandados de condução coercitiva para que o INVESTIGADOS possam prestar seus depoimentos, muitos deles sem a intimação prévia exigida. Espantosamente, na visão do Ministério Público Federal, tais conduções são constitucionais e necessárias, ao passo que são medidas menos gravosas do que uma possível decretação de prisão temporária e evitaria a combinação de depoimentos entre os investigados. Então há uma “escolha” do órgão acusador? Ou vem coercitivamente (ainda que sem intimação prévia) ou requeiro sua prisão?

Diante de tal assertiva, duas ponderações devem ser feitas. A primeira delas gira em torno da prévia intimação do depoente com requisito fundante da condução coercitiva. O Código de Processo Penal é cristalino ao ressalvar que somente poderia o juiz determinar a condução coercitiva de alguém quando “regularmente intimada, deixa de comparecer sem motivo justo”. Partindo dessa premissa, toda condução coercitiva sem essa observância equivaleria a uma grave violação ao sagrado direito de liberdade. Nesse mesmo viés, esbarramos em outra regra constitucional, qual seja, nemo tenetur se detegere”, consubstanciada, também, no Miranda Roules. Pensando dessa forma, qual seria a real essência da condução coercitiva, se é direito constitucional do conduzido permanecer em silêncio? Na verdade, trata-se de uma medida ilegal travestida de legalidade (quando decretada sem a observância legal). Na maioria das vezes o intuito da medida é um “bom acordo”, delatar (principalmente em grandes operações). Por falar nisso, outra exceção que se tornou regra. A delação premiada virou moda, barganha. Na vitrine temos a liberdade. O preço a ser pago pelo produto (liberdade, benefícios, condições especiais de cumprimento de pena ou até o “esquecimento”) depende de singelas palavras. Há a exaltação do traidor. Parafraseando Alexandre Moraes da Rosa (Teoria dos Jogos no Processo Penal – Empório do Direito 4º Edição Revisada e Atualizada - 2017), “ele, o traidor, deixa de estar do lado oposto para se tornar um aliado arrependido, contribuindo assim para uma maior “eficiência” na busca da verdade”.  O renomado mestre continua dizendo que, “no caso de delatores ela (a palavra) vale para condenar e acabou se transformando num espetáculo da corrida para ver quem delata primeiro, ao melhor estilo do Dilema dos Prisioneiros”, ou seja, perdeu-se o real sentido.

A segunda reflexão gira em torno da possibilidade de se prender para depor. Quando falamos em restrição da liberdade, no processo penal brasileiro, devemos obediência a inúmeros textos constitucionais. Se falarmos em prisão temporária, devemos observar os ditames da Lei 7.960/89. Lá encontraremos um rol taxativo de possibilidades de decretação dessa medida excepcional. Dentre tais, mais precisamente em seu art. 2º, I, existe a possibilidade de decretação da prisão temporária quando imprescindível para as investigações. Sabido é que a restrição da liberdade é medida excepcional, devendo apenas ser autorizada quando outras medidas cautelares menos gravosas não forem suficientes (princípio da proporcionalidade/adequação). Ademais, há consenso na doutrina de que jamais poderia haver requerimento/representação de prisão temporária fundado única e exclusivamente no art. 2º, I da lei 7.960/89, devendo o requerente/representante apontar a cumulação de outro inciso do mesmo artigo (uma segurança jurídica razoável). Partindo dessa premissa, quando se requer/representa pela prisão temporária com fundamento na imprescindibilidade da investigação, deve o requerente / representante demonstrar ao juiz, de forma inconteste, o que seria essa “imprescindibilidade” apta a gerar a restrição da liberdade. Meras alegações, risco de fuga e destruição de objetos supostamente provenientes de crimes não possuem o condão, isoladamente, de provocar a restrição do status liberdade. Existem medidas menos gravosas e completamente adequadas para a solução, como a busca e apreensão, proibição de contato, suspensão do exercício da função pública e etc. (deve-se interpretar o art. 282, §6º, e o art. 210, II do CPP extensivamente, e não ao contrário). Entretanto, nessa era de guerra entre moral e justiça, estamos acostumados a agir “de trás pra frente”. Primeiro decreta-se a prisão. Não sendo mais “necessária”, aplicam-se medidas cautelares. Dessa forma há nítida desconformidade com as regras do jogo.

 Adentrando um pouco mais nas mitigações, mas sem intenção de esgotar o tema, outro ponto nevrálgico para o Estado Democrático de Direito é quando se fala em mandado de “busca e apreensão coletivo” (medidas cautelares de garantia). A Constituição Federal de 1988 consagra a inviolabilidade do domicílio e da intimidade como regra geral, devendo ser excepcionada quando categoricamente comprovada situações tidas por excepcionais – ante o grave dano causado. Partindo desse norte, quando falamos em mandado de busca e apreensão coletivo há séria inversão da ordem constitucional. Como escopo de justiça, adentram (violam) em residências a qualquer custo, sem se preocupar com o impacto causado. Toda medida restritiva / excepcional deve ser precedida de fundamento/legalidade e URGÊNCIA. O deferimento de cautelares, conforme sabido, é feito sem o contraditório imediato (o que torna ainda mais delicado). Desta feita, seu deferimento deve passar por uma análise criteriosa de necessidade, adequação e proporcionalidade em sentido estrito, não podendo perfazer o caminho da “mera conveniência”.  (Alexandre Moraes da Rosa – Teoria dos Jogos no Processo Penal – 4º Edição, Empório do Direito – pag. 481). Além disso, cabe à parte requerente/representante comprovar a autoria, materialidade e urgência da medida e comprovar também que outras medidas menos gravosas seriam insuficientes para o êxito na obtenção da prova, sob pena de indeferimento. Nota-se, de plano, que há uma série de requisitos a serem obedecidos e não é uma medida a ser utilizada ao arrepio da lei. Mesmo assim, recentemente, uma juíza do TJRJ determinou uma busca coletiva em uma das favelas do Rio de Janeiro a pretexto de que “em tempos excepcionais, medidas também excepcionais são exigidas com intuito de restabelecer a ordem pública" (https://www.conjur.com.br/2017-fev-03/tj-rj-decide-busca-apreensao-coletiva-favela-foi-egal).

Tempos excepcionais não podem ser capazes de excepcionar garantias constitucionais. Perderam de vista o real sentido do processo penal, que nas palavras do Desembargador Paulo Rangel: “o caráter instrumental do processo demonstra que ele (o processo) é o meio para se efetivar direitos e garantias individuais assegurados na Constituição e nos tratados e convenções internacionais de que o Brasil seja parte, não sendo, como pensam alguns autores, instrumento para se aplicar o direito penal, única e exclusivamente” (Direito Processual Penal, 24º Edição – Atlas / Gen, pag. 8). Felizmente o TJRJ, ao analisar recurso interposto contra essa decisão teratológica, reverteu essa situação, afirmando que não existe previsão legal para a determinação de mandados dessa natureza (coletivos), destacando ainda que a lei exige identificação (precisa) das residências e dos moradores que sofrerão essa restrição de garantias constitucionais.

Como se percebe, a “modernidade jurídica” vem ganhando força, estraçalhando garantias conquistadas com a democracia. O meio tem significado mais do que o fim. Dessa feita, caro leitor, fica a reflexão de que estamos vivendo momentos escuros, avassaladores e sem previsão de melhora. Toda evolução jurídica se faz necessária. Entretanto, as consequências devem ser sopesadas – não na balança do interesse pessoal ou de uma classe, mas na balança “cega” da justiça.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Constituição // Foto de: Conselho Nacional de Justiça - CNJ // Sem alterações

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