A marginalização da advocacia pública no contexto do (des)cumprimento de decisões judiciais – Por Augusto Barbosa Hackbarth

18/12/2016

É feliz Luis Roberto Barroso ao qualificar a pós-modernidade como “uma época aparentemente pós-tudo: pós-marxista, pós-kelseniana, pós freudiana” (BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e Aplicação da Constituição. Fundamentos de uma Dogmática Constitucional Transformadora, p. 304). Nesse contexto, não surpreende que as crises (econômica, política, jurídica) desses novos tempos venham a turvar inclusive o óbvio, exigindo vigilância constante.

O objetivo deste breve escrito não reside na conceituação da precitada “pós-modernidade”; e tampouco se pretende convencer o leitor de que a modernidade já passou. Sugere-se, tão somente, que o quadro político, econômico e social atual engendra uma espécie de crise generalizada, a qual encoraja a quebra de paradigmas - mas não autoriza interpretações jurídicas descoladas do ordenamento positivo.

No âmbito da advocacia pública, a lide forense tem demonstrado que persistem dúvidas acerca do papel do advogado público no cumprimento de decisões judiciais contrárias à Fazenda Pública, precárias ou definitivas.

O descumprimento de decisões judiciais é um fenômeno que por vezes produz consequências civis, administrativas e criminais, na medida em que capaz de gerar prejuízo/dano, punição disciplinar ao agente responsável e cometimento em tese do crime de desobediência (CP, art. 330). Trata-se de problema real, que merece ser analisado e estudado com cautela. Como as bases do Estado de Direito repousam sobre o império da lei, qualquer conduta omissiva ou comissiva que implique inobservância de decisão judicial repercute diretamente na estabilidade do arranjo político institucional.

Quer parecer, porém, que alguns fenômenos relativamente recentes têm colaborado para o descumprimento recorrente de ordens judiciais pelas pessoas jurídicas de direito público. Destacamos, sem apuro metodológico ou critérios estatístico/científico: (i) a judicialização de questões até então postas à margem da apreciação jurisdicional, com o Poder Judiciário alargando consideravelmente o seu plexo de atribuições (ativismo judicial); (ii) a guinada abrupta do tratamento conferido à tutela provisória de urgência, que de exceção passou a figurar como espécie de regra implícita no exame das ações propostas contra a Fazenda Pública; (iii) uma crise econômica de relevante magnitude, que parece não ter sensibilizado suficientemente os tribunais.

Independentemente de um juízo de valor acerca dos três itens retro mencionados, não se pode negar que a ocupação de novos espaços institucionais pelo Poder Judiciário reforça a tensão entre os poderes (CR/88, art. 2º). Além disso, a frustração da programação orçamentária (gerada pela assunção de despesas – judiciais – não previstas) coloca o gestor público necessariamente na posição de descumpridor: ou da decisão judicial, ou da lei orçamentária, ou da Lei de Responsabilidade Fiscal (ou de todas elas em conjunto).

Não é incomum que advogados públicos venham a sofrer sanções processuais, como fruto da concepção (equivocada) de que o procurador goza de alguma participação efetiva no ato material incumbido à Fazenda Pública pela autoridade judiciária – seja a realização de uma cirurgia, a aquisição de um medicamento ou insumo, a apresentação de documentos supostamente custodiados por agente público, etc.

A matéria já foi apreciada pelo Superior Tribunal de Justiça e Supremo Tribunal Federal, e as conclusões convergem para um mesmo ponto.

Na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº. 2.652/DF, o Supremo decidiu que a ressalva contida no início do parágrafo único do art. 14 do CPC/1973 alcançava todos os advogados, não se justificando o discrímen entre advogados públicos e particulares.

Eis o texto do dispositivo: Art. 14. São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo: I - expor os fatos em juízo conforme a verdade; II - proceder com lealdade e boa-fé; III - não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; IV - não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito. V - cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a vinte por cento do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.

E, a ementa do acórdão: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. IMPUGNAÇÃO AO PARÁGRAFO ÚNICO DO ARTIGO 14 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL, NA REDAÇÁO DADA PELA LEI 10358/2001. PROCEDÊNCIA DO PEDIDO. 1. Impugnação ao parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil, na parte em que ressalva "os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB" da imposição de multa por obstrução à Justiça. Discriminação em relação aos advogados vinculados a entes estatais, que estão submetidos a regime estatutário próprio da entidade. Violação ao princípio da isonomia e ao da inviolabilidade no exercício da profissão. Interpretação adequada, para afastar o injustificado discrímen. 2. Ação Direta de Inconstitucionalidade julgada procedente para, sem redução de texto, dar interpretação ao parágrafo único do artigo 14 do Código de Processo Civil conforme a Constituição Federal e declarar que a ressalva contida na parte inicial desse artigo alcança todos os advogados, com esse título atuando em juízo, independentemente de estarem sujeitos também a outros regimes jurídicos. (STF – ADI 2652/DF, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. 08.05.2003)

De tal modo, na pena do C. STF, o advogado público não poderia ser punido com a multa processual do art. 14, parágrafo único do CPC/73, assim como o advogado particular já se via expressamente excluído da responsabilização.

A Suprema Corte foi provocada por algumas vezes, em sede de reclamação, a fim de garantir a autoridade de sua decisão (ADI 2.652/DF).

A Reclamação 5.133-1/MG, de relatoria da Ministra Carmen Lúcia, retrata caso em que Procurador do INSS teve multa de R$ 2.100,00 aplicada contra si pelo juízo da 32ª Vara do Juizado Especial Federal da 1ª Região – Seção Judiciária de Minas Gerais, “ao fundamento de que ele [advogado] teria sido 'omisso no dever de proceder à exibição [do Processo Administrativo relativo ao requerimento de benefício formulado pelo Autor], com evidente malícia processual".

Em seu voto a ministra relatora asseverou: "A doutrina tem assentado entendimento segundo o qual: 'Da má-fé do litigante resulta o dever legal de indenizar as perdas e danos causados à parte prejudicada (art. 16). Esse dever alcança tanto o autor e o réu como os intervenientes’ (THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil - Teoria Geral do direito processual civil e processo de conhecimento. 48ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 100). Ao conceituar litigante de má-fé, Nelson Nery Júnior salienta: 'é a parte ou interveniente que, no processo, age de forma maldosa, com dolo ou culpa, causando dano processual à parte contrária. É o improbus litigator, que se utiliza de procedimentos escusos com o objetivo de vencer ou que, sabendo ser difícil ou impossível vencer, prolonga deliberadamente o andamento do processo, procrastinando o feito’ (NERY JÚNIOR, Nelson. Código de Processo Civil Comentado. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 184). Sem discutir o acerto ou desacerto da condenação por litigância de má-fé - prevista no art. 17, inc. V, do Código de Processo Civil -, imposta pela autoridade reclamada, cumpre esclarecer que a condenação pessoal do Procurador do INSS ao pagamento de multa processual é inadequada porque, no caso vertente, ele não figura como parte ou interveniente na ação".

A reclamação foi julgada procedente, para impedir a condenação pessoal do procurador autárquico.

Assim, para além da equiparação entre advogado particular e público quanto à sanção pelo descumprimento de decisão judicial (CPC/73, art. 14, V), está claro que também a multa por litigância de má-fé (CPC/73, arts. 16-18) não poderia alcançar o advogado público – pois apesar de personificar a Fazenda Pública no polo ativo ou passivo do processo, não se trata de parte ou interveniente. Mesmo caminho foi seguido em outras reclamações julgadas pelo Pretório Excelso (Rcl 3.282/RS, Rcl 5.941-MC/RO, Rcl 5.865-MC/MA, Rcl 3.957-MC/DF).

Causa ainda maior espécie que, diante do descumprimento de decisões judiciais proferidas em ações de saúde, os juízos têm oficiado ao Ministério Público ou órgão de polícia judiciária para apurar o cometimento em tese do crime de desobediência. Não raro, é o advogado público (e apenas ele) quem acaba intimado para comparecer à Delegacia de Polícia, instado acerca dos motivos que teriam levado ao descumprimento.

Como antecipado, são tempos em que mesmo o óbvio requer esclarecimento.

O advogado público atua na representação judicial ou mesmo extrajudicial da pessoa jurídica de direito público a que vinculado (CF/88, art. 131 e 132: “A Advocacia-Geral da União é a instituição que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente, cabendo-lhe, nos termos da lei complementar que dispuser sobre sua organização e funcionamento, as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”; “Os Procuradores dos Estados e do Distrito Federal, organizados em carreira, na qual o ingresso dependerá de concurso público de provas e títulos, com a participação da Ordem dos Advogados do Brasil em todas as suas fases, exercerão a representação judicial e a consultoria jurídica das respectivas unidades federadas”). Tratando-se de ação na qual se pleiteia prestação de saúde, por exemplo, o advogado atua tão somente na defesa processual do ente público.

A não realização, no prazo judicial concedido, de uma cirurgia oftalmológica, do implante de um stent farmacológico ou da troca de uma prótese fonatória, não pode ser atribuída ao procurador que atuou no processo judicial. A participação do advogado público, nesses casos, resume-se ao encaminhamento da decisão ao responsável pelo órgão técnico, o qual dará seguimento ao ato material que se deva implementar.

O mesmo se aplica à aquisição de fármacos e outros insumos; à apresentação de documentos específicos requisitados pelo juízo, e que se encontrem sob a guarda de autoridade pública; entre outros casos.

Ainda que assim não fosse, o Superior Tribunal de Justiça tem utilizado os seguintes parâmetros para aquilatar o cometimento do crime de desobediência: “Segundo precedentes desta Corte, para configuração do crime de desobediência é necessário que haja a notificação pessoal do responsável pelo cumprimento da ordem, de modo a se demonstrar que teve ciência inequívoca da sua existência e, após, teve a intenção deliberada de não cumpri-la”. (HC 226512/RJ, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA TURMA, julgado em 09/10/2012, DJe 30/11/2012)

A decisão se aplica ao “responsável pelo cumprimento da ordem”, e não ao advogado. De quebra, não se pode admitir a livre presunção de que o advogado público tenha a “intenção deliberada” de não cumprir comando judicial. O procurador fazendário pauta sua conduta no princípio da legalidade (CF/88, art. 37), não estando submetido aos desígnios do administrador público – tampouco extraindo de um eventual descumprimento qualquer benefício pessoal. Pelo contrário: desempenhando função essencial à Justiça (CF/88, Capítulo IV), só interessa ao advogado que as decisões judiciais sejam cumpridas, valorizando o legítimo processo de formação dessas decisões. Equívocos ou excessos judiciais são combatidos na esfera recursal, e não no plano dos fatos.

Não se defende aqui, obviamente, que a conduta do advogado fique sempre insuscetível de questionamento, eis que em tese é plenamente possível que o advogado manifeste renitência ilícita. Porém, nesse sentido, já se manifestou o Superior Tribunal de Justiça: "Os danos eventualmente causados pela conduta do advogado deverão ser aferidos em ação própria para esta finalidade, sendo vedado ao magistrado, nos próprios autos do processo em que fora praticada a alegada conduta de má-fé ou temerária, condenar o patrono da parte nas penas a que se refere o art. 18, do Código de Processo Civil." (REsp 1173848/RS, Rel. Min. LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, DJe 10/05/2010). “Responde por litigância de má-fé (arts. 17 e 18) quem causar dano com sua conduta processual, que, nos termos do art. 16, somente podem ser as partes, assim entendidas como autor, réu ou interveniente em sentido amplo. Com efeito, todos que de qualquer forma participam do processo têm o dever de agir com lealdade e boa-fé (art. 14, do CPC). Porém, em caso de má-fé, somente os litigantes, estes entendidos tal como o fez Pontes de Miranda, estarão sujeitos à multa e indenização a que se refere o art. 18, do CPC. Os danos causados pela conduta do advogado deverão ser aferidos em ação própria para esta finalidade, sendo vedado ao magistrado, nos próprios autos do processo em que fora praticada a conduta de má-fé ou temerária, condenar o patrono da parte nas penas a que se refere o art. 18, do Código de Processo Civil”. (REsp 140578 / SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 20/11/2008).

O que se contesta, e com veemência, é que o descumprimento de decisão judicial pela Fazenda Pública seja ordinariamente concebido como o resultado de intento criminoso e deliberado do procurador/advogado vinculado ao feito, como se a inobservância de comando judicial pudesse de alguma forma interessar ao procurador; e como se a burla à legalidade pertencesse ao modus operandi do advogado público.

O novo Código de Processo Civil (Lei nº. 13.105/2015) encampou o que já vinha sendo decidido pelos tribunais superiores, principalmente em seu art. 77, §6º: “Art. 77.  Além de outros previstos neste Código, são deveres das partes, de seus procuradores e de todos aqueles que de qualquer forma participem do processo: (...) IV - cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais, de natureza provisória ou final, e não criar embaraços à sua efetivação; V - declinar, no primeiro momento que lhes couber falar nos autos, o endereço residencial ou profissional onde receberão intimações, atualizando essa informação sempre que ocorrer qualquer modificação temporária ou definitiva; VI - não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso. § 1o Nas hipóteses dos incisos IV e VI, o juiz advertirá qualquer das pessoas mencionadas no caput de que sua conduta poderá ser punida como ato atentatório à dignidade da justiça. § 2o A violação ao disposto nos incisos IV e VI constitui ato atentatório à dignidade da justiça, devendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa de até vinte por cento do valor da causa, de acordo com a gravidade da conduta. § 3o Não sendo paga no prazo a ser fixado pelo juiz, a multa prevista no § 2o será inscrita como dívida ativa da União ou do Estado após o trânsito em julgado da decisão que a fixou, e sua execução observará o procedimento da execução fiscal, revertendo-se aos fundos previstos no art. 97. § 4o A multa estabelecida no § 2o poderá ser fixada independentemente da incidência das previstas nos arts. 523, § 1o, e 536, § 1o. § 5o Quando o valor da causa for irrisório ou inestimável, a multa prevista no § 2o poderá ser fixada em até 10 (dez) vezes o valor do salário-mínimo. § 6o Aos advogados públicos ou privados e aos membros da Defensoria Pública e do Ministério Público não se aplica o disposto nos §§ 2o a 5o, devendo eventual responsabilidade disciplinar ser apurada pelo respectivo órgão de classe ou corregedoria, ao qual o juiz oficiará”.

Em comentário ao dispositivo, preleciona Fernando Gajardoni: “O representante judicial da parte não pode ser compelido a cumprir decisão em sua substituição. Algo evidente, já que a representação judicial não implica o dever de praticar outros atos que não os processuais, na forma do mandato legal ou convencional conferido (art. 105 do CPC/2015). Mas o dispositivo é necessário. Ainda há notícias de que se tem exigido, de alguns procuradores, o cumprimento de decisões judiciais, mesmo não tendo eles poderes para tanto. A impossibilidade de fazer com que o representante judicial cumpra decisão judicial em substituição da parte, contudo, não impede que o profissional receba a intimação, pela parte representada, para fazê-lo (salvo quando a lei exija, expressamente, intimação pessoal da própria parte). Nestes casos, a intimação é destinada ao profissional. Mas eventuais consequências do descumprimento serão aplicadas às partes representadas (v.g. art. 513, §2º, I c.c. 523, §1º, ambos do CPC/2015)”.

O convite é de vigilância, para que o óbvio continue óbvio.


 

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