A malfadada decisão do STF que admite a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da decisão condenatória

20/05/2016

Por Thiago Vasconcelos Moura - 20/05/2016

Introdução

O plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), ao negar o Habeas Corpus nº: 126292, no dia 17/02/2016, com uma votação de 7x4, decidiu pela possibilidade de início da execução da pena condenatória após a confirmação da sentença em segundo grau, por não ofender o princípio constitucional da presunção da inocência. Essa decisão promove uma modificação no entendimento da Suprema Corte Brasileira, que desde 2009, no julgamento do Habeas Corpus nº: 84078, condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, mas ressalvava a possibilidade de decretação da prisão preventiva, desde que preenchidos os requisitos do artigo 312 do Código de Processo Penal.

O relator do caso, ministro Teori Zavascki, ressaltou em seu voto que, até que seja prolatada a sentença penal, confirmada em segundo grau, deve-se presumir a inocência do réu. Só, após esse momento, exaure-se o princípio da não culpabilidade, até porque os recursos cabíveis da decisão de segundo grau, ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) ou ao STF, não se prestam a discutir fatos e provas, mas apenas matéria de direito.

Até que ponto podemos admitir a mitigação dos direitos fundamentais em face da ineficiência do Estado em cumprir o seu papel, pois fundamentam que a sensação de impunidade não pode imperar. Será se realmente avançamos com essa decisão do STF.

Princípio da Presunção de Inocência

No Brasil, o princípio da presunção de inocência está expressamente consagrado no art. 5º, LVII, da Constituição Federal, sendo o princípio reitor do processo penal e, em última análise, podemos verificar a qualidade de um sistema processual através do seu nível de observância (eficácia). A partir do momento em que o imputado é presumidamente inocente, não lhe incumbe provar absolutamente nada. Existe uma presunção que deve ser destruída pelo acusador, sem que o réu e muito menos o juiz tenham qualquer dever de contribuir nessa desconstrução. A Constituição Federal disciplinou esse princípio de forma mais ampla que a Convenção Americana de Direitos Humanos, pois esta considerada a pessoa presumidamente inocente até que seja provada a sua culpa (art. 8º, 2), enquanto aquela estabeleceu o limite do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

É importante salientar que, no processo penal, não há distribuição de cargas probatórias: a carga da prova está inteiramente nas mãos do acusador (Ministério Público), não só porque a primeira afirmação é feita por ele na peça acusatória, mas também porque o réu está protegido pela presunção de inocência. Não raras são as sentenças condenatórias fundamentadas na “falta de provas da tese defensiva”, como se o réu tivesse que provar sua versão negativa de autoria ou da presença de uma excludente.

O processo penal define uma situação jurídica em que o problema da carga probatória é, na realidade, uma regra para o juiz, proibindo-o de condenar alguém cuja culpabilidade não tenha sido completamente provada. Ao lado da presunção de inocência, como critério pragmático de solução da incerteza (dúvida) judicial, o princípio do in dubio pro reo corrobora a atribuição da carga probatória ao acusador e reforça a regra de julgamento. A única certeza exigida pelo processo penal refere-se à prova da autoria e da materialidade, necessárias para que se prolate uma sentença condenatória. Do contrário, em não sendo alcançado esse grau de convencimento, a absolvição é imperativa.

Devemos destacar que a primeira parte do art. 156 do Código de Processo Penal deve ser lida à luz da garantia constitucional da inocência. O dispositivo determina que “a prova da alegação incumbirá a quem fizer”, mas a primeira (e principal) alegação feita é a que consta na denúncia e aponta para a autora e materialidade; logo, incumbe ao Ministério Publico o ônus total e intransferível de provar a existência do delito. Isso significa que incumbe ao acusador (Ministério Público) provar a presença de todos os elementos que integram a tipicidade, a ilicitude e a culpabilidade e, logicamente, a inexistência das causas de justificação.

Execução provisória da pena

Até o julgamento do Habeas Corpus nº: 84078, o STF admitia a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado. Após, a Corte condicionava a execução da pena ao trânsito em julgado da condenação, mas ressalvava a possibilidade de decretação da prisão preventiva, desde que preenchidos os requisitos do artigo 312 do CPP.

O cumprimento antecipado da pena ofende o princípio da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, III da Constituição Federal, sendo o epicentro axiológico de todo o nosso ordenamento jurídico e corolário do Estado Democrático de Direito.

Ademais, como todo cidadão, o acusado goza dos preceitos constitucionais, e, dentre eles, o de ter assegurada sua ampla defesa por todos e quaisquer meios permitidos em direito para a produção das provas necessárias para confirmar sua inocência, os quais lhes são facultados, pois se o esteio dessa sociedade democrática e de direito é o de que até provas em contrário, todos são inocentes, então se deve entender, compreender e praticar o princípio da presunção de inocência, o qual, a priori, deve nortear o caso, prevalecendo assim a regra do in dúbio pro reo.

Logo, o que não foi efetivamente declarado culpado não pode ser simplesmente presumido, sob pena de estarem sendo violadas inúmeras garantias constitucionais arduamente conquistadas.

Mudança de posicionamento do STF

O STF mudou o seu posicionamento, admitindo a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória, desde que a sentença do juízo a quo seja confirmada pelo Tribunal de 2ª grau. O ministro relator, Teori Zavascki, ressaltou em seu voto que, “a Lei Complementar 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, expressamente consagra como causa de inelegibilidade a existência de sentença condenatória proferida por órgão colegiado, sendo que a presunção da inocência não impede que, mesmo antes do trânsito em julgado, o acórdão condenatório produza efeitos contra o acusado”. Além disso, no tocante ao direito internacional, o relator citou manifestação da ex-ministra Ellen Gracie no julgamento do Habeas Corpus nº: 85886, quando salientou que “em país nenhum do mundo, depois de observado o duplo grau de jurisdição, a execução de uma condenação fica suspensa aguardando referendo da Suprema Corte”.

O relator defende que, se houver algum equívoco na execução provisória da pena, existem instrumentos possíveis, como medidas cautelares e mesmo o habeas corpus para evitar o seu comprimento.

A votação foi pelo placar de 7x4 pela admissão da execução provisória da pena, com os votos do relator, acompanhado pelos ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia e Gilmar Mendes. E votaram pela não admissão da execução provisória a ministra Rosa Weber e os ministros Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski.

Retrocesso Social

O Ingo Wolfgang Sarlet define o princípio da proibição de retrocesso social como “toda e qualquer forma de proteção de direitos fundamentais em face de medidas do poder público, com destaque para o legislador e o administrador, que tenham por escopo a supressão ou mesmo restrição de direitos fundamentais (sejam eles sociais, ou não)”. O princípio da vedação do retrocesso social é conhecido também como princípio da irreversibilidade dos direitos fundamentais.

Alguns podem defender que a maioria dos países adota o sistema recursal limitado à presunção de inocência ao esgotamento das vias ordinárias, sendo que os recursos extraordinários não impedem o início da execução da pena. Não podemos esquecer que a opção do legislador constituinte foi de estabelecer o limite do trânsito em julgado da sentença penal condenatória para a perda da presunção de inocência, nos termos do art. 5º, LVII, da CF/88. Então, o Brasil foi além na proteção do princípio da presunção de inocência, não podendo ser recriminado por isso.

A presunção de inocência é um direito fundamental de todos, não somente de acusados, tendo como status de cláusula pétrea, nos termos do artigo 60, §4º, IV da CF/88. Em preservação ao efeito “cliquet”, uma emenda constitucional não poderia estabelecer outro limite para determinar até onde ia o estado de não culpabilidade.

A questão da sensação de impunidade não pode ser fundamento para basear uma mitigação dos direitos fundamentais, sob pena de retornar aos primórdios da humanidade.

Muitos perguntariam se seria possível denunciar o Brasil à Comissão Interamericana de Direitos Humanos por essa decisão do STF, já que um direito fundamental foi violado. Vale salientar que o caso para ser levado à Comissão exige o esgotamento da jurisdição interna, conforme artigo 46.1.”a” do Pacto de São José da Costa Rica.

Conclusão

Não estou aqui esgotando o tema, pois o mesmo é bem complexo. O que percebo é que o Poder Judiciário quer resolver o problema da alta criminalidade que assola o nosso País e extinguir a sensação de impunidade existente na sociedade brasileira. Vale ressaltar que esse papel é do Poder Executivo com a instituição de políticas públicas eficazes, pois o Direito Penal não resolverá essa situação.

Peço licença para citar uma frase de Ney Moura Telles: “Querer resolver o problema da criminalidade com o Direito Penal, é mesmo que querer curar a doença com analgésico”. Nós temos que exigir do governo brasileiro mais políticas sociais, investimentos na educação e saúde, como forma de avançarmos para um país melhor.

O legislador constituinte de 1988 achou por bem limitar o período de presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Essa escolha deve ser preservada por ser um direito fundamental de todos, tendo status de cláusula pétrea. Até mesmo uma proposta de emenda constitucional não poderia modificar esse limite.

O STF andou mal com essa decisão de admitir a execução provisória da pena, ao arrepio do texto constitucional. A Constituição Federal foi desconsiderada/rasgada sem motivos plausíveis, ocorrendo um verdadeiro retrocesso social. Ressaltando que até mesmo uma emenda constitucional não poderia admitir a execução provisória da pena antes do trânsito em julgado da sentença condenatória. Apesar da decisão do STF ter sido tomada em Habeas Corpus sem repercussão geral, não tendo efeito vinculante, essa decisão vai prevalecer no judiciário, pois caso algum juiz ou tribunal entenda diferente, é só recorrer para o STF e ter garantida a execução provisória da pena.

Há uma saída para reverter essa decisão, é levar o caso à Comissão Interamericana, uma vez que houve o esgotamento da jurisdição interna. Infelizmente, com essa decisão, constata-se uma grande violação aos direitos humanos, tendo em vista que o princípio da presunção de inocência previsto pela CF/88 é mais protetivo a qualquer pessoa que o definido na Convenção Americana de Direitos Humanos.


Notas e Referências:

[1] Cf. SARLET, Ingo Wolfgang. A assim designada proibição de retrocesso social e a construção de um direito constitucional comum latinoamericano. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC. Belo Horizonte, ano 3, n. 11, jul./set. 2009.


Thiago Vasconcelos Moura. . Thiago Vasconcelos Moura é Defensor Público do Estado do Pará. Pós graduado em Direito Penal e Processual Penal pela UCDB e pós graduado em Direito da Criança e do Adolescente pela UFPA.. .


Imagem Ilustrativa do Post: Freedom? // Foto de: Raffi Asdourian // Sem alterações

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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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