Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Rêgo, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann
A brutalidade do extermínio da juventude negra e pobre, alardeada há tempos por muitos movimentos sociais, parece ter disparado a sua “gota d’água” diante dos últimos acontecimentos. Novos episódios de balas “perdidas”, violência policial, racismo, negligência, dentre outras tantas barbáries, tem parecido mais assustadoras do que a COVID-19 e tem levado milhares de pessoas às ruas, em todo o mundo, para (re)afirmarem que vidas negras importam.
A situação atual parece ser desesperadora. Mas, as violências, decorrentes do racismo e desigualdade, estruturais no modo de produção capitalista, não são novas, nem novos são os protestos que se irrompem contra suas sequelas. Vidas negras, periféricas, descartáveis, matáveis, poderão de fato importar, inseridas nos marcos do sistema capitalista? Esse ensaio pretende refletir sobre qual o nosso limite diante da ação destruidora do capital. A pandemia do novo coronavírus, que tem exposto as fraturas de um velho mundo que agoniza, será o limite para a construção de um novo mundo? Até quando pediremos licença para respirar e existir?
Pobreza e capitalismo
“Tudo nos é proibido, exceto cruzar os braços? A pobreza não está escrita nas estrelas, o subdesenvolvimento não é fruto de um obscuro desígnio de Deus. Correm anos de revolução, tempos de redenção. As classes dominantes põem as barbas de molho e, ao mesmo tempo, anunciam o inferno para todos”. (Eduardo Galeano, em As veias abertas da América Latina).
Em 25 de maio de 2020, protestos contra a brutalidade policial, alimentados pela morte de George Floyd em Minneapolis (Minnesota, EUA), colocaram fogo em um país que já vinha enfrentando os graves problemas causados pela pandemia e pela crise econômica que dela decorre. A frase dita por George Floyd antes de morrer, “eu não consigo respirar”, foi amplamente mencionada, como uma importante metáfora sobre o sentimento insustentável de sufocamento e silenciamento, ocasionado pela opressão de raça e classe, operada pelo modo de produção capitalista. Vale salientar que, antes de morrer, depois de ficar preso por alguns minutos sob o joelho de um policial branco, George Floyd estava vivenciando a mesma situação - potencializada durante a pandemia do novo coronavírus - de milhões de americanos desassistidos pelo estado. Estava desempregado e procurando um novo emprego.
Como disse Erik Olin Wright (2019), a marca registrada do capitalismo é a miséria que ele gera em meio à abundância. Junto ao crescimento econômico capitalista vem a precarização de muitas vidas: “o capitalismo só gerou aumentos reais na produtividade e uma riqueza extravagante para alguns, mas a maioria ainda tem que lutar pela sua subsistência.” (p.24). No limite, a desigualdade social e racial são questões insolúveis para o capital.
A partir de um olhar distorcido para as sequelas da “questão social”[1], enxergamos a pobreza e a desigualdade através de duas ideias principais, uma delas passa pela via da vitimização. Por essa perspectiva, a pobreza é vista como um desígnio dos céus (Paiva, 2007). E, para sair dela, “diz que deus dará”. E se deus não dá? A passividade e a acomodação reforçam a espera de dias melhores: “assim pensando, o tempo passa e a gente vai ficando para trás, esperando, esperando, esperando”.... Essa perspectiva tem sido amplamente reforçada pelo fundamentalismo religioso e ideias negacionistas. Até mesmo, mortes evitáveis, em meio à pandemia, são tratadas como “o destino de todos nós”, como disse o presidente Bolsonaro.
Além disso, o (neo) desenvolvimentismo capitalista neoliberal se utiliza da ideia de progresso e modernização para justificar as ideias de atraso, passividade e subdesenvolvimento de povos e territórios ao redor do mundo, de modo a projetar um ideário de que só o desenvolvimento capitalista é capaz de “salvar” os povos atrasados.
Na outra via, a da culpabilização e meritocracia, tendemos a encarar a pobreza como um fracasso individual. A fábula da cigarra e da formiga, conhecida de todos, demonstra os conceitos ideológicos de culpabilização presentes nas noções de pobreza e desigualdade social. Afinal, “o sol nasce para todos”, desde que tenhamos nos esforçado o suficiente. Numa perspectiva funcionalista, o sistema opera perfeitamente, sendo que indivíduos desadaptados devem ser “reinseridos” na sociedade. As opressões são tratadas como “disfunções”. Dessa forma, encobrimos contradições fundamentais da sociedade capitalista, contradições que integram a natureza de uma sociedade de classes. (Paiva, 2007).
Apenas com a desideologização podemos pensar em alguma ruptura com o que está naturalizado e dado como imutável. Para desencadear ações organizativas, Gramsci (1978) indicou, no contexto do regime fascista italiano, que as classes subalternizadas precisavam se libertar da sua dependência dos intelectuais burgueses, para que pudessem desenvolver e disseminar sua própria cultura, abandonando posturas fatalistas e compreendendo seu valor histórico. Imprescindível, também, racializar esse debate, colocando em evidência os entrecruzamentos entre gênero, raça e classe na construção de qualquer alternativa ao capitalismo.
Os jovens dizem “chega”!
Cenas dos protestos, nos Estados Unidos, demonstram a resposta emocionada e exausta de toda uma população, bradando por justiça em nome das pessoas negras mortas pela polícia. Levantam-se, mais uma vez, contra o racismo e a violência policial, e dizem, “basta”!
A maioria das pessoas que protestam são muito jovens, como afirmou Emma Goldberg, em matéria do New York Times[2]:
“As multidões em Nova York eram surpreendentemente jovens, muitas na adolescência e na casa dos 20 anos. Algumas jovens mulheres negras carregavam cartazes em homenagem a vidas tiradas pela violência policial: "Ele é meu pai, irmão, tio, primo", dizia uma placa. "A vida dele é importante." Uma cidade que ficou quieta por dois meses agora está pulsando”.
Ora, no início dos anos 1990, Francis Fukuyama, em seu livro “O fim da história e o último homem”, anunciou que havíamos chegado ao fim da História e que a forma final da liberdade humana era o capitalismo liberal democrático. Muitos se sentiram desconfortáveis, não gostaram da ideia de que tudo havia chegado ao fim. O pensador francês Jean Baudrillard apontou a alergia que temos a qualquer ordem definitiva, a qualquer estado final das coisas, e esse sentimento seria especialmente forte em grupos de jovens, “o que não muda é o desejo de mudança”.[3] Mas, mudar em qual direção?
Não devemos permitir que nossa concepção de emancipação humana se restrinja pela identificação da democracia formal com o capitalismo (Wood, 2006, p. 217). Não há nenhuma evidência de que as metamorfoses pelas quais o capitalismo vem passando tenham alterado as desigualdades e exploração do trabalho, nem superado as opressões de raça e gênero, muito pelo contrário, tem sido seus pilares de sustentação.
Os corpos negros, latinos, periféricos, proletários, em suas vidas subalternizadas e precarizadas, sempre serão descartáveis ao capital. Chegaremos ao limite quando formos capazes de formar sujeitos coletivos para agir politicamente visando o fim do capitalismo, do racismo e do sexismo. Se pensarmos que cada época tem a sua tarefa histórica, a juventude organizada tem um papel fundamental na gestação de um projeto de futuro anticapitalista, antirracista e antipatriarcal. Além disso, as mulheres jovens negras, que tem sido uma presença marcante em vários protestos, são sujeitas históricas importantíssimas, por comportarem, como disse Lélia Gonzales (1984), a opressão de gênero, raça e classe. Para Angela Davis, raça informa classe, logo, de acordo com a autora, a luta antirracista, antipatriarcal, deve estar atrelada à luta anticapitalista.
O destino inaceitável de Miguel
A imagem de Miguel Otávio Santana da Silva, uma criança de cinco anos, desamparada, deixada dentro de um elevador, gritando por sua mãe e, em seguida, caindo do 9º andar de um prédio, na cidade do Recife (PE), é desoladora e ficará marcada nas páginas mais tristes da nossa história. Mirtes Renata Santana de Souza, uma mulher trabalhadora, negra, mãe solo, deveria ter tido a oportunidade de ficar protegida em sua casa, junto com seu filho, diante de uma pandemia gravíssima que matou mais de 30 mil pessoas no nosso país (até o final do mês de maio/2020), mas estava a serviço, passeando com os cachorros da sua empregadora naquele dia. Essa trágica história reforça muitos símbolos da falsa democracia brasileira e como não, da falsa abolição.
Temos, no nosso país, uma história de autoritarismo e divisão social hierarquizada, não superada e naturalizada. Tal divisão, herdada da nossa história escravagista e colonializada, demarca e separa aqueles que podem alcançar o status de pessoa e os que não podem. Essa hierarquização, autoritarismo e violência nunca desapareceram das relações sociais brasileiras, perpetuando-se um estado capitalista necropolítico no nosso país, no qual, mais uma vez, os corpos jovens, pobres e negros pouco ou nada valem/servem.
Para falar de uma democracia real, é preciso falar de uma sociedade justa, em que todas as pessoas teriam amplo e igual acesso aos bens materiais, culturais e sociais necessários para uma vida plena (Wrigth, 2019). Não houve escolhas para Miguel, assim como não há escolhas para muitas crianças brasileiras que têm sua infância usurpada, impedida de se realizar.
Outro aspecto a destacar é a existência de uma função fundamental do estado brasileiro, que é o uso da violência, incompatível com os ideais democráticos. Aqui é importante lembrar um fenômeno que vem se renovando e ganhando força na sociedade brasileira que é a militarização da política, e da vida, cada vez mais presente nas práticas estatais e nos discursos das nossas autoridades. Ou seja, uma lógica militar, resquício do período da ditadura vivenciada pelo país, nas décadas de 1960 e 1970, aplicada à gestão da população mais pobre. Inúmeros dados escancaram de forma brutal essas práticas violentas, ao nos debruçarmos, por exemplo, sobre o assassinato de crianças e jovens, pela polícia militar, nas periferias brasileiras. Enquanto escrevo esse ensaio, diversos movimentos sociais e organizações realizam ato de indignação e protesto pelo assassinato do menino João Pedro[4].
O capitalismo sabota as chances de uma vida plena para todas as pessoas e, para criar uma democracia verdadeiramente popular, é preciso destruir essa estrutura.
Esse texto é sobre Miguel Otávio, João Pedro, Ágatha Vitória e sobre todas as crianças, adolescentes e jovens, negros e negras, que foram mortos pela negligência e violência do estado classista e racista brasileiro.
Coletivizando verdadeiramente nossas dores e lutas
A precarização das vidas de milhares de brasileiros e brasileiras e seu precário acesso aos serviços de saúde estão expondo-os de modo muito mais grave às consequências da pandemia do novo coronavírus – estudos já mostram que as pessoas que vivem em situação de pobreza estão adoecendo e morrendo mais. Nos EUA, como sabemos, a população pobre, negra e latina é a mais afetada. No Brasil, além de tudo isso, precisamos olhar para o recorte regional, tendo em vista que o norte e nordeste tem acesso mais precário aos serviços de saúde. Os trabalhadores dos serviços essenciais, que estão na linha de frente, expondo-se diariamente à pandemia, têm baixos salários, precarização das moradias, do transporte público, ou seja, precarização absurda das suas vidas.
Mas, lembremos que há tempos acumulamos crises que colocam a classe trabalhadora no limite. A pandemia ocasionada pelo novo coronavírus, intensifica e escancara a impossibilidade de um “capitalismo humanizado”, ou seja, a impossibilidade de uma emancipação humana enquanto existirmos na sociabilidade do capital.
Para enfrentar esse cenário, tenho reafirmado a importância da coletivização das nossas dores e das nossas lutas. Nesse tipo de sociabilidade em que vivemos, em que há a hiper valorização do individualismo, os sentidos do comum, do coletivo, perdem-se. A perda, o luto e o sentimento de desamparo é algo demasiado humano. Ao coletivizar algo que pode ser sentido de modo profundamente solitário e pessoal, vamos, aos poucos, fortalecendo-nos. Evidentemente, os recursos que temos para enfrentar as durezas da vida são completamente desiguais. Por isso, toda solidariedade ativa nesse momento é imprescindível.
Após nos identificarmos nas nossas dores, é imprescindível nos identificarmos nas nossas lutas. A construção de um projeto de sociedade livre de qualquer forma de opressão e exploração, só será possível, fora dos marcos do capitalismo.
Estamos atordoados(as), perplexos(as) e exaustos(as). Mas, isso não deve nos imobilizar. Esperançar é preciso. Por isso, tenho recuperado uma fala de Eduardo Galeano, durante o quinto fórum social mundial de Porto Alegre, que contou uma história de um pintor, chamado Vargas, carpinteiro, quase analfabeto, e que pintava quadros impressionantes: “os quadros tinham cores que humilhavam arco íris, as flores, os pássaros, eram muito maiores que as pessoas, eram um canto à vida tropical, um hino à natureza americana”. A verdade é que onde ele vivia, era tudo cinza, não havia nenhuma planta verde, até as águas do lago eram turvas... Nesse cenário, esse homem criou essa pintura viva, colorida”. Galeano dizia, então, que Vargas era um pintor realista, “por que não se é realista só quando se pinta a realidade que conhece e padece, mas também se é realista quando se pinta a realidade que se necessita, por que na barriga deste mundo, há outro mundo possível”.
Num mundo pós pandemia, recusemo-nos à adaptação a uma política que quer nos destruir. Esse momento histórico que vivemos pode ser o nosso limite para a construção de outro padrão de sociabilidade. Mas, nenhuma revolução virá de um vírus. Somos nós que temos que nos colocar como sujeitos e sujeitas da história e dizer que futuro queremos gestar.
Notas e Referências
GONZALES, Lelia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1979.
PAIVA, Ilana Lemos de. Os novos quixotes da psicologia e a prática social no âmbito do terceiro setor. 2008. 210 f. Tese (Doutorado em Psicologia Social; Processos Psicossociais; Relações de Poder e Sociedade) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2008.
WOOD, Ellen Meiksins. Democracia contra o Capitalismo: a renovação do materialismo histórico. São Paulo: Boitempo, 2010.
WRIGHT, Erick Olin. Como ser anticapitalista no século XXI? Sâo Paulo: Boitempo, 2019.
[1] A expressão “questão social” representa o reconhecimento, por parte do Estado capitalista, da necessidade de enfrentamento das diversas mazelas sociais.
[2] Ver: https://www.nytimes.com/2020/06/02/us/protests-women-new-york-george-floyd.html (Tradução livre).
[3] Referência a Charles Olson, poeta norte americano, lembrado pelo historiador Perry Anderson em entrevista dada ao projeto Fronteiras do Pensamento, em 2013. Ver entrevista aqui: https://www.fronteiras.com/videos/o-que-nao-muda-e-o-desejo-de-mudanca
[4] João Pedro, 14 anos, levou um tiro de fuzil na barriga, durante operação feita pela Polícia Civil do Estado com a Polícia Federal, enquanto brincava na casa de um primo, no dia 18 de maio, no Complexo do Salgueiro, na cidade de São Gonçalo, no Rio de Janeiro. Para mais informações: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-05-21/pai-de-joao-pedro-morto-pela-policia-os-sentimentos-do-governador-nao-trarao-de-volta-meu-filho.html
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