A litispendência subjetivamente cruzada – Por Felippe Borring Rocha e Lívia Casimiro

03/10/2017

Coordenador: Gilberto Bruschi

Não é de hoje que se discute sobre os critérios utilizados para a individualização das demandas. Apesar de amplamente aceita e bastante eficiente, a teoria da tríplice identidade, que consiste na afirmação de que uma demanda é idêntica a outra se ambas possuírem as mesmas partes, causa de pedir e pedido, tem se mostrado insuficiente para equacionar as novas questões processuais ligadas aos fenômenos da tutela provisória, da coisa julgada, da litispendência e da conexão, para ficar apenas nos casos mais agudos.

De fato, a concepção clássica da teoria da tríplice identidade, conforme assentada no atual Código de Processo Civil (art. 337, § 2º) e acolhida majoritariamente pela doutrina processual brasileira, tem permitido, por exemplo, a coexistência de demandas apenas processualmente distintas, mas, substancialmente, iguais. Com isso, corre-se o risco de obter pronunciamentos judiciais conflitantes, além da prática de atos processuais desnecessários. Daí porque se defende a necessidade de adoção de critérios complementares, dentro da teoria da tríplice identidade, para fins de uma melhor e mais completa caracterização da similitude entre as demandas. Nesse sentido, parece correto afirmar que o eixo central dessa reflexão deva girar em torno da análise sobre o vínculo existente entre a relação jurídica processual e a relação jurídica material deduzida em juízo.

Para ilustrar a ponderação ora delineada, tome-se como exemplo a seguinte situação hipotética: João e Maria, casados entre si, já estão separados de fatos e não desejam mais manter o vínculo matrimonial. João, então, ingressa com uma ação de divórcio em face de Maria. Logo em seguida, mas antes de ser citada, Maria propõe uma ação de divórcio em face de João. Diante desse quadro, qual seria a forma mais adequada de se lidar com a coexistência dessas demandas, considerando que ambas foram apresentadas perante um juízo material e territorialmente competente?

Antes de avançar na análise da questão apresentada, parece conveniente tecer algumas breves considerações sobre os institutos processuais da conexão, da continência e da litispendência. Em primeiro lugar, é necessário destacar que a conexão ocorre quando existe algum nível de semelhança ou vinculação entre causas distintas que estão tramitando simultaneamente no Poder Judiciário. Seu objetivo é promover a reunião dessas demandas num mesmo juízo, para evitar o risco da prolação de decisões conflitantes e otimizar a atuação judicial. Por envolver aspectos de ordem pública, a conexão pode ser reconhecida de ofício (art. 337, § 5º, do CPC) ou mediante provocação, em qualquer fase do procedimento (ainda que o Código diga que o réu deve fazê-lo na contestação – art. 337, VIII), mas apenas entre causas que ainda não tenham sido julgadas e desde que seja conveniente para o julgamento. De acordo com art. 55 do CPC, o que vai definir conexão entre as demandas é a similaridade entre seu pedido ou sua causa de pedir, bem como o risco de gerarem decisões conflitantes.

A continência, por sua vez, é tida como espécie de conexão onde a similaridade entre as causas é quase que absoluta. Para que se dê a continência entre duas ou mais ações deve-se ter presente em cada uma delas as mesmas partes e a mesma causa de pedir. Assim, o que diferencia essas ações seria a amplitude do pedido (art. 56 do CPC). Diferentemente do que ocorre na conexão, no caso da continência, duas são as consequências processuais possíveis. De acordo com o art. 57 do CPC, se a ação continente (com pedido mais amplo) tiver sido proposta primeiro, as demais ações contidas (com pedidos menos amplos) serão encerradas, sem resolução de mérito (art. 485, X, do CPC). Por outro lado, se a ação contida for mais antiga que as outras, a ela serão reunidas as ações continentes.

Por fim, a litispendência retrata o fenômeno processual que se verifica quando uma demanda é proposta com as mesmas partes, mesma causa de pedir e o mesmo pedido de outra demanda ainda em curso. Neste caso, a consequência processual prevista pela legislação é o encerramento da ação mais nova, sem exame do mérito (art. 485, V).

Pois bem. Voltando ao caso proposto, à luz da concepção clássica da teoria da tríplice identidade, seria possível sustentar que as ações de João e Maria deveriam ser reunidas, para julgamento conjunto, por conexão, em razão da similaridade entre as partes e as causas de pedir. Processualmente, no entanto, não haveria litispendência ou continência, eis que os pedidos expressos em cada uma das ações são formalmente diferentes: o pedido de João é se divorciar de Maria, enquanto que o pedido de Maria, é se divorciar de João. A posição processual, aqui, tem relevância, pois distingue quem está reclamando a prestação da tutela jurisdicional. Situação diferente seria se o autor de uma ação formulasse a mesma demanda em sede de reconvenção em outro processo, onde figura como réu. Neste caso, os pedidos seriam idênticos, independentemente da posição do demandante na relação jurídica processual, exatamente pelo fato de a pretensão ter sido formulada pela mesma pessoa.

Por outro lado, importante destacar que por conta das últimas alterações legislativas, especialmente a modificação operada no art. 226, § 1º, da Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 66/2010, a porção majoritária da doutrina passou a entender que a motivação fática para o oferecimento do pedido de divórcio deixou de ser juridicamente relevante. Assim, não importa quais razões João e Maria apresentaram para embasar seus pedidos de divórcio (se é que apresentaram alguma), pois, ainda assim, a causa de pedir seria a mesma: o interesse em dissolver o vínculo matrimonial.

Tratar a situação de João e Maria como mera conexão, no entanto, não parece atender às finalidades precípuas da ciência processual. Com efeito, sendo as demandas conexas, os juízes poderiam, por conveniência da instrução, afastar a reunião das ações. Além disso, se uma das ações fosse julgada, a reunião ficaria dispensada, com o grave (embora altamente improvável) risco de decisões conflitantes.

Por isso, sustentamos que a questão deveria ser tratada como litispendência, ou seja, a ação de Maria, por ser posterior à de João, deveria ser encerrada, sem resolução do mérito, nos moldes do art. 485, V, do Código de Processo Civil. Com efeito, as demandas são materialmente idênticas, pois ambas almejam o mesmo resultado jurídico. A única diferença é que as partes estão em polos invertidos. Mas essa inversão não é capaz de modificar a relação jurídica de direito material em cada uma das demandas. Exatamente por isso, resolvemos chamar tal fenômeno de litispendência subjetivamente cruzada.


 

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