A liga da canela preta como movimento reivindicatório de acesso ao esporte      

07/02/2022

Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan

O futebol é um exemplo que consegue explicar a reivindicação de prática esportiva. Porém, é necessário remontar a vinda do futebol ao Brasil e como se deu a inserção desse esporte no país. Para analisar a segregação que os negros sofrem no futebol, faz-se oportuno estabelecer um ponto histórico inicial para chegar até a liga da canela preta – visto que o futebol no Brasil teve viés elitista em razão da sua prática ser realizada em clubes sociais da elite brasileira, excluindo da prática esportiva os segmentos mais pobres da população, predominante negra.

Com a chegada do futebol em território nacional em meados de 1894, rapidamente o esporte se populariza. Porém, é voltado para a elite branca, ressaltando que negros não eram aceitos pelos clubes sociais para a prática do futebol (GUTERMAN, 2009). É justamente após esse momento que começam a surgir os clubes de futebol no Brasil[1], e não foi diferente em Porto Alegre – aqui objeto do estudo –, com diversas similaridades a outras regiões do país.

Nesse movimento de chegada do futebol ao Brasil, havia também uma transição social: ainda tínhamos reflexos do escravagismo, até porque o fim da escravidão e do Império, bem como a generalização das relações de trabalho livre, não superaram os vícios aristocráticos da sociedade brasileira – muito menos as caraterísticas de uma sociedade escravocrata. Assim, com a abolição, os negros recém-libertos não tinham qualquer tipo de inserção na sociedade, tornando praticamente impossível começar uma nova vida (BALZANO, 2010). Ou seja, as práticas elitistas fizeram que os negros não pudessem se autogerir socialmente, ficando até mesmo impossibilitados de vender sua força de trabalho. Nessa seara, esses aspectos criaram e reforçaram a prática de preconceito para a inclusão dos negros na indústria nascente e no setor de serviços, fatos que refletiram no futebol brasileiro (BALZANO, 2010).

Mesmo com os problemas de inclusão, a limitação das possibilidades de uma vida com liberdade de fato, e ainda a blindagem da prática esportiva para uma exclusividade da elite branca reforçando o aspecto segregador, o futebol teve o condão de romper essa lógica elitista. Segundo Jesus:

“... traz em si processos dramáticos e representativos de problemáticas centrais da sociedade. Inicialmente reduto exclusivo das elites, tal esporte rapidamente rompeu os círculos aristocráticos para ganhar as ruas e tornar-se entretenimento popular de largo alcance”. (1998, p. 1)

Vale destacar que a presença de jogadores negros e mestiços nos clubes pequenos era tolerada pela elite branca, desde que fosse mantida a hegemonia dos clubes sociais e não houvesse abertura para que o grupo social excluído ocupasse esse lugar (OBSERVATÓRIO). Dentro dessa lógica, é possível analisar a Liga Nacional de Futebol Porto Alegrense, conhecida como a Liga da Canela Preta, uma vez que está dentro desse contexto histórico.

Foi justamente nesse cenário que a Liga da Canela Preta foi criada, para viabilizar a participação de atletas que não tinham possibilidade de participar desses clubes. Diante dessa exclusão, a Liga promoveu o ingresso de jogadores oriundos da classe pobre, principalmente dos negros. O Observatório da Discriminação Racial traz alguns elementos que listam os clubes que compunham o coletivo. A competição contava com nove times, todos organizados com diretorias, técnicos e sócios. Entre os disputantes, destacaram-se o Bento Gonçalves e o Rio-Grandense. Também eram participantes o Primavera, o Primeiro de Novembro, Oito de Setembro, União, Palmeiras, Aquidabã e Venezianos – todos os times oriundos da comunidade negra, de localidades como Cidade Baixa, Ilhota, Colônia Africana e Areal da Baronesa (OBSERVATÓRIO).

A partir do sucesso da Liga da Canela Preta, houve a criação de uma nova liga na década de 1920, organizada pela Associação Porto-Alegrense de Desporto (APAD), que seria a segunda divisão do futebol em Porto Alegre. O grupo foi batizado com o nome de Liga do Sabão, permitindo a participação de atletas negros – fato que começou a chamar a atenção dos clubes brancos, que buscavam convencê-los a ingressar em seus times. Aqui observa-se a lógica de esvaziamento da liga autônoma, no caso da Liga da Canela Preta: uma vez que tinham torcedores, sócios e ótimos atletas, para que fosse mantida a hegemonia da organização voltada para a elite, houve a drenagem dos jogadores de destaque da liga que permitia a participação de negros e mestiços. Assim, progressivamente, foi-se extinguindo a Liga da Canela Preta (LUDOPEDIO).

Observa-se que o sucesso do grupo acaba chamando a atenção das ligas hegemônicas – que, em razão de uma ameaça de seu domínio, acaba esvaziando a liga que causa esse tensionamento. É nesse momento que é feita a inclusão de uma minoria, por meio dessa ameaça – o que acaba refletindo na perpetuação do preconceito, pois a inclusão é feita em razão de um interesse puramente hegemônico.

Aqui serão utilizados alguns trechos do livro “Liga da Canela Preta: A história do negro no futebol”, que revela como as práticas de preconceito eram comuns à época; e também como os negros se organizaram para criar espaços de resistência e até mesmo de ascensão social por meio do futebol. Um dos momentos escolhidos foi uma coluna assinada por Lupicínio Rodrigues, que explica porque é torcedor do Grêmio, uma vez que se tratava de um time de elite que não permitia que negros jogassem no clube. Lupicínio relata que o Rio-Grandense fez um pedido para se inscrever na liga hegemônica da época, a liga de brancos, mas o Internacional não aceitou a inscrição – gerando assim um motivo para que os negros torcessem para o Grêmio. Assim ele diz:

Este sonho durou anos, mas no dia em que o Rio-Grandense pediu a inscrição na Liga, não foi aceito porque justamente o Internacional, que havia sido criado pelo “Ze Povo”, votou contra, e o Rio-Grandense não foi aceito. Isto magoou profundamente os mulatinhos, que resolveram torcer contra o Internacional, e o Grêmio, sendo o maior rival, foi o escolhido para tal. (SANTOS, 2019, p. 92-93).

Esse trecho da entrevista, publicada em uma coluna de 1963, demonstra as formas das quais os clubes e as entidades de administração do esporte se utilizavam para manter sua hegemonia – inclusive o Internacional, que nega a participação do Rio-Grandense, acaba contratando jogadores negros para jogar no clube. Isso reforça o aspecto hegemônico exercido pelas grandes ligas e seus associados. Em outro relato da mesma coluna, Lupicínio remonta o cenário racista da sociedade: criavam-se mecanismos para a não-participação de negros no esporte, seja na prática desportiva, seja até mesmo na participação do quadro social do clube:

O Grêmio foi o último time a aceitar a raça, porque em seus estatutos constava uma cláusula que dizia que ele perderia seu campo, doado por uns alemães, caso aceitasse pessoas de cor em seus quadros. Felizmente, essa cláusula foi abolida, e hoje tenho a honra de ser sócio honorário do Grêmio e ter composto seu público ao pé desta coluna. (SANTOS, 2019, p. 92-93)

Em resposta a essas negativas arraigadas no preconceito racial, os clubes criados por negros tinham grande força e prestígio. Mesmo os clubes sociais que originaram clubes de futebol mantinham diversas ações destinadas à população negra – como por exemplo a Associação de Amadores, que em dezembro de 1926 organizou jogos para beneficiar a Sociedade Religiosa Beneficente Africana. Essa mesma sociedade havia organizado um evento no mesmo ano no dia 13 de maio, uma quermesse que durou três dias. Assim, podemos perceber que a religiosidade de matriz africana fazia parte do futebol e das demais atividades sociais dos negros (SANTOS, 2019).

Em outra passagem é demonstrado que havia até uma atividade de circulação da imprensa negra, tudo a partir dos clubes de futebol que estreitavam os laços da população negra espalhada no Rio Grande do Sul:

As vinculações políticas em defesa dos negros, a circulação nos mesmos espaços, os envolvimentos em projetos comuns, as ligações pessoais, afetivas e parentais, tudo aproximava o interior da capital. Cachoeirenses e porto-alegrenses, dentre outros cidadãos, aproximaram suas trajetórias, servindo como exemplos de protagonismo e ascensão social. (SANTOS, 2019, p. 92-93)

A escolha da Liga da Canela Preta para esta análise é justamente para trazer a reflexão de como o esporte também pode tensionar as relações sociais, principalmente quando há reivindicação de um direito, no caso, o acesso ao esporte. É importante esse caráter de organização dos times de futebol, pois estes podem ir além da prática esportiva para criar formas de organização política e buscar soluções para o grupo social em questão.

Sendo assim, esse texto buscou em alguma medida apontar como é importante a organização social de grupos que são marginalizados, bem como demonstrar que, por meio dessa organização, é possível reivindicar direitos, mesmo que seja o acesso ao esporte – que é um direito fundamental –, reforçando a necessidade dessa construção coletiva para criar fissuras em estruturas hegemônicas.

 

Notas e Referências

BALZANO, Otávio Nogueira. A retrospectiva histórica da discriminação e inserção dos jogadores de origem negra no futebol brasileiro EFDeportes.com, Revista Digital. Buenos Aires, Ano 15, Nº 149, Outubro de 2010

GUTERMAN, M. O futebol explica o Brasil: uma história da maior expressão popular do país / Marcos Guterman. - São Paulo: Contexto, 2009.

SANTOS, José Antônio. Liga da Canela Preta: a história do negro no futebol. Porto Alegre: Diadorim Editora, 2019.

SOARES, Antônio Jorge. Futebol, raça e nacionalidade no Brasil: releitura da história oficial. Rio de Janeiro, UFG, PPGEF. tese de doutorado.1998.

LUDOPEDIO. Apartheid gaúcho? A Liga da Canela Preta Gilmar Mascarenhas<https://www.ludopedio.com.br/arquibancada/apartheid-gaucho-a-liga-da-canela-preta/:>  acesso em 21.12.2021

OBSERVATÓRIO. Porto Alegre, 13 de Maio de 1920 – 100 Anos de “Liga da Canela Preta” <https://observatorioracialfutebol.com.br/porto-alegre-13-de-maio-de-1920-100-anos-de-liga-da-canela-preta/> acesso em 27.12.2021

OBSERVATÓRIO. Liga da Canela Preta: Conheça o campeonato organizado por negros https://observatorioracialfutebol.com.br/liga-da-canela-preta-conheca-o-campeonato-organizado-por-negros/ acesso em 27.12.2021

[1] No livro XX Gutemann, traz fotos da elite brasileira assistindo as primeiras partidas de futebol em São Paulo, que foi o berço do incio da pratica do futebol” (BRASIL, 1998, pg 23-24).

 

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