Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
Enquanto fenômeno social, o Direito encontra-se suscetível à influência de diversas condicionantes. A modificação de um ordenamento jurídico nunca é isolada, pois fatores econômicos, políticos e históricos são, na realidade, determinantes para o entendimento da evolução da ciência do Direito. E foi assim que a liberdade de contratar (ou ausência dela) trilhou um longo e árduo caminho até chegar ao instituto da autonomia da vontade que se tem hoje.
No Direito Romano, fortemente influenciado pela religião, o exercício de contratar era tido como uma cerimônia sacramental, repleta de formalismos. Devido ao caráter sagrado da ação, não havia possibilidade de os contratantes entabularem novas cláusulas para exprimirem sua vontade. O fim do Império Romano trouxe a fusão de seu Direito com a tradição bárbara, fazendo-se sentir no Direito Civil. O modelo de sociedade feudal pressupunha uma sociedade estratificada, sem mobilidade social, de modo que o poder de contratar passou para as mãos de poucos, ou seja, para os que faziam parte da aristocracia rural.
A grande mudança no Direito contratual só ocorreu com a Revolução Francesa e o consequente estabelecimento do capitalismo. O símbolo da era do Liberalismo passa a ser o princípio da autonomia da vontade sem restrições: o homem era capaz, no auge do seu individualismo, de contratar como bem entendesse. Neste momento, a função estatal passa a ser apenas a de assegurar uma teórica liberdade no momento de contratar, zelando para que as partes pudessem exercer a prerrogativa da autonomia da vontade de forma plena.
Entretanto, o entendimento de que os interesses livremente acordados não poderiam gerar injustiças, revela-se uma falácia com o desenvolvimento do ideal capitalista e das ardilosas regras do mercado. Logo, a posição inerte do Estado criou um grande desequilíbrio contratual, necessitando de uma conduta ativa por parte do poder público. Assim, na passagem de um Estado Liberal para um Social, começa-se a zelar não apenas pelos direitos individuais, mas também pelos direitos da sociedade como um conjunto.
Nesse contexto, por meio do instrumento do dirigismo contratual, estabeleceu-se um intervencionismo do Estado não apenas no sentido de fornecer uma “fictícia” igualdade de condições aos contratantes, como era antes, mas preservar uma relação isonômica em todas as fases do contrato. É neste período, também, que o ordenamento jurídico civil começa a fragmentar-se pelo advento de leis esparsas.
A autonomia da vontade, conforme dispunha o Código Civil de 1916, era tida com base em um paradigma burguês, individualista e liberal, que já havia se revelado como um fracasso. A Constituição Federal de 1988, por sua vez, trouxe uma nova interpretação para o Direito Brasileiro. Com seu ímpeto reformador, rompeu as barreiras que impediam a influência do direito público sobre o direito privado, permitindo a absorção das conquistas sociais.
No âmbito do Direito contratual, a grande revolução surgiu com a ordem constitucional de criação de um código do consumidor: “o Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor” (art. 5º, inc. XXXII CF). A localização deste dispositivo no rol dos direitos fundamentais é de grande importância, uma vez que elevou a proteção e defesa do consumidor a uma condição de superioridade nunca antes ocupada. Buscava-se, agora, não apenas uma igualdade de condições no momento de contratar, mas uma paridade real entre as partes até o fim do contrato.
A inovação do Direito Civil-Constitucional, que estimulou a criação do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), acabou influenciando também a edição de um novo Código Civil (Lei nº 10.406/02). Os reflexos advindos da nova interpretação contratual fizeram-se notar rapidamente: “a liberdade contratual será exercida em razão e nos limites da função social do contrato” (art. 421 CC). Assim, ao estabelecer a função social do contrato e a boa-fé, rompeu, de uma vez por todas, o paradigma liberal-individualista que se encontrava enraizado no Código Civil de 1916, permitindo a interferência da postura social trazida pelo constitucionalismo, no campo da teoria contratual e os demais institutos que a compõe, em especial a autonomia da vontade.
Diante da breve análise histórica e normativa exposta, verifica-se que séculos de revoluções sociais forçaram uma revisão do instituto do contrato e da autonomia da vontade. O Liberalismo revelou-se um fracasso, e as contradições do Capitalismo tornaram-se cada vez mais evidentes. Vive-se a época dos contratos em massa, em que grandes interesses econômicos ditam fórmulas contratuais, enquanto uma parcela da população encontra-se fragilizada, sem condições de igualdade para exercer o poder de contratar e necessitando da interferência do Poder Público para preservar a igualdade material e a justiça contratual.
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