A letalidade policial – Por Fernanda Mambrini Rudolfo

11/06/2017

Em 2015, uma em cada quatro mortes na cidade de São Paulo foi causada pela polícia[1] (26%). Nos dois primeiros meses de 2016, duas pessoas foram mortas por dia, em média, pela polícia no estado de São Paulo[2]. Foram 137 mortos por policiais militares e civis, que estavam trabalhando ou mesmo de folga.

Entre 2005 e 2014, foram 8.466 casos de homicídio decorrente de intervenção policial registrados no estado do Rio de Janeiro, sendo 5.132 exclusivamente na capital. Em 2014, os homicídios praticados apenas por policiais em serviço corresponderam a 15,6% do total de homicídios na cidade carioca.[3]

O estado fluminense registrou, no primeiro bimestre de 2017, um aumento de 26,7% no indicador de “letalidade violenta”, que reúne dados das ocorrências de homicídios, latrocínios, “autos de resistência” e lesões corporais seguidas de morte[4]. O aumento do número de “autos de resistência” contribuiu consideravelmente para essa estatística: 78,4%. No mesmo período de 2016, haviam sido 102 mortes, contra 182 em 2017.

Já em março deste ano, o número praticamente dobrou em relação ao mesmo mês de 2016[5]. O aumento foi de 96,7%, passando de 61 para 120 vítimas. Por outro lado, a quantidade de policiais – civis e militares – mortos em serviço sofreu uma redução, com apenas uma vítima em março deste ano, em relação a quatro vítimas em março de 2016, de acordo com dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), órgão vinculado à Secretaria Estadual de Segurança Pública.

Em um país em que as denúncias feitas com relação a pessoas que são tidas como “autoridades” são solenemente ignoradas (ou, pior, tornam-se motivo de represálias), como exemplifica Rodrigo Nogueira em Como nascem os monstros – A história de um ex-soldado da Polícia Militar do Rio de Janeiro, não se poderia imaginar uma atuação de agentes de segurança pública pautada pela estrita legalidade.

Não se ignora, e que isso fique bem claro, que há incontáveis policiais competentes, honestos e respeitadores dos direitos humanos. No entanto, sua existência não faz presumir a legitimidade dos agentes. E não se pode ignorar que há muitos problemas a serem enfrentados.

Ao argumento de combater uma guerra, policiais enfrentam cidadãos, valendo-se de uma suposta autoridade, transmudada em arbitrariedade. E a guerra de que se fala não se restringe à famigerada guerra às drogas, mas sim aos cidadãos que não se adequam aos interesses ou aos valores dos agentes em apreço.

Vejam-se os cantos entoados nos treinamentos do Batalhão de Operações Especiais. O exemplo transcrito abaixo foi testemunhado já há alguns anos, em 2013[6], mas demonstra com precisão a essência de parte do policiamento brasileiro:

É o BOPE preparando a incursão E na incursão Não tem negociação O tiro é na cabeça E o agressor no chão E volta pro quartel Pra comemoração

É de se lamentar a comemoração da morte de quem quer que seja, bem como o intento homicida, que fica evidente pela menção de tiro na cabeça. Músicas violentas legitimam a violência, transmitindo a ideia de que o objetivo policial é a guerra, como já se disse, é combater o inimigo – inimigo cuja definição fica ao bel prazer do próprio agente.

A respeito da falácia de combater uma guerra e da unilateralidade da letalidade, destaca-se o seguinte excerto da obra “Quando a polícia mata”:

Alega-se que a polícia do Estado do Rio de Janeiro mata muito porque enfrenta uma situação de “guerra urbana” e que ela apenas responde, de forma a se proteger, aos tiros de traficantes e ladrões, que não se entregam quando recebem voz de prisão ou quando a polícia realiza incursões nas áreas em que se encastelam. Como compreender, entretanto, que nessa guerra a desproporção de mortes – entre suspeitos de crimes e policiais – seja tão grande? Há um policial morto, em média, para mais de 40 civis que tombam em confronto armado. Como explicar que alguns policiais ostentem mais de uma dezena de mortes “em confronto legal”?

No Rio de Janeiro e em outros estados brasileiros a polícia passou a classificar, desde o regime militar, pelo nome de “autos de resistência”, os registros de ocorrência criminal em que um ou mais suspeitos foram mortos durante uma operação policial. Em outros países, como nos Estados Unidos, esses casos são classificados, rotineiramente, como homicídios, e cumpre à investigação e à justiça decidir se ocorreram como uma forma de resistência à prisão, em confronto legal, ou em legítima defesa do policial. A classificação em separado desses casos tem produzido também um tratamento diferencial, e praticamente não há nada que conteste a versão que o próprio policial e seus colegas dão a respeito da ocorrência. Essa rotina perpetuou-se desde então, sinalizando aos que preferem, eles próprios, antecipar a sentença de morte de suspeitos de crimes, que não haverá barreira legal para suas ações de extermínio. A impunidade nessa área pode estar superando a impunidade de outros crimes mais graves, não esclarecidos ou arquivados, que têm caracterizado cada vez mais o processamento judiciário-criminal em nosso país. O que se pode observar, com base em nossos trabalhos anteriores e nos de outros colegas sociólogos e antropólogos especializados nessa área de estudos, é que o chamado “sistema de justiça criminal” no Brasil mais parece um arquipélago, composto de ilhas que não se comunicam diretamente entre si, que uma estrutura com partes necessariamente interdependentes e dinamicamente relacionadas, capazes de funcionar a contento num Estado democrático de direito. [7]

Não é incomum que pessoas sejam acusadas de tentativa de homicídio contra agentes de segurança pública. No entanto, o mais frequente é que essa tentativa seja branca, que não atinja qualquer lugar em que se possa fazer uma perícia, que não haja quaisquer testemunhas a não ser os próprios agentes-vítimas, que não haja filmagem da operação, que a arma não seja periciada, que não se apreendam estojos e – o detalhe crucial – que o réu, esse sim, tenha sido alvejado. Vislumbra-se algo muito estranho nesse contexto.

O grande problema é que se confere maior credibilidade à palavra policial que à de qualquer pessoa, mesmo que isso ocorra em detrimento da própria presunção de inocência. Confunde-se a fé-pública conferida para determinados atos com presunção de veracidade dos depoimentos judiciais, dispensando-se qualquer outro elemento probatório. Nada mais incompatível com a Constituição da República.

Foi-se o tempo em que os “autos de resistência” eram compatíveis com o ordenamento jurídico brasileiro. Deve-se considerar que há direitos e garantias a serem respeitados, não se podendo admitir que a mera arguição de autoridade supere a vida, a integridade física, a dignidade etc.

Como já se mencionou, não se pretende aqui criticar todos os agentes de segurança pública, mas fazer com que se reconheçam os déficits existentes e se aperfeiçoe o sistema de justiça brasileiro.

Não se pode continuar a fechar os olhos para execuções, mutilações, acusações infundadas, dentre tantas outras violações de direitos. O Brasil precisa acordar, como se costuma afirmar, mas não só para reconhecer os direitos dos brancos de classe média, e sim os direitos de todos, sem distinções.


Notas e Referências:

[1] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/04/uma-em-cada-4-pessoas-assassinadas-em-sp-foi-morta-pela-policia.html

[2] http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/03/policia-matou-duas-pessoas-por-dia-nos-2-primeiros-meses-de-2016-em-sp.html

[3] Você Matou Meu Filho. Homicídios cometidos pela Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Anistia Internacional, 2015.

[4] http://blogs.oglobo.globo.com/na-base-dos-dados/post/rio-tem-mais-mortes-por-auto-de-resistencia-os-dados-da-violencia-em-tres-graficos.html

[5] http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-04/homicidios-em-enfrentamento-com-policia-dobraram-no-rio-de-janeiro-em-marco

[6] http://g1.globo.com/globo-news/noticia/2013/05/tropa-do-bope-canta-grito-de-guerra-que-faz-apologia-violencia.html

[7] MISSE, Michel et. al. Quando a polícia mata. Rio de Janeiro: NECVU/Booklink, 2013, p. 7-8.


 

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