A legitimidade como um filtro cuja natureza varia a depender da situação legitimante  

19/06/2022

 Coluna Advocacia Pública e outros temas jurídicos em Debate / Coordenadores Weber Luiz de Oliveira e José Henrique Mouta

No campo do direito processual civil brasileiro, a legitimidade é um tema controvertido há muito tempo. Percebe-se um grande número de discussões sobre qual seria o seu papel, especificamente no que diz respeito à sua utilização como filtro subjetivo[1].

Em recente texto publicado no volume nº 329 da Revista de Processo, de 2022, expus algumas ideias a respeito de qual seria a natureza do filtro exercido com base na legitimidade. A título de conclusão, defendi que esse instituto, a depender da situação legitimante, exerceria o papel tanto de filtro meritório quanto de filtro processual (ou um, ou outro)[2].

Com efeito, a situação legitimante conceitua-se, nas palavras de Barbosa Moreira, como a “própria situação jurídica a que se submete ao órgão judicial como objeto de juízo, vista no seu duplo aspecto ativo e passivo”[3]. Donaldo Armelin a classifica como uma “relação jurídica” ou uma “posição em uma situação de fato, à qual o direito reconhece fatos jurígenos”[4]

Por sua vez, a legitimidade é definida, segundo Armelin, como “uma qualidade do sujeito aferida em função do ato jurídico, realizado ou a ser praticado”[5], destacando-se que é um instituto que permeia todo o ordenamento jurídico, não somente o ordenamento processual[6]. Referindo-se à legitimidade ad causam, em conceituação plenamente aproveitável para as outras legitimidades, Barbosa Moreira afirma que ela se configura como “a coincidência entre a situação jurídica de uma pessoa, tal como resulta da postulação formulada perante o órgão judicial, e a situação legitimante prevista na lei para a posição processual que essa pessoa se atribui, ou que ela mesma pretende assumir” [7]

É nesse âmbito que observamos o seguinte: tendo em vista que a situação legitimante é o elemento principal que deve ser analisado para a verificação da legitimidade, toda vez que essa situação legitimante residir em uma situação jurídica que não esteja relacionada à relação jurídica processual decorrente do processo em que se pretende realizar determinado ato, a legitimidade inevitavelmente terá natureza meritória.

Por outro lado, se a situação legitimante estiver relacionada à relação jurídica processual estabelecida no processo, o filtro exercido pela legitimidade terá natureza processual (melhor dizendo: estará relacionado ao processo no qual se pretende realizar o ato), não possuindo relação com o mérito da postulação. Essas constatações são relevantes pois se aplicam diretamente à análise que é feita a título de verificação da legitimidade ad actum e da legitimidade ad causam.

Alguns exemplos são pertinentes.

A legitimidade para a intervenção no processo como assistente litisconsorcial. Se, nesse caso, o sujeito for ilegítimo, a decisão que reconhecer essa ilegitimidade será uma decisão de improcedência da postulação, tendo em vista que se analisou a situação legitimante do postulante, consubstanciada na situação jurídica de direito material que ele alega, e verificou-se que ela não atribuiria legitimidade para a postulação. Ou seja, o sujeito não seria titular da relação jurídica alegada ou a situação jurídica alegada não outorgaria a legitimidade necessária à intervenção, a fazer ser improcedente de plano a postulação[8].

Também outro exemplo interessante é o do terceiro que não fazia parte do processo e que interpõe recurso contra uma decisão cujos efeitos o teriam afetado juridicamente. Ao ser analisada a legitimidade, verifica-se a situação legitimante que dá base à postulação e se analisa se o sujeito é legítimo ou não. Se a conclusão for a de que o sujeito não é legítimo, a decisão sobre essa ilegitimidade inevitavelmente será uma decisão sobre o mérito do processo[9].

Por fim, expõe-se aqui exemplos de legitimidade de natureza processual, a fazer com que o filtro subjetivo realizado com base na sua análise possua a natureza processual. Trata-se da legitimidade para interpor recurso ou para praticar outros atos processuais, isso quando o sujeito já é parte no processo. Mesmo aquele sujeito considerado ilegítimo para figurar no processo, se estiver fazendo parte da relação jurídica processual, será legítimo para interpor recurso, pois essa posição jurídica dele dentro de relação processual se configurará como situação legitimante plenamente apta a torná-lo legítimo para recorrer da decisão que constatou sua ilegitimidade.

Também vale menção a um exemplo que foi citado por Pedro Henrique Nogueira, que seria o da legitimidade (processual) do magistrado que interpõe recurso da decisão que acolhe arguição de suspeição, nos termos do art. 146, §5º, do CPC[10]. O código processual outorga legitimidade processual ao magistrado nessas situações. Em outras palavras, cria-se uma situação legitimante processual (melhor dizendo: relacionada ao processo no qual houve a exceção de suspeição) que torna legítima a postulação jurisdicional do magistrado nesses casos.

 

Notas e Referências

[1] Eis alguns relevantes trabalhos sobre o tema: PASSOS, José Joaquim Calmon de. A ação no Direito Processual Civil brasileiro. Tese apresentada à Faculdade de Direito da Universidade da Bahia, concorrendo à cátedra de Direito Judiciário Civil (1960). Salvador: JusPodivm, 2014, p. 42; SILVA, Ovídio A. Baptista da. Curso de processo civil, volume 1: processo de conhecimento. 7ª ed. rev. e atualizada de acordo com o Código Civil de 2002. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.94-95; MARQUES, José Frederico. Manual de direito processual civil. Campinas: Millennium, 1998, p. 303; DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil: volume II. 7ª ed., rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 357-362; DIDIER JR. Fredie. Pressupostos processuais e condições da ação: o juízo de admissibilidade do processo. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 217; MOREIRA, José Carlos Barbosa. Legitimação para agir. Indeferimento da petição inicial. Temas de direito processual. Primeira série. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 200; ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,1979; NOGUEIRA, Pedro Henrique. Primeiras reflexões sobre a legitimidade processual no código de processo civil brasileiro. Revista de Processo. Vol. 305/2020, p. 63-82, julho/2020; ARAÚJO, José Henrique Mouta. Legitimidade extraordinária no CPC/2015: ajustes e poderes das partes e do assistente processual. RJLB, ano 7, 2021, n. 5, passim.

[2] Cf. NERY, Rodrigo.  Reflexões sobre a legitimidade ad causam e a legitimidade ad actum: a alternância entre filtro meritório e filtro processual a depender da situação legitimante. Revista de Processo. Vol. 329/2022/Jul/2022, tópicos 4 e 5. n.p.

[3] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. In: Direito Processual Civil: ensaios e pareceres. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 59

[4] ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,1979, p. 11.

[5] ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,1979, p. 11

[6] ARMELIN, Donaldo. Legitimidade para agir no direito processual civil brasileiro. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,1979, p. 10.

[7] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Apontamentos para um estudo sistemático da legitimação extraordinária. In: Direito Processual Civil: ensaios e pareceres. Rio de Janeiro: Borsoi, 1971, p. 59

[8] NERY, Rodrigo.  Reflexões sobre a legitimidade ad causam e a legitimidade ad actum: a alternância entre filtro meritório e filtro processual a depender da situação legitimante. Revista de Processo. Vol. 329/2022/Jul/2022, tópico 4, n.p

[9] Cf. NERY, Rodrigo.  Reflexões sobre a legitimidade ad causam e a legitimidade ad actum: a alternância entre filtro meritório e filtro processual a depender da situação legitimante. Revista de Processo. Vol. 329/2022/Jul/2022, tópico 4, n.p.

[10] NOGUEIRA, Pedro Henrique. Primeiras reflexões sobre a legitimidade processual no código de processo civil brasileiro. Revista de Processo. Vol. 305/2020, p. 63-82, julho/2020, p. 10

 

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