Coordenador: Marcos Catalan [1]
Segundo Celso Naoto Kashiura Jr., liberdade e igualdade, princípios máximos da revolução burguesa, estão umbilicalmente conectados à forma de produção e troca de mercadorias, ignorando, assim, as diversas faces desiguais daqueles indivíduos que entram em contato para perfectibilização contratual de uma troca ou para prestação de um serviço[2]. Portanto, partindo do princípio de que a legalidade não está ancorada à sublimação da condição humana, ou seja, não se vincula, necessariamente, ao bem-estar e à dignidade, mas, sim, à troca de mercadorias, torna-se possível compreender a ineficácia social ou o constante desrespeito de direitos básicos. Possuindo caráter meramente formal, a igualdade, quando esculpida como garantia humana e sustentáculo da dignidade, não passa de discurso[3].
Dentro deste contexto, impõe salientar que a práxis social semeia a realização de diversas condutas nos latifúndios da necessidade, legitimando, em conjunto com o direito, a regular exploração contratual daqueles que, por falta de alternativa, se veem felizes em aceitar obrigações contratuais que lhes aplaquem a pobreza ao lhes entregar a miséria. A situação narrada ganha suas formas mais claras nas relações de trabalho, aonde o patrão, detentor do meio de produção e dos postos de labor, falaciosamente graceja o obreiro com a dádiva da contratação, entregando, em remuneração ao trabalho e por força da premente necessidade do trabalhador, apenas o valor suficiente para sua subsistência[4], auferindo, com isso, o máximo lucro com a mínima despesa.
Muito embora a desigualdade entre os benefícios contratuais seja patente, a exploração dos corpos através do trabalho é socialmente aceita e, portanto, plenamente legal. Poucas críticas a respeito do tema são capazes de causar frisson e de ecoar na percepção comum ou, até mesmo, na academia. A diferença entre o lucro obtido pelo empregador e a remuneração do empregado não é um assunto em voga e nem sequer faz parte da agenda de discussões do cotidiano. Caso inserido na mesma ótica acomete, com veemência, os ditos direitos imateriais, também conhecidos como direitos da personalidade. As referidas garantias, por ordem da lei, ostentam a prerrogativa de inalienabilidade e irrenunciabilidade, impedindo, em tese, que seu titular as use de forma venal. No entanto, conforme alusão feira por Machado de Assis no conto A Igreja do Diabo, nem mesmo o que não se pode tocar escapa à lógica mercantil do Estado Burguês:
Em conto astuto, Machado de Assis retrata a empreitada do Diabo, que se sentindo “humilhado com o papel avulso que exercia desde séculos, sem organização, sem regras, sem cânones, sem ritual, sem nada”, decide criar uma igreja para “combater as outras religiões, e destruí-las de vez.” Na construção de sua dogmática, o Diabo adota como pedra fundamental a venalidade: “Um casuísta do tempo chegou a confessar que era um monumento de lógica. A venalidade, disse o Diabo, era um exercício de um direito superior a todos os direitos. Se tu podes vender a tua casa, o teu boi, o teu sapato, o teu chapéu, coisas que são tuas por uma razão jurídica e legal, mas que, em todo caso, estão fora de ti, como é que não podes vender a tua opinião, o teu voto, a tua palavra, a tua fé, coisas que são mais do que tuas, porque são a tua própria consciência, isto é, tu mesmo?[5]
A dogmática da venalidade, difundida no conto pelo Diabo, desenha através da literatura o cenário contemporâneo. Se ontem o brado fundamental da legalidade condicionava a exigência do tributo à criação da lei, hoje se faz ainda mais clara a monetarização de qualquer garantia. Através de ultrajes sistemáticos, os bancos, por exemplo, impõem práticas de todo abusivas aos consumidores, os quais, em reclame ao canal institucional democrático – o judiciário, percorrem caminhos tortuosos, sendo taxados, não raras vezes, como aproveitadores e desordeiros que pretendem atrapalhar a economia e a solidez do mercado de trabalho através do locupletamento ilícito. Mais uma vez, igualdade e liberdade de contratação se mostram como instrumentos que permitem a legitima exploração dos menos afortunados, os quais, como lembra Paulo Bonavides, possuem “tão-somente a liberdade de morrer de fome.[6]”.
Infelizmente o Direito, quando analisado à restrição de quaisquer devaneios românticos, muito contribui para o fomento de relações sociais baseadas em profunda assimetria, permitindo, através da deferência de algumas migalhas, a sobrevivência daqueles que se lançam a um jogo de cartas marcadas avalizado pela real dignidade.
Notas e Referências:
[1] Imagem ilustrativa disponibilizada pelo Ministério Público do Trabalho do Espírito Santo. Disponibilizada via site G1 g1.globo/espirito-santo/noticia/2011/10/trabalhadores-fesgatados-de-fazenda-de-político-no-es-são-indenizados.html. Acesso em 19 de dezembro de 2016.
[2] KASHIURA JR., Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. 1. ed. São Paulo: Outras Expressões; Dobra Universitário, 2014, p.171.
[3] MASCARO, Alysson Leandro. Crítica da legalidade e do direito brasileiro. 2. ed. São Paulo: Quartier Latin, 2008, p. 21-22.
[4] LIMA, Sérgio Ricardo Ribeiro; SANTOS, Pábula Ribeiro; GONDIM, Vinícius Silva. Salários, lucros acumulação e riqueza: breves considerações atuais sobre as ideias de Smith, Ricardo e Marx. p. 3. Disponível em: http://files.economia-politica-critica.webode.com/200000064-b0d61b1cfa/Sal%C3%A1rios,%20lucros,%20acumula%C3%A7%C3%A3o%20e%20riqueza.pdf. Acesso em: 15 de novembro de 2016.
[5] SCHREIBER, Anderson. Os direitos da personalidade e o código civil de 2002, p. 26. Disponível em: http://www.andersonschreiber.com.br/artigos.html. Acesso em: 18/12/2016.
[6] BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 11ª ed. São Paulo: Malheiros, 2013. p.42.
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