A operação lava jato está em crise. Iniciar o texto com uma afirmação dessas pode parecer problemático, mas não poderia ser diferente. Problemáticos, na verdade, são os tempos em que vivemos nos mais diversos campos da realidade. Aqui e agora, nossa atenção está concentrada em tal ‘operação’. A primeira observação já diz respeito ao hábito de nomear operações reivindicando uma grandeza e uma atenção que não deveria possuir. Isso pode parecer pouco ou, simplesmente, secundário, algo como um mero detalhe ou, ainda, periférico e insignificante. Mas não! Faz parte de todo o jogo, de todo o circo que se forma em torno às operações que se aliam ao poder midiático. O que é suplementar não pode ser considerado insignificante. Esse descuido não podemos ter. Como a própria palavra sugere, o suplementar é o suplemento de algo, logo, a nominação, e o seu uso permanente pelos meios de comunicação, são parte de uma estratégia de poder que, dentre outras coisas, visa à imposição de dor ao acusado e a precarização de sua defesa, aquela que é sempre limitada e em desvantagem nessa relação. Além disso, cria as condições de pressão sobre quem vai julgar. Trata-se de suplementar, todo o aparato policial que busca a sua legitimação com base no suporte midiático - poderíamos falar popular, mas há questões problemáticas também nisso, na medida em que não temos como dar crédito aos critérios que buscam sinalizar o sentido do apoio popular do mass mídia. Nesse sentido, no suplemento aqui referido vê-se a instrumentalidade espetacular que contaminou o processo penal de um modo geral, pois incide conforme a necessidade do caso. Talvez não tenhamos prestado a devida atenção nisso no âmbito jurídico, pois vivemos na sociedade do espetáculo, como nos advertiu Guy Debord já em 1967. Grosso modo, no que nos interessa, o espetáculo processual-midiático vale-se da produção incessante de imagens como instrumento do poder punitivo, expressando uma sutil faceta de sua crueldade. Na ausência de crítica, as imagens acabam sendo processadas como realidade, uma espécie de substituição da realidade por suas representações midiáticas, fazendo com que toda a realidade se torne, nas palavras de Debort, “o seu retrato”[i], num caso especial de triunfo da aparência. Diante de tudo isso, vemos que, aquilo que poderia parecer num primeiro olhar secundário, é ferramenta importante do poder, sobretudo para acelerar o galope autoritário da atualidade, que se vale desse impulso contumaz da autoridade das imagens, fabricadas e distribuídas economicamente, para reforçar os instrumentos punitivos. Numa espécie de ardil, escolhe-se com precisão instantes para fazer reviver um fato, para vazar um áudio, para forjar uma delação, ou seja, sempre haverá um motivo e uma carta na mão para manter o caso penal na órbita dos instantes do espetáculo, que não é mais apenas judicial, mas faz parte do jogo mercadológico dessas imagens, as quais são vendidas e consumidas como imagens penais. Além disso, na sociedade do espetáculo, criam-se as autoridades espetaculares, que capitalizam as imagens produzidas, como a própria imagem fabricada, numa relação narcísica das pessoas com os seus cargos e, sobretudo, com a autoridade que supõem possuir. Confundem-se, portanto, com as próprias imagens que enxergam de si mesmos. Nesse sentido, são criadas as condições ideais para a imposição de processos de exceção, afinal, os casos excepcionais já justificaram. É preciso meios fora do convencional para se combater a corrupção. Aqui, atente-se para outro nome espetacular. Corrupção é palavra-chave no jogo espetacular, que justifica toda exceção do poder punitivo na atualidade. E, assim, princípios básicos de direito – o direito mesmo -, tornam-se mera questão linguística que se manipula conforme o interesse e a oportunidade do instante, desde os critérios de seletividade da justiça espetacular, pois o acusado do espetáculo já está de antemão condenado, sendo o processo mero obstáculo à confirmação da pena. Talvez, na sociedade do espetáculo estejamos todos condenados, até mesmo as autoridades que se perderam entre as imagens narcísicas de si mesmos, caso não sejam mais de interesse do espetáculo. Haverá um limite, uma espécie de economia temporal sobre as suas utilidades como ferramentas do poder punitivo. Afinal, os heróis e as idolatrias podem ser substituídos a qualquer momento nessa sociedade em que já não importa mais o que depende de quê, como certa vez referiu Adorno. As reportagens do último mês sobre, digamos assim, os bastidores da operação lava jato são gravíssimas - estaríamos tentados a dizer que se trata do caso judicial mais escandaloso do país, mas a angústia impede tal assertiva, pois quantos foram os casos que desconhecemos? Temos o direito de pensar que tais fatos revelados, não são assim tão excepcionais. Por certo, temos uma maioria de magistrados e promotores idôneos, mas acabam por responder, em razão da responsabilidade dos respectivos cargos, pelos fatos que vêm à tona desde as entranhas e das vísceras do poder, aqui representados na operação lava jato. Assim, não apenas a lava jato está em xeque, mas toda a justiça. Há quase um século em 1921, Walter Benjamin – cuja data de nascimento 14 de julho –, no seu “Por uma crítica da violência”, nos advertiu que há algo de podre no âmago direito. Isso nos impele a ter que lidar com essa dimensão própria do direito e, que mais uma vez aparece, apesar dos esforços de neutralização para se manter a ordem estabelecida, seja em nível institucional - de quem se omite em abrir investigação sobre os fatos -, seja na ordem dos discursos retóricos - que orbitam no referencial da luta contra a corrupção-, nos riscos de ratificar certa polaridade política, no fundo, para dizer, não podemos sujar as mãos. No entanto, o que temos que fazer é literalmente sujar as mãos, enfrentar o esgoto de toda essa história, de toda nossa história, sob pena de repetirmos os fatos que pretendem recalcar historicamente. A lava jato não é e jamais será expressão de patrimônio social, o Estado de Direito, esse sim. Conceder à lava jato um atestado autoimunitário é permitir a manutenção da degenerescência da Democracia brasileira. Estamos habituados a deixar essas coisas de lado, a fazer acordos e conciliações, inclusive sobre questões que remetem a crimes contra a humanidade, sabendo e pagando o preço, agora, inclusive, diante das tentativas de revisionismo histórico, de negação de fatos e acontecimentos marcantes, ao ponto de se festejar a própria ditadura militar. Enfrentar essa dimensão podre do direito, talvez nos dê uma nova oportunidade alterar o rumo dos acontecimentos, que seja ao menos para frear o galope desse autoritarismo espetacular que nos assombra. Que seja ao menos para estabelecer, no âmago da podridão, uma discussão séria sobre o mau cheiro, sobre o pus que verte da ferida aberta, sobre aquele indisfarçável constrangimento que se abate sobre o puritano flagrado em gozo ardente diante do pecado que tanto condenava, sobre a imitação dos atos do herege, um debate sobre aquilo que faziam quando pensavam que ninguém nunca saberia. Sujar as mãos na lama para escancarar as portas e janelas que mantém na escuridão a podridão do direito, mas, principalmente, estar aberto para a inescapável tarefa de não deixar que sequestrem a democracia e com ela nossos sonhos de construção de um estado democrático de direito calcado na liberdade, na justiça social e na força vinculante da Constituição e das Leis, como obstáculos ao arbítrio e à violência estatais. Não há nova linha, porque não há tempo para respirar. Estamos todos sufocando, diante de tanta malícia, de tanta falácia, de tanta falta de escrúpulos. Estamos sufocando de raiva e de medo, porque a prepotência desfila sua empáfia nos velhos carros de guerra de outros tempos obscuros e violentos da nossa história. Nossa tarefa é urgente, e não há espaço para parágrafos bem construídos, textos limpos e arejados. Estamos sufocando e nossa força é a palavra. Que leiam em nossos escritos, em nossas atitudes, em nossas falas o mesmo único grito: não passarão!
Notas e Referências
[i] DEBORD, Guy. A sociedade espetáculo, p. 34.
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