A JUVENTUDE PERDIDA? Breves reflexões sobre medida socioeducativa e extermínio da juventude negra no Pará

19/01/2021

Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry

Paradigma Legal

A Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece, em seu art. 3º, que “todo indivíduo tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal”; em seu art. 5º, adiciona que “ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes”.

Poucos anos mais tarde, em 1959, foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos da Criança, na qual se reafirma a necessidade “de proteção e cuidados especiais, inclusive proteção legal apropriada, antes e depois do nascimento”. Sob essa ótica, a

“Assembleia Geral proclama esta Declaração dos Direitos da Criança, visando que a criança tenha uma infância feliz e possa gozar, em seu próprio benefício e no da sociedade, os direitos e as liberdades aqui enunciados (...) a criança gozará proteção social e ser-lhe-ão proporcionadas oportunidades e facilidades, por lei e por outros meios, a fim de lhe facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, de forma sadia e normal e em condições de liberdade e dignidade (....) a criança figurará, em quaisquer circunstâncias, entre os primeiros a receber proteção e socorro (e) gozará de proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração”.

Nessa mesma linha, a Constituição Federal estipula, em seu art. 227, que

“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”.

Nosso Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), promulgado em 1990, considerado por muitos como um dos mais avançados do mundo, também afirma, no seu art. 4º, que

“É dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária".

O Estatuto também prevê as medidas socioeducativas, as quais podem ser compreendidas como medidas repressivas aplicáveis para jovens de 12 a 18 anos que cometerem ato infracional.

A definição de ato infracional está prevista no art. 103 do ECA, qual seja “Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal.”

Estão previstas nos arts. 103 a 128, e também na Seção V, do art. 171 ao art. 190 deste diploma legal. Além deste, a Lei 12.594 de 2012 veio instituir o Sinase, Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo, a fim de regularizar o funcionamento das unidades de internação.

As medidas previstas, a ser aplicadas pelo juiz considerando inúmeros aspectos, principalmente a gravidade do ato infracional, são:

Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas:

I - advertência;

II - obrigação de reparar o dano;

III - prestação de serviços à comunidade;

IV - liberdade assistida;

V - inserção em regime de semi-liberdade;

VI - internação em estabelecimento educacional;

VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI.

Nesse sentido, é importante compreender que as medidas socioeducativas têm por escopo possibilitar um conjunto de condições que possam viabilizar ao adolescente, com base no respeito à sua condição de sujeito de direitos, a construção de um projeto de vida digna, com respeito à sua comunidade, protagonizando uma cidadania de convivência coletiva baseada no respeito mútuo e na paz social.

Não obstante todo esse aparelho de recomendações, normas e resoluções, diariamente somos surpreendidos com notícias de graves violações, de atos de extrema barbárie praticados, em muitos casos, pelas pessoas ou instituições que deveriam ter a função de zelar pela vida e pela integridade dessas crianças e adolescentes: suas famílias e as instituições públicas ou privadas que, em tese, seriam as responsáveis pelo seu resguardo. Ainda mais: o que chega à luz pública, o que consegue furar o véu da vergonha, do estigma e do ocultamento, parece ser só a ponta do iceberg, uma mínima parcela das agressões, negligências e violências que, de fato, existem e subsistem em nossa sociedade.

Violência versus socioeducação versus extermínio

É sabido que, além dos fatores econômicos e sociais, o ato infracional é causado por fatores endógenos, como a inteligência, perturbações afetivas ou emocionais, sentimentos de perdas e grau de frustração, dentre outras. Todavia, os excluídos, a que certos setores da cidade, consideram como “cidadãos descartáveis, incapazes de consumir ou se integrar ao mercado” constituem, sem dúvidas, a maior clientela da Vara da Infância e Juventude na área infracional.

Diferentes estudos têm demonstrado que o perfil dos adolescentes assassinados conjuga uma situação de extrema vulnerabilidade social (baixa escolaridade, reduzida auto-estima, raras oportunidades laborais, moradores de favelas e periferias insalubres...), ao assédio e à inserção no tráfico de drogas e no crime organizado. Tais dados sugerem a pouca efetividade das políticas sociais, tanto no âmbito do atendimento quanto no da prevenção e da promoção dos direitos fundamentais desses sujeitos.

Nesse sentido, um dos aspectos mais constrangedores e preocupantes destes estudos é o que demonstra que, dentre os adolescentes assassinados, muitos já passaram pelo sistema socioeducativo, cumprindo medidas de semiliberdade, liberdade assistida e internação. Tal situação gera importantes subsídios para o questionamento da efetividade e da eficiência das ações aplicadas pelos órgãos do sistema socioeducativo.

Como apontam Cruz Neto, Moreira e Sucena (2001)[1], os dados que demonstram a predominância de pardos e negros entre os jovens infratores são quase sempre interpretados de maneira mecanicista, criando uma bizarra e ideológica associação entre etnia, pobreza e criminalidade. Procurando desmistificar essas relações, deve-se levar em conta: a quantidade de jovens pobres, negros e/ou mestiços que não cometem atos infracionais é avassaladoramente superior a dos que cometeram; se os jovens pobres, negros e/ou mestiços constituem parcela significativa dentre os infratores, eles também são os mais vitimados pela criminalidade, formando o contingente populacional mais importante na construção do perfil da morbi-mortalidade do país; a subnotificação de atos infracionais cometidos por jovens das classes média e alta (que são compostas, em sua maioria, por indivíduos de etnia branca) e, consequentemente, o reduzido número destes jovens cumprindo medidas socioeducativas, estão relacionados com os ‘mecanismos de resolução’ aos quais eles têm acesso e que incluem desde a contratação de bons advogados, até práticas escusas, como a corrupção de policiais e o tráfico de influências

Os homicídios em geral, e os de crianças e adolescentes em particular, têm se convertido no “Calcanhar de Aquiles” dos direitos humanos no país, por sua pesada incidência nos setores considerados vulneráveis ou de proteção específica: crianças, adolescentes, jovens, idosos, mulheres, negros, etc. Essa pesada vulnerabilidade se verifica, no caso das crianças e adolescentes, não só pelo preocupante terceiro lugar que o país ostenta no contexto de 85 (oitenta e cinco) países do mundo aqui analisados, mas também pelo vertiginoso crescimento dos índices nas últimas décadas.

Segundo o Atlas da Violência (2020), o Estado do Pará no ano de 2018 apresentou uma taxa de homicídios de jovens na faixa etária de 15 a 29 anos de 103,2 por 100 mil, ficando em sétimo lugar em nível nacional em relação à violência letal juvenil. O Atlas fala da juventude perdida, cuja causa principal de mortalidade é o homicídio.

Nesse escopo, e diante de muitas e graves denúncias recebidas pela ONG Movimento República de Emaús, organização da sociedade civil que atua há 50 anos da defesa de direitos humanos fundamentais de crianças e adolescentes no Estado do Pará, por intermédio de sua expressão Centro de Defesa da Criança e do Adolescente, as quais versavam sobre violações do direito à vida de adolescentes e jovens e alguma correlação etnocida e cruel com cometimentos de atos infracionais e cumprimento de medidas socioeducativas, foi iniciada em 2019 uma pesquisa desenvolvida em parceria CEDECA/ Emaús, Universidade Federal do Pará e Ministério Público Estadual do Pará (através de seu Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude).

Reflexões preliminares da pesquisa

Esta pesquisa objetivava inicialmente investigar sobre os índices da letalidade infanto-juvenil na Região Metropolitana e nos municípios de Marabá e Altamira, levantando os números de mortes de crianças, adolescentes e jovens na faixa etária de 0 a 21 anos. No período de junho 2015 a junho de 2018, foram contabilizados e analisados laudos de 1202 (um mil duzentos e dois) homicídios, confirmando a causa principal de mortalidade referida no Atlas da Violência.

Ainda estando em curso, foi possível divulgar no I Seminário pela Vida e Direitos da Criança e do Adolescente: A Letalidade em Números, ocorrido em 10/12/2020[2], observa-se preliminarmente nos dados catalogados que os números crescem a cada ano, não havendo indicativo de redução nesse altíssimo número de mortes.

Assim como, quase 50% dos laudos apontam como instrumento principal do homicídio a arma de fogo. E mais, destas, a maioria teria calibre .40, as quais seriam de uso restrito da polícia, ainda que grande parte dos laudos analisados de Marabá não registrem o calibre da arma. Nesses casos, resta a reflexão sobre a existência de laudos complementares, como o de balística, assim como quais os indícios de nexo entre esses dados e os também altos índices de violência institucional verificados no Estado.

Essa análise simples e ainda preliminar possibilita também a que estas mortes têm infelizmente um grave recorte de gênero e de raça, haja vista que a maioria das vítimas seriam do sexo masculino e de identificados como pardos/pretos.

Cumpre refletir também sobre a faixa etária de maior incidência desse risco de morte, quais sejam de adolescentes e jovens entre 14 e 21 anos, indicando pequena expectativa de vida para essa juventude.

Não passa ainda despercebido que, enquanto grave matiz do fenômeno do extermínio da juventude negra, também os  índices de suicídio entre adolescentes e jovens tem crescido de modo peculiar, sendo a terceira principal causa conforme os dados analisados nessa pesquisa.[3] Tal índice leva a reflexão sobre a efetividade e eficácia das políticas públicas em saúde mental para esse público específico.

Assim, restam estas reflexões como preliminares indicativos da necessidade do aprofundamento de estudos e ações com escopo de fortalecer políticas públicas para egressos dos socioeducativo, especialmente em sua garantia de direito à vida, assim como o aparato da segurança pública para coibir os altos índices de letalidade de crianças, adolescentes e jovens que deveriam ser a expectativa de futuro da nação brasileira.

Laudos, assim como os estudados na pesquisa em curso, não devem ser letras mortas, pois os mesmos surgem como um duplo apagamento desse jovem: a morte física já ocorreu, o silenciamento e a impunidade tendem para outras formas de matar a memória e a dignidade de toda uma juventude.

 

Notas e Referências

  1. Assembleia Geral da ONU. (1948). "Declaração Universal dos Direitos Humanos" (217 [III] A)
  2. Assembleia Geral da ONU. (1959). "Declaração Universal dos Direitos da Criança”
  3. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Centro Gráfico, 1988.
  4. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescentee dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 16 jul.
  5. Lei n. 12.594, de 18 de janeiro de 2012. Institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas a adolescente que pratique ato infracional. Brasília, DF, 19 jan. 2012.
  6. Cruz Neto, O; Moreira, M. R. & Sucena, L.F.M. Nem Soldados Nem Inocentes: Juventude e Tráfico de Drogas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EDITORA FIOCRUZ, 2001.
  7. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA; FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA (Org.). Atlas da violência 2020. Brasília; Rio de Janeiro; São Paulo: IPEA; FBSP, 2020.
  8. Waiselfisz, Julio Jacobo. Violência Letal Contra As Crianças E Adolescentes Do Brasil. Brasília, DF, 2015.

 

[1]     Cruz Neto, O; Moreira, M. R. & Sucena, L.F.M. Nem Soldados Nem Inocentes: Juventude e Tráfico de Drogas no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: EDITORA FIOCRUZ, 2001.

[2] Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=hj-4YuT7zUE, acesso em 18/01/2021, 9h.

[3] Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Movimento República de Emaús, A juventude perdida. Publicado em Jornal Resistência, Dezembro/2020 (Ano 43. Sociedade Paraense de Defesa de Direitos Humanos) Disponível em http://www.sddh.org.br/#, acessado em 18/01/2021, às 8h.

 

 

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