A Justiça Restaurativa: uma tentativa de síntese - Por Isabela Albuquerque Mustafa

06/12/2017

O Estado, ao avocar para si o monopólio do ius puniendi, se estabeleceu, em regra, como titular do ius accusationis de um processo penal caracterizado pela indiferença quanto aos interesses da vítima. Desde então, tendo em vista a crescente criminalidade e a violência presentes no mundo contemporâneo, percebe-se a necessidade de se avançar para um sistema mais adequado e eficaz de justiça criminal. Dentre os avanços do direito penal contemporâneo, insere-se com bastante vigor uma maior tutela à vítima de crime frente às garantias obtidas com a consagração dos Direitos Humanos.

São notórios os problemas que gravitam em torno da figura do ofendido e sua participação no conflito penal. Portanto, é reconhecer a necessidade de resgatar a sua dignidade, sem que isso implique em retrocesso no que concerne aos direitos e garantias já assegurados ao acusado, bem como no interesse pela Justiça Restaurativa, diante da notória crise generalizada de regulação social. Dessa forma, os programas restaurativos surgem sob a égide de participação coletiva com a finalidade de restaurar os traumas e perdas causados pelo crime e conter a crise do modelo repressivo de justiça. Quando se fala de Justiça Restaurativa, a finalidade primordial é a reparação, num paradigma que influa diretamente na questão criminal, valorizando as soluções consensuais.

A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, significando qualquer programa que se utilize de processos nos quais a vítima e o ofensor, assim como outros possíveis indivíduos afetados por um crime, possam participar ativamente das questões que visem à resolução do crime, utilizando-se, geralmente, do auxílio de um facilitador. O resultado também deve ser restaurativo, correspondendo a um acordo firmado, incluindo respostas e programas que possam atender às reais necessidades individuais e coletivas, bem como promover a integração dos principais envolvidos.

Segundo os pioneiros da Justiça Restaurativa na Idade Moderna, as soluções extrajudiciais de conflitos eram preferidas, pois a maior parte dos crimes era vista como conflitos interpessoais, portanto as próprias vítimas e os ofensores, assim como a comunidade, exerciam papel relevante na resolução do litígio. A antiga justiça comunitária, entretanto, possuía graves defeitos devido aos métodos arbitrários utilizados. Posteriormente, os representantes do Estado foram se inserindo no processo, adotando um sistema punitivo e conferindo ao Estado amplos poderes para iniciar as ações penais.

Em meados do século XX, constatou-se um aumento significativo na criminalidade e consequente movimento em prol da proteção dos condenados frente ao aumento de instituições carcerárias. O desenvolvimento de pesquisas criminológicas fez surgir ideias garantidoras dos Direitos Humanos, bem como alternativas ao sistema tradicional de justiça, na intenção de reduzir os efeitos negativos do delito sobre a vítima na tentativa de reduzir os efeitos da vitimização e de inserir a sua participação na resolução do conflito.

A Justiça Restaurativa, recriada desde os anos setenta, trouxe as primeiras experiências em países estrangeiros com mediação entre vítima e infratores, retomando o padrão restaurativo antigo reformulado. Nessa perspectiva, o Brasil se inseriu no movimento mundial de aumento ao acesso à justiça e tem dado destaque a esse novo paradigma, ainda em construção, mas de consenso internacional, como a composição, conciliação, mediação e arbitragem.

Na tentativa de encontrar novas formas de tratar infrações de menor potencial ofensivo, veio a ideia de descriminalização, como forma de retirar o caráter criminal a determinada infração e despenalização, com intuito de reduzir a possibilidade de aplicação de pena ou de sua substituição para sanções mais leves. A Lei 9.099/95 que criou os Juizados Especiais Criminais, e a Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente, por exemplo, foram criadas como resposta aos requisitos basilares de respeito aos Direitos Humanos, que afigura-se intimamente ligada ao desenvolvimento da organização das sociedades, sob o enfoque de proteção da vítima, visto ser fator de inegável relevância no atual Estado Democrático de Direito, na tentativa de assegurar uma resposta mais rápida e eficaz à sociedade.

No ordenamento jurídico brasileiro percebe-se a presença de vários dispositivos legais que introduzem meios alternativos de solução de conflito, mas que ainda se encontram em fase de disseminação. Os sistemas de mediação e conciliação são ainda mais exigentes com o infrator, pois é a quem se reclama uma mudança sincera de atitudes, mediante o processo de comunicação e interação com sua vítima. Pretende-se, dessa forma, uma mudança qualitativa no infrator, de modo a introduzi-lo ativamente na solução do conflito que ele ocasionou.

A plena e eficaz aplicação da Justiça Restaurativa deve ser consubstanciada no consenso, humanizando e solidarizando a justiça criminal, para que satisfaça a efetiva reparação dos danos e o reequilíbrio das relações sociais. Essa Justiça tem base comunitária com propósito de intervir no problema criminal para resolvê-lo, evitando a conotação repressiva, confiando na capacidade dos implicados para encontrar meios que reconstruam os vínculos informais do indivíduo, garantindo, ainda, a prevenção do delito.

É certo que os modelos consensuais não estão isentos de críticas e podem causar impactos capazes de implicar em sérios riscos, mas, em contrapartida, o sistema de Justiça Penal jamais resolveu o problema criminal, pois se preocupa unicamente com o castigo do agente culpado. A pretensão punitiva do Estado apenas condena ou absolve o infrator, mas não atende às legítimas expectativas dos demais interessados, inclusive do próprio ofensor.

A breve análise sobre a Justiça Restaurativa vem com intuito de esclarecer os pontos relevantes sobre o assunto e, sobretudo, para demonstrar a importância da mudança do atual sistema de justiça criminal, com a possibilidade de construção eficaz de meios alternativos de controle social, em decorrência do falido sistema retributivo.

 

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