A jurisdição em sede de processo coletivo no Brasil – Por Denarcy Souza e Silva Júnior e Nathália Ribeiro Leite Silva

09/05/2016

Por força do que dispõe o art. 18 do Novo Código de Processo Civil nacional, a despeito de certa inovação frente ao art. 6º do CPC-73, o direito processual civil brasileiro comumente coloca as ações individuais no foco do sistema. Não obstante, é de se dizer que as ações coletivas vêm ganhando espaço no cenário jurídico nacional, em decorrência, de certo modo, da ascensão e colocação em evidência dos direitos garantidos constitucionalmente.

Não que a necessidade de processos supraindividuais seja nova, visto que são antigas as lesões a direitos que atingem mais de um indivíduo, mas nos dias atuais essas lesões multiplicam-se, em decorrência da expansão das relações de massa e do alcance dos problemas correlatos, bem como do número de coletividades decorrentes de relações jurídicas ou circunstâncias de fato comuns.[1]

Nos dias de hoje, os processos coletivos retiram suas motivações de fatores de ordem tanto sociológica quanto política. Na esfera política, sobressaem-se como fundamentos da tutela coletiva a diminuição dos custos materiais e econômicos na prestação jurisdicional, a homogeneização dos julgados, evitando decisões contraditórias, e o aumento na previsibilidade e na segurança jurídica. Como motivações sociológicas, apresentam-se o incremento nas demandas de massa, a constitucionalização dos direitos e os movimentos pela efetividade direitos humanos.[2]

Isso decorre do fato de que, ante ao surgimento de novas realidades, e, consequentemente, de novas demandas outrora inexistentes, as ações individuas deixam de se afigurar suficientes para o suprimento das necessidades da sociedade hodierna.

A sociedade moderna caracteriza-se por uma profunda alteração no quadro dos direitos e sua forma de atuação. De um lado, verifica-se a alteração substancial no perfil dos direitos desde sempre conhecidos, que assumem contornos completamente novos (basta pensar na função social do direito de propriedade, na publicização do direito privado e na privatização do direito público), e de outro a ampliação do próprio rol de direitos, reconhecendo-se direitos tipicamente vinculados à sociedade de consumo e à economia de massa, padronizada e globalizada.[3]

Posto de outra maneira, é típica da sociedade dos dias de hoje tanto a modificação dos direitos já existentes, que passam a ter conotações outras, quanto a diversificação do na quantidade de direitos, com a inclusão de novos, decorrentes de mudanças ocorridas no próprio perfil social hodierno.

Assim, o contexto da modernidade trouxe consigo inovações, seja nos direitos já existentes, seja ao trazer à lume novos direitos, que não podem ser desconsideradas pela ordem jurídica. E, estando esta, a princípio, despreparada para tutelar tais direitos, os processos coletivos surgem como a alternativa mais eficaz e econômica à garantia destes.

Para além, importa que se firme que os processos coletivos funcionam como ‘processos de interesse público’, uma vez que não apenas se prestam a funcionar como meio de efetivação dos direitos decorrentes das demandas de massa, que envolvem questões consumeristas, ambientais ou similares, mas também age “na defesa dos interesses dos necessitados e dos interesses minoritários nas demandas individuais clássicas”.[4]

Nessa perspectiva, não há como se olvidar que o interesse público primário deve ser o interesse social, enquanto bem geral, que reflete o interesse da sociedade ou da coletividade como um todo.[5] Não obstante, “não é possível dizer, a priori, o que ‘é’ interesse público como valor de utilidade a ‘todos’ na sociedade (...)”.[6] Isso porque a ideia de bem comum traduz aquela de unidade de interesses, ainda não atingida, mas que deve ser buscada, visto que resulta de “tarefa permanente de concretização”, decorrente de um “processo de decisão política”.[7]

Pois bem. A regra em sede de processo coletivo, que decorre da prescrição constante do art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, é a de que esses irão tutelar os direitos coletivos lato sensu, dentre os quais se incluem os direitos coletivos stricto sensu, os direitos difusos e os direitos individuais homogêneos. São direitos coletivos em sentido estrito quando unidos interessados determináveis que compartilham a mesma relação jurídica indivisível. Difusos são aqueles que unem interessados indetermináveis por situação de fato que causou dano individualmente indivisível. Por fim, são individuais homogêneos os direitos que derivam da união de interessados determináveis, com interesses divisíveis, cuja lesão teve origem comum.

Os direitos difusos e os coletivos em sentido estrito são direitos de natureza transindividual. Ou seja, não pertencem a um único individuo, e, consequentemente, não podem ser isolados perante uma única pessoa. Os direitos individuais homogêneos, de seu turno, embora não seja tipicamente transidividuais, poderão ser tutelados em processo coletivo, uma vez que a estes a legislação consumerista confere tratamento diferente do concedido aos direitos individuais comuns. Em suma, o ordenamento brasileiro dispõe, a princípio, de duas espécies de ações coletivas, uma para tutelar os direitos coletivos stricto sensu e os difusos, e outra que tutela os direitos individuais homogêneos, sob influência do disposto no Código de Defesa do Consumidor e na Lei de Ação Civil Pública.[8]

Note-se que os direitos coletivos lato sensu correspondem os denominados direitos humanos de terceira geração, ou direitos de solidariedade. Como tal, encontram “(...) o seu fundamento na fraternidade e na solidariedade, tendo por base interesses coletivos que ultrapassam a esfera do indivíduo. Estes ‘novos direitos’ (...) são respostas aos novos desafios e problemas que surgiram na sociedade moderna”.[9]

Em sua maioria, esses direitos de titularidade difusa ou coletiva surgiram no século XX, após a Segunda Guerra Mundial, e consistem, por exemplo, no direito à proteção do meio ambiente, no direito de consumidores que exprimem valores comuns e no direito ao desenvolvimento econômico.[10]

Nesse contexto, os denominados novos direitos passam a ter uma importância fundamental, pois podem estar relacionados, entre outros, com a própria subsistência da humanidade, como nas questões ambientais, com as condições mínimas básicas de vida, em termos de serviços públicos essenciais na saúde, na educação, na segurança e nos transportes, como na proteção dos bens históricos e artísticos.[11]

Portanto, os intitulados novos direitos são de suma relevância, na medida em que frequentemente se relacionam diretamente com a própria salvaguarda da espécie e com a garantia dos direitos das gerações futuras, que deles podem ser titulares, como se verifica, por exemplo, no art. 225 da Constituição Federal, que garante o direito a um meio ambiente equilibrado para “as presentes e futuras gerações”.[12]

Mas não é só. A observância do objeto das ações coletivas de uma perspectiva ampla “inclui os direitos coletivos lato sensu e também os direitos individuais indisponíveis caracterizados como interesse de ordem social e pública, pela legislação ou pela Constituição”. É com base nessa ampliação do escopo dos processos coletivos que os tribunais brasileiros vêm admitindo que sejam implementadas políticas públicas por meio da intervenção do Judiciário.[13]

Efetivamente, é deveras comum hoje a propositura de ações judiciais cuja finalidade é a de compelir a Administração Pública a efetivar direitos sociais mediante a implementação de políticas públicas.

Verifica-se, então, que ao Poder Judiciário foi conferida uma nova tarefa: a de órgão colocado à disposição da sociedade como instância organizada de solução de conflitos metaindividuais. Tal tarefa decorre da recente “politização da Justiça, entendida como ativismo judicial, sempre coordenado com a atividade das partes e o respeito à Constituição na realização de políticas públicas.[14] (grifos aditados).

Dito de outro modo, o Judiciário, em razão de sua recente politização, emerge como corresponsável, enquanto Poder integrante do Estado, pela efetivação dos direitos que devem ser alcançados por meio deste. Destarte, no âmbito de sua atuação, se posiciona ao lado do Legislativo, conquanto editor de normas gerais, e do Executivo, conquanto concretizador destas, também como protagonista no cenário da implementação de políticas públicas destinadas a garantir a efetividade dos direitos fundamentais.


Notas e Referências:

[1] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ação Civil Pública: desafios e perspectivas após 25 anos de vigência da Lei 7.347/1985. In: A Ação Civil Pública - Após 25 Anos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 63.

[2] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo, vol. 4. 7. Ed. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 35-36.

[3] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 5. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p.719.

[4] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo, vol. 4. 7. Ed. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 37.

[5] MAZZILLI, Hugo Nigro. A Defesa dos Interesses Difusos em Juízo: Meio Ambiente, Consumidor, Patrimônio Cultural, Patrimônio Público e outros interesses. 19. Ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 47.

[6] PASSOS, Lídia Helena Ferreira da Costa. Conceito de Interesse Público e crítica de sua legitimidade> futuro da ação civil pública. In: A Ação Civil Pública - Após 25 Anos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 523 e 529

[7] KRELL, Andreas. Discricionariedade Administrativa e Conceitos Jurídicos Indeterminados, p. 126-127.

[8] MARINONI, Luiz Guilherme. ARENHART, Sérgio Cruz. Manual do Processo de Conhecimento. 5. Ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2006, p. 723-726.

[9] KRELL, Andreas. Art. 225, caput. In: CANOTILHO, J. J. Gomes et al (Coords.). Comentários à Constituição do Brasil.  São Paulo: Saraiva, Almedina e IPD, 2013, p. 2081.

[10] DIMOULIS, Dimitris. Elementos e Problemas da Dogmática dos Direitos Fundamentais. In: Revista da AJURIS – Associação de Juízes do Rio Grande do Sul. Vol. 33, n. 102. Porto Alegre: AJURIS, 1974, p. 104.

[11] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Ação Civil Pública: desafios e perspectivas após 25 anos de vigência da Lei 7.347/1985. In: A Ação Civil Pública - Após 25 Anos. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010, p. 62.

[12] CF/88 - Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.

[13] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo, vol. 4. 7. Ed. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 38.

[14] DIDIER JR., Fredie. ZANETI JR., Hermes. Curso de Direito Processual Civil: Processo Coletivo, vol. 4. 7. Ed. Salvador: JusPodivm, 2012, p. 42


 

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