A judicialização da vida privada – Por Léo Rosa de Andrade

14/10/2015

Aos norte-americanos, admiro-os por sua postura de exercício da liberdade individual: quanto menos Estado na minha vida mais eu me realizo como indivíduo com autonomia. Não, isso não tem nada a ver com desamparo social. É outra coisa: a vida privada tem para eles um grau de reserva que dificilmente alcançamos.

Um estadunidense não diria Estado, mas, governo. Procuro notícias sobre educar em casa os próprios filhos. A questão está no Supremo Tribunal Federal. Leio que há decisão que determina certificação de cumprimento de segundo grau a quem não o cursou formalmente para que a pessoa possa matricular-se em curso superior.

Seja: a universidade absurdamente deixa de medir uma capacidade de ingresso para exigir um diploma. A Justiça, no lugar de obrigar a universidade, obriga uma instituição de segundo grau a certificar para, então, a universidade aceitar o certificado do curso que a pessoa interessada na verdade não frequentou.

Universidades norte-americanas disputam pessoas inteligentes em conhecimentos teóricos ou esportivos. Valoriza-se saber e capacidade. Não creio que se imaginaria pedir um certificado para meramente cumprir formalidade. E nem suponho que nos EUA a Justiça se disporia a interferir nas normas internas de uma universidade.

Essas intromissões do Poder Judiciário nas coisas da vida cotidiana têm alto custo social. Recentemente se publicavam artigos discutindo sobre a Justiça administrar o cabimento de cirurgias plásticas com finalidade estética em menores de idade. Seja: os pais seriam substituídos pelo juiz\Estado.

Imagina um magistrado decidindo sobre a pertinência da má apreciação que alguém tem do seu aspecto físico. Um adolescente desgosta da sua aparência, recusa-se a ter vida social, deprime-se, acaba sob remédios. Será que essa é uma questão de Estado? Necessita da apreciação da burocracia judicial? A família não a resolveria?

Alguém dirá: isso é um modismo, passa. Pode ser. Mas e a dor psíquica que se instalará e permanecerá na constituição emocional do indivíduo? Um juiz pensaria na capacidade de deliberação do adolescente. Eu pensaria no transtorno psíquico que o adolescente levaria para a vida adulta.

Igualmente a laqueadura ou a vasectomia. Vasectomia, coisa de homem, não se discute muito. Nunca vi o assunto em pauta. Laqueadura, coisa de mulher, todo mundo se mete. Desde conselhos religiosos até pruridos de consciência médica incidem no assunto. Muitas vezes a coisa para na Justiça.

Ora, a Lei 9.263/96 é clara. Está prevista a esterilização em “homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de vinte e cinco anos de idade, ou, pelo menos, com dois filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de sessenta dias entre a manifestação e o ato cirúrgico...”. Até aqui, tudo bem.

Mas o texto continua: “...período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, incluindo aconselhamento por equipe multidisciplinar, visando desencorajar esterilização precoce”. Nesta parte a mulher torna-se vítima de uma briga ideológica: implicação religiosa versus sua vontade.

Agora, essa briga sobre o uso da fosfoetanolamina sintética. Trata-se de um remédio desenvolvido nos laboratórios da Universidade de São Paulo. Ele teria efetividade no combate ao câncer. Pois o Estado complica o seu uso e o Judiciário põe-se a conceder liminares, cassar liminares, revogar cassações de liminares.

O indivíduo, em a sua vida privada, padece de sua doença. Considera-se o indivíduo, deplora-se a enfermidade. Mas onde fica o cidadão capaz de exercer com autonomia a sua capacidade decisória? Mete-se o Estado. Diante da morte, o indivíduo tem uma esperança de cura, quer lançar mão dela, mas o Estado complica.

O Estado brasileiro formou-se antes da nossa Sociedade Civil. Parece que disso restou um antagonismo que paira sobre nós como um miasma, constituindo-nos como cidadãos em menoridade kantiana. O Judiciário, se declarasse sua incompetência para imiscuir-se na esfera da vida privada, nos faria um grande bem.


 

Imagem Ilustrativa do Post: Looking Through Spy Hole Girl Sketch // Foto de: Surian Soosay // Sem alterações

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