O presente artigo visa discorrer sobre a influência do sistema acusatório nas prisões preventivas. Para além de reconhecer e afirmar a relevância do sistema acusatório no ordenamento jurídico brasileiro, impõe-se hoje o desafio de garantir a sua efetividade e evitar que um distanciamento prático da diretriz constitucional dele emanada conduza a um processo penal autoritário e repressivo.
Tão importante quanto a existência do processo penal, é a forma como ele é desenvolvido. Quando a Constituição Federal estabelece que o Ministério Público é o titular da ação penal pública (art. 129, I, da CF), entende-se, ainda que de forma implícita, que nossa Carta Magna adotou o sistema acusatório. Fundamental, pois, que acusação e órgão julgador exerçam as inconfundíveis atribuições que lhe foram constitucionalmente estabelecidos.
A recente Lei n° 13.964/19 (conhecida como “Pacote Anticrime”) veio a consolidar ainda mais a opção do Constituinte, ao estabelecer expressamente – art. 3°-A do CPP, cuja vigência encontra-se suspensa, em razão de decisão cautelar do Ministro Luiz Fux, proferida nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6298, 6299, 6300 e 6305) – que o processo penal brasileiro adota o sistema acusatório. No campo das prisões cautelares, mudanças importantes foram implementadas no sentindo de se reafirmar a vigência do sistema acusatório. Dentre elas, destaco a vedação de que o juiz decrete de ofício prisão preventiva ou qualquer outra medida cautelar diversa da prisão, em qualquer fase da persecução penal.
Indubitavelmente, a mudança acima referida tem o condão de consolidar, no ordenamento jurídico brasileiro, a figura do juiz espectador em substituição à figura do juiz protagonista, com o intuito de que seja preservada a imparcialidade do magistrado. Não se pode negar, mormente diante dos avançados estudos sobre a teoria da dissonância cognitiva[1], que quando o juiz determina uma prisão preventiva de ofício, há, ainda que inconscientemente, uma contaminação que vai influenciar sua decisão ao final do processo. De nada adianta separar as funções da acusação e órgão julgador, se for admitida a iniciativa acusatória e probatória do juiz. Contaminar-se-ia o que o magistrado deve ter de mais sagrado: sua imparcialidade.
Entende-se, em um processo penal parametrizado pelo modelo acusatório, como bastante positivas as mudanças operadas nos arts. 282, §2°, 311 e 316, todos do CPP, com a redação dada pela Lei n° 13964/19, que vedam a decretação de ofício da prisão preventiva, bem como das medidas cautelares diversas da prisão.
Há, todavia, uma resistência na efetivação das mudanças recém operadas. São vários os movimentos contra-reformistas, uma verdadeira “sabotagem inquisitorial”[2].
A Lei n° 12.403/2011 pôs fim ao sistema da bipolaridade das cautelares e introduziu no ordenamento jurídico brasileiro medidas cautelares diversas da prisão, de forma que esta somente deveria ser decretada em ultima ratio. Mas a banalização do uso das prisões preventivas frustrou a legítima pretensão legislativa: o juiz decretava a prisão preventiva e não fundamentava o porquê de não ser suficiente as cautelares diversas da prisão. Nesse contexto, surgiu a necessidade do Pacote Anticrime modificar, mais uma vez, o §6° do art. 282 do CPP, no sentindo de estabelecer explicitamente o que já era exigível por ser uma decorrência lógica dos “direitos processuais fundamentais”[3]: que o juiz fundamente, com elementos do caso concreto, a real necessidade da prisão preventiva e o não cabimento da substituição por outra medida cautelar.
A Lei 12.403/2011 estabeleceu ainda a exigência de contraditório prévio para a decretação de uma medida cautelar. A regra poderia ser excepcionada, mediante a devida fundamentação, nos casos de urgência ou de perigo de ineficácia da medida. Todo esse raciocínio era sustentado pela doutrina, mas na prática, a exceção, sem motivação expressa nas decisões, se transformava em regra. Mais uma vez, interveio o Pacote Anticrime (art. 282, §3°, CPP) para exigir expressamente fundamentação idônea em tais situações e ainda preceituar que sua ausência configura nulidade (art. 564, V, do CPP).
Os exemplos acima citados são bastante elucidativos da já citada sabotagem inquisitorial e servem para mostrar como a luta da defesa no processo penal é árdua: após nove anos, ainda tínhamos (temos!) dificuldades de implementação da Lei 12.403/2011 por força dos ranços inquisitórios que permeiam nossa justiça penal. O Pacote Anticrime interveio em mais uma tentativa de efetivar a prisão como ultima ratio e em exigir contraditório prévio para a decretação de medidas cautelares ou uma fundamentação adequada para as hipóteses de contraditório deferido.
A Lei n° 13.964/19, como já dito anteriormente, vedou a decretação da prisão preventiva e de outras medidas cautelares de ofício. Infelizmente, entretanto, já é possível se constatar, empiricamente, experiências negativas nesses primeiros meses de vigência da lei.
Imagine-se que, em um determinado processo, foi decretada a prisão preventiva do acusado, mediante decisão fundamentada do juiz competente. Transcorrido um intervalo de tempo, a defesa entende que se esvaiu o periculum libertatis outrora apresentado como o fundamento para a segregação cautelar e requer, ciente de que a prisão preventiva se submete a cláusula rebus sic standibus, a revogação da prisão. Encaminhados os autos ao representante do Ministério Público, é elaborado parecer favorável ao pleito da defesa, por entender o parquet que houve mudança do substrato fático-probatório. Nessa situação hipotética, pode o juiz negar o pedido de revogação da preventiva? Certamente existirão vozes a sustentar que o magistrado poderá manter a prisão, sob o fundamento de que já foi provocado a decretar a prisão outrora e que, portanto, não estaria agindo de ofício. Pensa-se, todavia, que, uma vez que acusação e defesa entendem que naquele momento processual não é mais cabível a prisão cautelar, sua manutenção por decisão judicial seria burla ao sistema acusatório, vez que estaria o magistrado indo de encontro ao pedido das partes e agindo, pois, de ofício.
Uma interpretação literal da (infeliz) redação do §5°do art. 282 do CPP autorizaria se pensar que o juiz pode, de ofício, voltar a decretar a prisão preventiva. Todavia, essa falta de técnica legislativa não pode servir de gazua para se desrespeitar a teleologia da norma e afastar os demais cânones interpretativos na concretização normativa[4] do disposto no citado artigo.
Para evitar inconsistências sistemáticas, entende-se que o juiz pode, de ofício, apenas revogar ou substituir a prisão preventiva e as demais medidas cautelares. Ora, se a lei passou a exigir do magistrado prévia provocação para decretar, significa dizer que ele já foi provocado e logo adiante poderia revogar ou substituir por medida menos gravosa. Ademais, é cediço que o magistrado pode conceder uma ordem de habeas corpus de ofício. Por fim, nunca é demais lembrar que salvaguarda dos direitos fundamentais do acusado é uma das missões do processo penal.
Outra questão digna de nota diz respeito à necessidade de fundamentação da decisão que decreta a prisão preventiva ou qualquer outra medida cautelar. Apesar do mandamento constitucional (art. 93, inc. IX) e de todo o arcabouço teórico que envolve a matéria, era muito comum juízes decretarem prisão preventiva sem a devida fundamentação, limitando-se a enumerar que o caso concreto configurava ameaça à ordem pública, e como se o texto prescindisse de uma concretização normativa, olvidavam a fundamentação das suas decisões e a apresentação de embasamentos empíricos[5].
O Pacote Anticrime trouxe um sensível incremento à fundamentação da prisão preventiva, como se verifica, dentre outros dispositivos, da redação conferida ao art. 315 do CPP. Espera-se que essas mudanças sejam efetivamente implementadas, haja vista que a prisão preventiva, bem como as demais medidas cautelares, por serem restritivas de direitos fundamentais, tornam imprescindível a adequada motivação na realização judicativo-decisória.
A Lei 13.964/19 exige ainda, consoante se extrai da leitura do art. 312, §2° do CPP, quando da decretação de uma prisão preventiva, que seja demonstrado a contemporaneidade do periculum libertatis. Trata-se da consagração do princípio da atualidade.
Outra questão de suma importância diz respeito à convalidação judicial da prisão em flagrante. Quando o juiz se depara com uma prisão em flagrante, por ocasião da audiência de custódia, pode, de ofício, convertê-la em preventiva? A discussão já era ventilada antes mesmo da edição do pacote anticrime, mas acreditava-se, equivocadamente, que seria superada com a proibição expressa de que o juiz decrete, de ofício, prisão preventiva durante toda a persecução penal.
Ainda existem vozes a defender que o juiz pode converter o flagrante em preventiva, a despeito de defesa e acusação pugnarem pela concessão de liberdade provisória. A justificativa seria que o magistrado não estaria agindo de ofício, mas sim mediante provocação, consubstanciada no recebimento do auto de prisão em flagrante. Considera-se ainda que os juízes, em assim agindo, estariam apenas cumprindo o preceituado no art. 310, II, do CPP. Nesse diapasão, mesmo após a vigência do Pacote Anticrime, encontramos decisões dos tribunais superiores, a exemplo do HC 174102/RS, datado de 18/02/2020, julgado pelo STF e do RHC 120281, julgado em 05/05/2020, pelo STJ.
Entendemos que essa prática judicial revela mais um ranço inquisitório. A autoridade policial remete o auto de prisão em flagrante ao magistrado por imposição constitucional e não como provocação apta a autorizar a decretação da preventiva.
Mais uma inovação de suma importância, implementada pelo pacote anticrime, foi a determinação de que a prisão preventiva tenha sua necessidade revisada a cada noventa dias, mediante decisão fundamentada (art. 316, parágrafo único do CPP). Essa norma só terá real efetividade se os tribunais considerarem a ilegalidade automática da prisão como consequência de eventual descumprimento dessa revisão.
Ainda como forma de romper com as práticas inquisitivas, o pacote anticrime também deu ênfase à impossibilidade de decretação da prisão preventiva com cariz de pena antecipada (art.313, §2° do CPP).
Discutir a valoração das prisões preventivas, na perspectiva do sistema acusatório, configura assunto de interesse teórico e prático da comunidade jurídica brasileira, dadas as repercussões que a matéria resvala na dialética entre entre o ius puniendi estatal e o ius libertatis de todo acusado.
O Pacote Anticrime adotou expressamente o sistema acusatório e preceituou para a sua devida efetivação, dentre outras mudanças, a vedação de que o juiz decrete, de ofício, prisão preventiva ou qualquer outra medida cautelar. Configura, pois, verdadeira burla à essa nova sistemática, admitir que o juiz converta, sem requerimentos das partes, a prisão em flagrante em preventiva, por ocasião da audiência custódia, bem como permitir que o magistrado mantenha uma segregação cautelar, quando acusação e defesa entendem que, naquele momento processual, já não existe mais o periculum libertais que outrora autorizou a prisão.
Lutar-se pela implementação da figura do juiz espectador não significa inviabilizar a possibilidade de decretação de medidas cautelares em desfavor do réu ou obstar a eficiência persecutória. Trata-se, tão somente, de conferir à acusação e ao órgão julgador os lugares que lhe foram constitucionalmente estabelecidos e, em consequência, garantir ao acusado que as decisões que lhe atingem serão tomadas por um juiz imparcial.
Notas e Referências
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003.
COSTA, José de Faria. Beccaria e o direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2015.
LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019
Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.
ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais, 2020.
[1] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 71-74.
[2] Expressão cunhada por Alexandre Morais, in ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 6. ed. Florianópolis: Emais, 2020.
[3] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e teoria da Constituição. Coimbra: Almedina, 2003, p.446.
[4] Müller, Friedrich. Métodos de trabalho do direito constitucional. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000, p. 62
[5] COSTA, José de Faria. Beccaria e o direito penal. Coimbra: Coimbra Editora, 2015, p. 48-49.
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