Por Soraia da Rosa Mendes e Daniel Brandão – 20/09/2017
“A verdadeira liberdade ocorre quando os homens, nascidos livres, precisando dirigir-se ao público, podem falar livremente. Aquele que puder e quiser falar, merecerá honrarias. Aquele que não puder ou não quiser, poderá ficar em paz. O que poderá ser mais justo do que isso?”.
A indagação acima foi feita aproximadamente em 450 a.C pelo poeta grego Eurípedes. Mas, ainda hoje – passados mais de 2.400 anos – permanece sem resposta de parte daqueles e daquelas que portam uma bandeira sob a qual acontecimentos atrozes foram praticados ao longo da história.
Autoconsiderando-se representante do “cidadão de bem”, no Brasil do século XXI, um movimento que ironicamente carrega em sua sigla o adjetivo que repudia com seus atos – o Movimento Brasil Livre – mais uma vez nos brindou com um espetáculo de intolerância. Agora em relação à arte.
No início do mês de setembro, a exposição Queermuseu - Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, aberta ao público há quase um mês no Santander Cultural, em Porto Alegre, foi cancelada pelo banco após uma série de protestos nas redes sociais que alegavam que a mostra faria “apologia à pedofilia e zoofilia”, além de ser ofensiva à “moral cristã”. A campanha pedindo o fechamento do evento cultural foi articulada principalmente pelo Movimento Brasil Livre (MBL) em companhia de alguns grupos religiosos.
Não há justificativa para a forma grotesca como o MBL reagiu à exposição Queermuseu ou, tampouco, para que a instituição cancelasse a exposição. Não é razoável que o incômodo e a reprovação a uma obra de arte sejam suficientes para que ela seja encaixotada e deixe de existir aos olhos de outros tantos e outras tantas. Se um quadro – ou qualquer outra forma de expressão artística – me incomoda, desde uma perspectiva democrática, somente dois caminhos me são possíveis: ou evitar o contato com ele ou procurar em mim o motivo pelo qual reajo mal a ele.
Se eu o evito, a arte respeita o meu direito de não querer contemplá-la. Por outro lado, se opto por refletir sobre o mal-estar que ele me causa, permito que a arte cumpra seu papel de ativar as faculdades superiores que me dignificam como pessoa que pensa, contribuindo para que eu me conheça melhor e reflita para além dos valores que limitam minha existência e condicionam o meu ser.
Quando o MBL, em uma suposta condição de organização pró-liberdade, se julgou no direito de intentar atos com o fim de impedir que todos e todas pudessem contemplar as obras expostas, caiu nas teias de uma contradição performativa. Um fenômeno que ocorre quando o conteúdo que consubstancia um determinado ato contradiz os seus pressupostos. Não é coerente defender a liberdade no discurso e atentar contra ela no mundo dos fatos. O que o MBL quer não é um “Brasil Livre”, mas de clausuras, cerceamentos, vigilâncias, censuras.
Em um jogo de palavras, como caracteriza o discurso das lideranças do “movimento”, Kim Kataguiri, esforçou-se para tentar fazer parar em pé a cambaleante tese de que as ações perpetradas pelo grupo que lidera trataram-se apenas de um boicote. Segundo ele, em vídeo publicado na página do MBL no Facebook,: “(...) quando o cliente manda o recado para a empresa cujos produtos ele consome, falando: ‘olha, o que você está fazendo é errado, não representa os meus valores. Pare de fazer isso!’ Isso é o boicote.”.
Reflitamos, então, sobre a lógica que norteia o referido movimento que diz defender a liberdade (!?). Em síntese, para o MBL: se você não está de acordo com os valores dos militantes do movimentos, você está errado e, por isso, sua forma de expressão, qualquer que seja, pode ser aniquilada.
Agora, perguntamos nós: onde está a liberdade do outro para expressar publicamente outros valores que não os mesmos que os do MBL? Ou ainda: que tipo de ideologia verdadeiramente liberal se atreve a eleger valores corretos e militar contra quem, livremente, pense diferente e não adira cegamente aos “escolhidos como certos”?
O mínimo que se espera em uma sociedade livre é o respeito à liberdade de ser e expressar-se como diferente. Que seja assegurado o direito de manifestação. E que não seja permitido que a perseguição tome lugar e imponha a todos e todas uma visão de mundo que diverge da sua realidade e desqualifica sua existência.
A pastalhice que vimos acontecer em Porto Alegre seria risível se não fosse trágica naquilo que se assemelha a episódios degradantes registrados pela história. Episódios, por sinal, comuns em tempos sombrios, como na Alemanha Nazista, na qual tomou corpo a expressão “arte degenerada” para classificar uma vertente artística proibida pelo regime, por contrariar substancialmente seus “valores”.
Dostoievski, evidenciando, criticamente, um dos diferenciais competitivos relevantes da arte literária, qual seja, conseguir preceder os acontecimentos do mundo real, faz lembrar o caminho que o Movimento Brasil Livre parece tentar pavimentar às pressas, e que desafia a sensatez:
“Tentem, pois, deem-nos, por exemplo, mais independência, desamarrem os braços de qualquer um de nós, alarguem o círculo das atividades, afrouxem o controle, e nós... asseguro-lhes: nós pediremos logo para ficar, outra vez, controlados”.[1]
Pensando bem, nada do que o MBL fez até hoje foi tão apropriado e condizente com o que o movimento verdadeiramente é (e estrategicamente esconde) do que reagir mal à personificação de uma das formas de que a liberdade se vale para se expressar: a arte.
Que seja o lado positivo desse infortúnio que a arte se imponha e cumpra seu papel. Que desvele a narrativa dissimulada de um movimento que professa ideias de liberdade. Que escancare sua essência de organização de mercadores do atraso, que flerta com ideias ultraconservadoras que tentam controlar e apequenar o ser humano. Que o mostre o quanto suas ações se destinam a erguer solidificar os muros de ignorância travestidos de “valores” que não se sustentam diante da reflexão crítica contemporânea e, por isso, talvez não valham tanto.
A arte, por ser livre e estar na condição de manifestação do espírito que é um fim em si mesmo, não tem compromisso com o agrado. Para além do que é belo e nos encanta, a arte não obedece ao “efeito desodorante”. Pelo contrário, no mais das vezes, ela se entrega ao incômodo, ao desconforto, à discórdia, à provocação.
A arte não é boa só quando é boa para alguém. A arte simplesmente é.
Notas e Referências:
[1] DOSTOIÉVSKI, Fiódor. Diário do Subsolo. Martin Claret. São Paulo, 2012.
. Soraia da Rosa Mendes é professora e advogada, mestre em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS, doutora em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília – UnB e pós-doutoranda em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. .
. . Daniel Brandão é estudante do Curso de Direito do Centro de Ensino Unificado de Brasília, UniCeub. . .
Imagem Ilustrativa do Post: Oh no... // Foto de: John Bastoen // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/johnbastoen/17356520216
Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode
O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.