A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal, ao declarar, na sessão do último dia 29 de junho, a incompetência da Justiça comum para julgar uma ação penal em que o acusado responde pelos crimes de falsidade ideológica eleitoral (o chamado caixa 2), peculato e lavagem de dinheiro, e determinar o envio do caso para a Justiça Eleitoral, utilizou-se da norma contida no artigo 81 do Código de Processo Penal, segundo a qual “verificada a reunião dos processos (rectius: dos casos penais) por conexão ou continência, ainda que no processo da sua competência própria venha o juiz ou tribunal a proferir sentença absolutória ou que desclassifique a infração para outra que não se inclua na sua competência, continuará competente em relação aos demais processos.”
A decisão deu-se no julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus 177243, quando o colegiado, por maioria, aplicou a jurisprudência da Corte no sentido de competir à Justiça Eleitoral processar e julgar crimes comuns conexos com delitos eleitorais; o recurso foi interposto em relação a um acórdão do Superior Tribunal de Justiça que, em habeas corpus impetrado naquela Corte Superior, negou o pedido de nulidade da sentença condenatória.
Segundo o relator do recurso, Ministro Gilmar Mendes, o caso se enquadra no precedente estabelecido pelo Plenário da Suprema Corte, no julgamento do Inquérito 4435, quando se definiu que compete à Justiça Eleitoral processar e julgar crimes comuns que apresentem conexão com delitos eleitorais. Nesse e em outros precedentes citados pelo relator, o STF entendeu que, nos casos de “doações eleitorais por meio de caixa 2, ou seja, casos que constituem, em tese, o crime de falsidade ideológica eleitoral, a competência é da Justiça Eleitoral, mesmo diante da existência de crimes conexos de competência da Justiça comum.”[1]
Ainda segundo consta do voto do relator, o reconhecimento da prescrição em relação ao crime eleitoral não afasta a competência da Justiça especializada para julgar os delitos (comuns) conexos, ou seja, nada obstante ter havido uma decisão terminativa de mérito (reconhecendo a extinção da punibilidade pela prescrição), nada impede, muito pelo contrário – tudo exige – que a Justiça eleitoral continue o julgamento relativamente aos crimes ditos comuns (peculato e lavagem de dinheiro), reconhecendo uma perpetuatio jurisdictionis.[2]
A decisão da Suprema Corte está correta, e em consonância com o referido artigo 81 do Código de Processo Penal, onde se estabelece uma (raríssima) hipótese de perpetuatio jurisdictionis no processo penal (tão comum no processo civil em razão do disposto no art. 43 do Código de Processo Civil); afinal, conforme já afirmava Frederico Marques, “não influi sobre a competência prorrogada a sentença absolutória proferida em relação ao delito que atraiu as demais infrações para o forum connexitatis (artigo 81).”[3]
Comentando este artigo, Karam explica que “a competência determinada em razão da conexão igualmente se perpetua, subsistindo, ainda que desapareça por um motivo qualquer a causa que atraíra a competência para determinado órgão jurisdicional.”[4]
O que há de peculiar neste caso julgado é que não se tratou exatamente de uma sentença absolutória ou de uma decisão desclassificatória (de natureza interlocutória), mas de uma decisão (meramente declaratória) terminativa de mérito, reconhecendo o transcurso do prazo prescricional relativamente ao crime eleitoral, exatamente o delito que, em razão da conexão com os dois outros crimes comuns (peculato e lavagem de dinheiro), levou todo o caso para a Justiça Eleitoral, por força do artigo 78, IV do Código de Processo Penal e artigo 35, II da Lei nº. 4.737/67 (Código Eleitoral).
Assim, a decisão da Suprema Corte equiparou, para os efeitos do artigo 81, sentença absolutória e sentença terminativa de mérito declaratória da extinção da punibilidade, nos termos do artigo 3º. do Código de Processo Penal, que admite a interpretação extensiva no processo penal, desde que, evidentemente, tal possibilidade não seja contrária aos direitos e garantias inerentes à condição de acusado.
Aqui, necessário ressaltar que não se deve confundir a analogia (ou aplicação analógica) – como método de autointegração da norma – com interpretação extensiva, pois, no primeiro caso, há uma lacuna a ser suprida, enquanto que, no segundo caso, trata-se de uma norma já existente, permitindo-se uma ampliação do seu alcance, para contemplar situações não previstas expressamente pelo legislador, tenha sido tal omissão feita de maneira voluntária ou involuntária.
Ferrara, explicando bem esta diferença, afirma que a analogia “aplica-se quando um caso não é contemplado por uma disposição de lei, enquanto a interpretação extensiva pressupõe que o caso já está compreendido na regulamentação jurídica, entrando num sentido duma disposição, se bem que fuja à sua letra.”
Assim, segundo o mesmo autor, “enquanto a interpretação extensiva não faz mais do que reconstruir a vontade legislativa já existente – revelando o sentido daquilo que o legislador realmente queria e pensava -, a analogia, pelo contrário, está em presença duma lacuna, em um caso não previsto, para o qual não existe uma vontade legislativa, e procura tirá-la de casos afins correspondentes, relacionando-se com casos em que o legislador não pensou, e vai descobrir uma nova norma inspirando-se na regulamentação de casos análogos.”[5]
Feita esta distinção necessária, especialmente em razão do nosso Código de Processo Penal a ela fazer referência expressa no referido art. 3º., é preciso atentar para a natureza da respectiva norma, conforme lição de Florian, de tal maneira que “se se trata da liberdade pessoal, as limitações à mesma devem ser interpretadas em sentido estrito, em virtude do conhecido princípio in dubio pro reo, proclamado secularmente pelos penalistas, e admitido em todos os povos cultos.”
Florian, então, estabelece o seguinte critério geral e metodológico: “onde a lei não dita mandatos ou proibições, pode-se permitir uma margem de liberdade ao juiz e às partes, ainda que sempre conforme aos fins do processo e aos princípios fundamentais que o regem.”[6]
Também Aragoneses já advertia, fazendo um paralelo entre as leis penais e as leis processuais penais, para o fato que quando a lei possa “produzir um determinado efeito prejudicial para o acusado, a interpretação deve ser restritiva”, citando como exemplo normas que afetam “a liberdade pessoal e a propriedade dos cidadãos (medidas cautelares), as que, por sua similitude com as penas, exigem esse tratamento de aproximação com os critérios interpretativos das normas penais materiais.”[7]
Neste mesmo sentido, Barreiros, após admitir que “este método pode ser amplamente utilizado no Direito Processual Penal”, ressalva “as normas restritivas de direitos subjetivos, ou que tenham natureza excepcional.”[8]
De toda maneira, ainda que não fosse o caso de se fazer uma interpretação extensiva do caput do artigo 81 do Código de Processo Penal – como feito pela Turma da Suprema Corte, ainda assim se deveria manter a competência da Justiça especial, em observância ao princípio da identidade física do juiz, previsto expressamente no artigo 399, § 2º., CPP, impondo-se que o juiz que presidiu a instrução criminal julgue também o processo.[9]
Como se sabe, em razão do referido princípio, o Juiz que colher a prova deve julgar o processo, de maneira que possa “apreciar melhor a credibilidade dos depoimentos; e a decisão deve ser dada enquanto essas impressões ainda estão vivas no espírito do julgador”, ressalvando-se, evidentemente, as hipóteses em que o Juiz estiver afastado por qualquer motivo.[10]
Como afirmava René Ariel Dotti, é correta a adoção deste princípio, pois “a ausência, no processo penal, do aludido e generoso princípio permite que o julgador condene, com lamentável frequência, seres humanos que desconhece”.[11]
Ainda a propósito, Gustavo Badaró explica que “a identidade física do juiz deve atuar integradamente com o sistema da oralidade, que tem como outras características a concentração e a imediação. Assim, nos procedimentos especiais que adotem estrutura concentrada, desenvolvendo-se mediante audiência una de instrução, debates e julgamento, terá incidência a regra da identidade física do juiz, por aplicação subsidiária das disposições do procedimento comum ordinário, nos termos do § 5º. do art. 394 do CPP, como, por exemplo: no procedimento especial da Lei nº. 11.343/06 (art. 57, caput) e no procedimento sumaríssimo da Lei nº. 9.099/1995 (art. 81, caput). Já nos procedimentos em que há previsão de mais de uma audiência, como no caso do procedimento para os crimes eleitorais, não será possível a aplicação da identidade física do juiz.”
E, pergunta, então: “qual a consequência da violação da regra da identidade física do juiz? Predomina o entendimento de que a regra da identidade física do juiz estabelece um caso de competência funcional, cuja violação acarreta a nulidade da sentença. Discorda-se de tal entendimento. A competência trata da legitimidade do exercício da jurisdição entre os diversos órgãos jurisdicionais. É distribuição de competência entre órgãos, e não entre juízes fisicamente considerados. Mesmo no caso de competência interna, em um mesmo juízo, não significa que um juiz especificamente considerado seja definido como competente.”[12]
Assim, para concluir, no caso de conexão e continência, ainda que relativamente ao caso penal de sua competência própria venha o Juiz ou Tribunal a proferir sentença que extinga a punibilidade (pela prescrição ou por qualquer outra causa), continuará competente em relação aos demais delitos, por força do disposto no artigo 81 do Código de Processo Penal.
Notas e Referências
[1] Em julgamento realizado em março de 2019, a Suprema Corte decidiu competir à Justiça Eleitoral a competência para julgar crimes conexos aos eleitorais, prevalecendo o voto do relator, Ministro Marco Aurélio, segundo o qual “a competência da Justiça especializada se sobrepõe à da comum, devendo a própria Justiça Eleitoral decidir se os inquéritos e processos devem ser desmembrados ou não.” Neste julgamento paradigmático (verdadeiro leading case), o relator deixou consignado não haver “espaço para dúvidas quanto à competência da Justiça Eleitoral para julgar crimes comuns conexos aos eleitorais”, sendo acompanhado pelos Ministros Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli, sob o entendimento que o art. 109, IV da Constituição estabelece que a Justiça Federal julga causas de interesse da União, ressalvada a competência da Justiça Eleitoral e da Justiça Militar. Ademais, o Código Eleitoral, no inciso II do artigo 35, disciplina que o juiz eleitoral deve julgar os crimes eleitorais e os comuns que lhe são conexos. Conforme anotado pelo Ministro Ricardo Lewandowski, “a tendência dos últimos anos, até da jurisprudência do STF, é ampliar as competências da Justiça Eleitoral, verificando-se uma tendência de atribuir a essa Justiça, que é extremamente ágil e aperfeiçoada no cumprimento de seu mister, uma competência cada vez mais alargada, sobretudo no que diz respeito a matéria criminal e naqueles crimes conexos com a matéria de natureza eleitoral", citando a Lei 13.488/17 que incluiu artigo na legislação eleitoral que trata do “caixa dois”. E, completou: "Para mim, essa matéria está tão clara, que se não o fosse não haveria necessidade de um projeto de lei do Ministério da Justiça, justamente com o objetivo de cindir esta linha." Já para o Ministro Gilmar Mendes, “mudar competência da Justiça Eleitoral atende a projeto de poder: são uns cretinos! Se estudaram em Harvard, não aprenderam nada. Não sabem o que é processo civilizatório. Não sabem o que é processo. Até porque quem trabalha em processo não se apaixona pelo processo." No seu voto, o então decano da Suprema Corte, o hoje aposentado Ministro Celso de Mello, reafirmou que o seu entendimento “traduzia e revelava posição que tinha adotado na corte sobre as relações entre os poderes do Estado e os direitos de qualquer pessoa, como ao juiz natural e ao devido processo legal, qualquer pessoa que venha a ser submetida aos órgãos de ação punitiva em persecução penal, não podendo tais julgamentos expor-se a pressões externas, clamor das ruas.” Afinal, segundo ele, “é na Constituição e na lei, e não na busca pragmática de resultados, independente de meios, que se deve promover o justo e o equilíbrio na tensão entre o princípio da autoridade de um lado e o valor de outro. O que se revela intolerável e não tem sentido é por divorciar-se do rule of law de que o respeito pela autoridade da Constituição e das leis possa traduzir frustração do processo penal", classificando como "panfletagens insultuosas e atrevidas as que têm sido veiculadas em nome de decisão diversa da que foi tomada, pondo-se em risco de subversão do regime de direitos e garantias individuais que a ordem jurídica assegura a qualquer pessoa.” Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/a-competencia-criminal-da-justica-eleitoral-o-stf-reitera-a-sua-posicao. Acesso em 31 de maio de 2021.
[2] Disponível em: http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=5797619. Acesso em 06 de julho de 2021.
[3] MARQUES, José Frederico. Da Competência em Matéria Penal. Campinas: Milennium Editora, 2000, p. 380. No processo penal o que é relativamente comum é a possibilidade de uma modificação da competência, como se dá, por exemplo, na Lei nº. 9.099/95 (arts. 66, parágrafo único e 77, § 2º.), nos casos de desaforamento (art. 427), conexão (art. 76), continência (art. 77), incidente de deslocamento de competência (art. 109, § 5º., CF) e na ação penal de iniciativa privada (art. 73).
[4] KARAM, Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002, p. 70. O grifo não consta do original.
[5] FERRARA, Francesco. Interpretação e Aplicação das Leis. Coimbra: Arménio Amado - Editor, 1987, pp. 162 -163.
[6] FLORIAN, Eugenio. Elementos de Derecho Procesal Penal. Barcelona: Bosch – Casa Editorial, 1933, pp. 41 e 42.
[7] ALONSO, Pedro Aragoneses. Instituciones de Derecho Procesal Penal. Madrid: 1976, p. 65.
[8] BARREIROS, José António. Processo Penal - 1. Coimbra: Almedina,1981, p. 202.
[9] Conforme lição de Jacinto Nelson de Miranda Coutinho: “É preciso ressaltar, ainda, que o princípio da identidade física do juiz não se confunde com o princípio do Juiz Natural. Como se sabe, por este, ninguém poderá ser processado ou sentenciado por juiz incompetente, ou seja, o juiz natural é o juiz competente, aquele que tem sua competência legalmente preestabelecida para julgar determinado caso concreto. Já por aquele (o princípio da identidade física) assegura-se aos jurisdicionados a vinculação da pessoa do juiz ao processo.” Disponível em: https://revistas.ufpr.br/direito/article/view/1892/1587. Acesso em 30 de maio de 2021.
[10] Barbi, Celso Agrícola. Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I. Rio de Janeiro: Forense, p. 327. A propósito, no julgamento do Habeas Corpus 121624, o STF decidiu que a aplicação do princípio da identidade física do Juiz não é absoluta, permitindo flexibilização em situações excepcionais, como nas hipóteses de convocação, licença, promoção, aposentadoria ou afastamento do Magistrado por qualquer motivo; neste sentido, citando precedentes das duas Turmas do Supremo Tribunal Federal, o relator do habeas corpus, Ministro Gilmar Mendes, observou que a jurisprudência da Suprema Corte é no sentido de que deva existir correlação entre as provas colhidas durante a instrução e a sentença, ainda que proferida por outro Magistrado. O relator destacou o Recurso Ordinário em Habeas Corpus 116205, de relatoria do Ministro Ricardo Lewandowski, que assenta a necessidade de moderação na aplicação do princípio da identidade física do Juiz, de forma que a sentença seja anulada apenas “nos casos em que houver um prejuízo flagrante para o réu ou uma incompatibilidade entre aquilo que foi colhido na instrução e o que foi decidido.”
[11] DOTTI, René Ariel. O Interrogatório à Distância. Revista Consulex, nº. 29, p. 23.
[12] BADARÓ, Gustavo Henrique. A Regra da Identidade Física do Juiz na Reforma do Código de Processo Penal. Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, nº. 200 (julho 2009), p 13.
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