A interpretação da Constituição quem faz sou eu – Por Fernanda Mambrini Rudolfo e Lucas Nicholas Santos de Souza

07/05/2017

Manda quem pode, obedece quem não tem coragem. No Brasil do Século XXI, atrás de portas de gabinetes e finos monitores de processos digitais, resiste um despotismo (nem tão esclarecido) ansioso pela oportunidade de conceder o (des)prazer de sua graça. Nas barrigas de muita gente por aí mora um reizinho, que com maior ou menor frequência vem à tona para mostrar quem “manda”. E convenhamos, nenhum ser humano é tão tímido a ponto de conseguir ocultar tamanha sede por autoridade. Basta uma cadeira, um réu e um microfone aberto: é hora do show!

Participamos recentemente de uma audiência em que, após se aventar uma questão de ordem, o nobre Magistrado entendeu que isso era uma tentativa de lhe cassar a palavra, de lhe ensinar o seu ofício, e não deu continuidade ao ato até conseguir travar uma calorosa discussão. Demonstrava uma incessante vontade de compreender por que era questionado e, ao que parece, pretendia que a defesa mudasse seu posicionamento para concordar com ele. Dando seguimento ao ato, foi educadamente corrigido que estava presente uma Defensora Pública, não uma advogada (sem qualquer demérito à advocacia, pelo contrário). Insistente na certeza de sempre estar certo, afirmou que era advogada porque assim ele entendia. Passados mais alguns argumentos, findou por afirmar que “a interpretação da Constituição quem faz é ele”.

Esquece, portanto, que o Direito (com a Constituição, Tratados e Convenções Internacionais, Leis, Resoluções etc.) pressupõe uma linguagem pública, e não meramente privada. Quando o sujeito senta em sua poltrona de juiz, não existe mais a “minha interpretação da Constituição”. Não pode o juiz refazer a Constituição a gosto, cunhar sua assinatura ao final para chamar de sua e, então, aplicá-la em audiência aos seus jurisdicionados. A Constituição é uma só e todos os brasileiros a subscrevem.

O magistrado, apesar de porta-voz, é apenas mais uma vítima da criação jurídica de pós-verdades, na qual ao texto é atribuído o sentido que a minha autoridade deseja; é o produto da postura discricionária e autoritária rejeitada pela Constituição; é a reflexão de um realismo jurídico vulgar e escrachado; enfim, é um ícone do sujeito que se basta em si, “assujeitador” de seus objetos; é um verdadeiro solipsista.

Esse tipo de pessoa não está acostumado a ser questionado e gosta de fazer as coisas exclusivamente do seu jeito. A bola é minha; se não vai ser do meu jeito, acabou o jogo. Ocorre que a vida não é um playground e as regras do jogo não têm um dono. Quando se afirma que o magistrado figura supra partes no processo penal, não se quer dizer que seja hierarquicamente superior às partes, mas que deve estar distante dos seus interesses; tem a ver com a noção de imparcialidade, não de autoridade, muito menos de autoritarismo.

O grande problema é que, na vida, em vez de donos da bola temos detentores de canetas. E a caneta pode ser tão perigosa quanto é poderosa... Assim como pode ser o silêncio daqueles que se omitem diante de arbitrariedades. Desejamos a todxs, portanto, que o juízo ceda espaço à coragem de desobedecer.


 

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