A INTERNET OF TOYS E A VIOLAÇÃO AO DIREITO À PRIVACIDADE DE CRIANÇAS E ADOLESCENTES

24/08/2021

 Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese

A sociedade vem passando pelo período denominado de era digital, devido ao advento das novas tecnologias da informação e comunicação, em que a internet se mostra como ferramenta de inovação. Com o passar do tempo, a internet tem sido um dos principais veículos para obtenção de bases de informações, tanto para prestá-las quanto para obtê-las com maior agilidade, rapidez e facilidade. Esse período se mostra, ao mesmo tempo, como de evolução e de preocupação, especialmente quando pensamos na infância e adolescência, pois o uso excessivo das tecnologias ou o seu fator invasivo nas rotinas podem trazer riscos ao seu desenvolvimento integral.

Muitas dessas novas tecnologias são desenvolvidas com largo alcance, mesmo quando de uso pessoal, valendo-se da internet of things (“internet das coisas”). O conceito de internet das coisas está relacionada a uma das eras da internet, chamada de web 3.0, que passou a usar a internet para cruzar dados e, também, trazer interação dos objetos com as pessoas, por isso foi assim denominada como das “coisas” (MAGRANI, 2018). A era web 3.0 trouxe um sistema para esses objetos digitalmente conectado a todo ou a quase todo tempo, o que acaba por coletar dados do titular, mesmo em momentos de não utilização direta.

No que tange aos itens de consumo, os produtos interligados com a tecnologia da “internet das coisas” são de diferentes áreas, com funções diversas, como vem ocorrendo com os brinquedos, surgindo a internet of toys.

A internet of toys, na tradução literal da palavra de origem da língua inglesa significa “internet dos brinquedos” ou “brinquedos conectados”, composta por brinquedos infantis que, para se fazer uso de todas as suas funcionalidades, necessitam estar conectados à internet ou via bluetooth. São os chamados de smart toys (“brinquedos inteligentes”), que interagem ou trazem funcionalidades maiores pelo simples fato de estarem conectados, não sendo apenas objetos inanimados ou simples repetidores.

Trata-se de uma variedade de produtos capazes de interagir com o usuário infante de forma inteligente, não apenas por meio de repetição simples de frases ou músicas em uma gravação, como os produtos tradicionais, mas sim de forma interativa. Assim, pode-se pensar em bonecas e ursinhos que respondem ao que é falado pela criança, reproduzindo uma resposta individualizada, por meio de microfones e sistemas de reconhecimento de voz (LEAL, 2017, p. 178).

Os smart toys, quando online, ou seja, quando acionados ao wi-fi ou bluetooth, estão a todo tempo ouvindo e processando os dados pessoais ou até as imagens locais, a depender do avanço tecnológico.

Já não bastassem os smartphones, as smart TVs, os computadores, os eletros inteligentes, os wearables (itens de vestuários inteligêntes como relógios, óculos e tênis), entre outros,  agora os brinquedos também captam as conversas e situações que ocorrem com as crianças e adolescentes, bem como na intimidade do lar, no cotidiano das famílias, colhendo dados pessoais dos envolvidos nesse ambiente.

Trata-se de “um volume massivo de dados (big date) sendo processado, na escala de bilhões de dados diariamente, possibilitando conhecer cada vez mais os indivíduos em seus hábitos, preferências, desejos e tentando, assim, adivinhar suas escolhas (MAGRANI, 2018, p. 49). Tal condição torna-se fator de preocupação, especialmente com a privacidade invadida, pois, “ainda que a internet esteja sendo levada às coisas, estas estão conectadas a nós, as pessoas a quem essas coisas passarão a prover serviços e funcionalidades” (MAGRANI, 2018, p. 58).

Nesse sentido, em meio a essa revolução tecnológica ao qual crianças e adolescentes estão inseridos, por um lado as finalidades podem ser educativas ou recreativas, mas, por outro, pode estar violando direitos fundametais. Por assim dizer, especialmente quando relativos à infância, “não se pode, ingenuamente, abrir mão da liberdade, da privacidade, dos dados pessoais como a imagem em troca de promessas de segurança sem que se questione como essas informações e dados pessoais serão tratados, qual seu destino, quem os controlará [...]” (SILVA; SILVA, 2020, p. 51-52).  

Afetada a essas situações, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais – LGPD (Lei nº. 13.709/2018), veio para regulamentar o tratamento de dados pessoais, em particular nos meios digitais, por pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado.

O objetivo da lei é de “proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade e o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa natural” (BRASIL, 2018). A LGPD se aplica a todos que fazem qualquer coleta de dados pessoais, determinando basicamente a proteção de informações que são relativas a terceiros e, por algum motivo, chegaram ao conhecimento de outrem, zelando pela ética e pela colaboração, e a segurança e a higidez dos dados obtidos.

A LGPD divide os dados que podem vir a serem coletados em três: os dados pessoais, os dados pessoais sensíveis e os dados anonimizados. Os dados pessoais são informações relacionadas à pessoa natural identificada ou identificável. Os dados pessoais sensíveis são aqueles que dizem respeito a origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural. E, os dados anonimizados são aqueles relativos a titular que não possa ser identificado, considerando a utilização de meios técnicos razoáveis e disponíveis na ocasião de seu tratamento (BRASIL, 2018).

Levando em consideração essa quantidade de dados que podem ser expostos, não há possilidade de concetrar essa “invasão” à privacidade do lar somente ao consentimento dos pais ou responsáveis.

O consentimento é a “manifestação livre, informada e inequívoca pela qual o titular concorda com o tratamento de seus dados pessoais para uma finalidade determinada” (BRASIL, 2018), em que pela simples aquisição do produto, subentende- se que se está havendo o consentimento do indivíduo que o obtém. No entanto, o consentimento deve vir com a clareza de o porquê a pessoa estará entregando aqueles dados, como serão armazenados, como serão protegidos, como serão utilizados, como se poderá requisitar informações sobre os mesmos, entre outros, antes de a pessoa efetivamente entregá-los, seja por meio de cadastros obrigatórios ou pelo simples uso, que já gera a captação dos mesmos.

A priori, os pais são os resposáveis sobre a pessoa dos filhos, mas, por vezes, por serem os brinquedos famosos ou desejados pelas crianças e adolescentes, ou parecerem aos olhos paternos e maternos interessantes para o aprendizado ou a própria diversão dos filhos, pai e mãe ou responsável, não veem problema no mesmo ou até desconhecem a possibilidade de quebra da privacidade do lar, mal compreendendo a gradiosidade da coleta de dados pessoais que um – aparentemente – inocente brinquedo poderá fazer.

Outras vezes sequer foram os próprios pais ou responsáveis que adquiriram o brinquedo, tendo sido dado de presente à criança ou ao adolescente por terceiros, como os amigos, os padrinhos ou as madrinhas, outros familiares, etc., adentrando ao lar sem o efetivo consentimento da coleta de dados pessoais pelos responsáveis legais da criança ou do adolescente.

A depender do grau de sofisticação do produto, maior é a sua extensão de captura de dados pessoais, o que pode muitas vezes ocorrer sem o controle ou até de forma invisível do titular (SILVA; SILVA, 2020).

Com esse livre acesso ao lar e às informações faladas, os smart toys aumentam a expansão do rastro digital da pessoa desde muito pequena, estando essa nova geração exposta desde muito cedo aos riscos inerentes à era digital, o que pode violar o direito fundamental à privacidade das mesmas.

De acordo com pesquisas apresentadas através da campanha Twisted Toys[1] pela fundação 5Rights, que defende os direitos digitais das crianças, 72 milhões de pontos de dados serão coletados em uma criança antes de completar 13 anos; 61% das crianças de 8 a 12 anos foram contatadas por alguém que não conhecem enquanto jogavam; Serviços digitais populares, como Facebook, tem sido usado ​​em casos conhecidos de preparação de crianças para fins sexuais e tráfico de drogas; 29% das crianças forneceram seus dados pessoais a pessoas que conheceram online, incluindo seu número de telefone celular e endereço residencial; 73% dos jovens não lêem os termos e condições de qualquer plataforma que utilizam; 12% das crianças gastaram dinheiro acidentalmente em compras no aplicativo; entre outras situações alarmantes (5RIGHTS, 2021).

Além dos fatores comuns de violações decorrentes das tecnologias da informação, há a potencialização da possibilidade de dano a direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes em decorrência da coleta desses dados ou imagens se darem em âmbito íntimo, onde as pessoas costumam contar suas intimidades, usar vestimentas de cunho particular, se trocar, etc., ou seja, local que exige ampla proteção. Se há questionamento da segurança dos dados, há insegurança quanto a proteção à privacidade de crianças e adolescentes.

A Convenção sobre os Direitos da Criança,  1989, elaborada pela Organização das Nações Unidas – ONU, considerada o grande marco normativo das crianças de todo o mundo, e ratificada pelo Brasil, dispõe em seu artigo 16 que “nenhuma criança será objeto de interferências arbitrárias ou ilegais em sua vida particular, sua família, seu domicílio ou sua correspondência, nem de atentados ilegais a sua honra e a sua reputação” (BRASIL, 1990b).

Esse artigo da Convenção trata, entre outras situações, sobre a proteção contra a interferência à privacidade da criança e do adolescente e, também, à de sua família (VERONESE, 2019), grantindo o direito à privacidade à infância desde o âmbito internacional. 

A Constituição Federal de 1988, de maneira ampla, protege a privacidade de todas as pessoas como direito fundamental, contemplando a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem, assegurando o direito à indenização por dano material ou moral decorrente de sua violação. Além do mais, determina que a casa é asilo inviolável do indivíduo (BRASIL, 1988).

Protegendo particularizadamente o grupo das crianças e dos adolescentes, a Constituição Federal garantiu o direito ao respeito e à dignidade, não se restringindo somente ao direito à privacidade. Nesse sentido, o Estatuto da Criança e do Adolescente,  delinendo as diretrizes desses direitos ao respeito e à dignidade, trouxe a salvaguarda do direito à integridade física, psíquica e moral, protegendo-os assim de qualquer forma de ofensa. Dentro do direito à integridade moral é que se encontra os desdobramento da proteção à privacidade de crianças e adolescentes, contemplando a imagem, o nome, os acontecimentos em sua vida e até a sua voz (VERONESE, 2019).

Crianças e adolescentes são sujeitos de direitos e o respeito aos seus direitos de personalidade – que inclui a privacidade – deve ser levado à tona em quaisquer medidas, inclusive as que parecem favoráveis à infância, para que não tenham mascaradas em si práticas menoristas, que acabam por encobrir a condição de sujeitos de direitos (SILVA; SILVA, 2021). Independentemente de quem coleta esses dados, seja de instituições do âmbito público ou privado, por tratar-se de dados tão sensíveis, pois relativos às crianças e adolescentes, devem levar em consideração o seu melhor interesse e tê-las como prioridade absoluta.

Os dados coletados pelo internet of toys precisam obedecer princípios como o da finalidade, adequação, necessidade, qualidade dos dados, segurança, entre outros (BRASIL, 2018), não podendo essa captação ir além dessas diretrizes, sob pena de violação do direito à privacidade das crianças e adolescentes, bem como das demais pessoas envolvidas no âmbiente familiar.

Os smart toys, quando não utilizados sob os princípios acima destacados, bem como quando o seu uso gera dados de crianças e adolescentes que não levem em consideração o seu melhor interesse, faz com que antigas práticas menoristas ressurjam, vez que as empresas de tecnologia se aproveitam dos dados infantis, usando-os como objetos para seus fins lucrativos.

Importante frisar que, mesmo quando bem utilizados pelas instituições criadoras dos smarts toys, a invasão a esses dados podem advir, por exemplo, de ciberataques, explorando ainda mais a vulnerabilidade dos mesmos. Diversas situações podem ser levantadas para esses casos, como: invasores podem utilizar do recurso como forma de trocar diálogos escritos ou falados com as crianças e adolescentes sem a vigilância dos pais ou responsáveis; a conexão do brinquado via bluetooth ou wi-fi pode trazer um espião mal intencionado para dentro do lar, principalmente no quarto da criança ou do adolescente, enviando seus dados e imagens sem consentimento. É possível, também, que a situação seja aproveitada para uso de publicidade infantil abusiva (LEAL, 2017), induzindo crianças e adolescentes ao consumo incontrolado de outros objetos ou serviços.

Excluir as crianças e adolescentes do uso das tecnologias ou da “internet das coisas”, o que inclui os smart toys, consideramos que não mais seja mais possível. As gerações atuais são nativas digitais, já nascidas em meio a esses produtos e serviços, sendo inerentes ao seu crescimento. Sem poder separá-los totalmente, deve a família, a sociedade e o Estado, então, respeitarem os direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes, bem como as regras da proteção de dados, visando proteção integral.

O Estatuto da Criança e do Adolescente foi promulgado em 1990, antes de toda revolução tecnologica surgir, assim como a Convenção sobre os Direitos da Criança, de 1989, e a própria Constituição Federal, de 1988, não tendo abordado, ainda, as diretrizes relativas a “internet das coisas” à infância e adolescência.

Contudo, as diretrizes basicas para qualquer eventual possibilidade de desrespeito aos direitos fundamentais  de crianças e adolescentes estão presentes nessas normativas especiais. O artigo 70, do Estatuto, determina que é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação aos direitos da criança e do adolescente (BRASIL, 1990). Nesse sentido, a prevenção é mecanismo de não violação, respeitando primordialmente a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoa em desenvolvimento e, ainda, ninguém poderia se eximir do dever de previnir que a violação de direitos ocorra (VERONESE; ZANETTE, 2019).

 

Notas e Referências

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm Acesso em: 03 agos. 2021.

BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990a. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8069Compilado.htm. Acesso em: 28 jul. 2021.

BRASIL. Decreto n. 99.710, de 21 de novembro de 1990b. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d99710.htm. Acesso em: 28 jul. 2021.

BRASIL. Lei nº. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm Acesso em: 05 agos. 2021.

MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018.

LEAL, Livia Teixeira. Internet of toys: os brinquedos conectados à internet e o direito da criança e do adolescente. Revista Brasileira de Direito Civil – RBDCivil. Belo Horizonte, vol. 12, p. 175-187, abr./jun. 2017. Disponível em: https://rbdcivil.ibdcivil.org.br/rbdc/article/view/38 Acesso em: 28 jul. 2021.

SILVA, Rosane Leal da; SILVA, Fernanda dos Santos Rodrigues. Infância vigiada: o reconhecimento facial de crianças e adolescentes e os riscos de violação aos dados pessoais. In: VERONESE, Josiane Rose Petry (autora e organizadora). Estatudo da Criança e do Adolescente - 30 anos: grandes temas, grandes desafios. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020.

VERONESE, Josiane Rose Petry. Convenção sobre os Direitos da Criança 30 anos: sua incidência no Estatuto da Criança e do Adolescente. Salvador: JusPodvim, 2019.

VERONESE, Josiane Rose Petry; ZANETTE, Sandra Muriel Zadróski. A prevenção como mecanismo de não violação. In: VERONESE, Josiane Rose Petry (autora e organizadora). Direito da Criança e do Adolescente: novo curso – novos temas, 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

5RIGHTS. Twisted Toys, 2021. Página inicial. Disponível em: https://twisted-toys.com/ Acesso em: 05 agos. 2021.

[1] Sobre a conscientização do uso de dados de crianças em todo o mundo.

 

Imagem Ilustrativa do Post: twitter // Foto de: LoboStudioHamburg // Sem alterações

Disponível em: https://pixabay.com/photos/twitter-facebook-together-292994/

Licença de uso: https://pixabay.com/en/service/terms/#usage

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura