Por Cristiane Bastos Scorsato, Cristiane Silva e Roberta Oliveira Lima - 31/08/2016
1.Introdução
O modelo econômico capitalista está estruturado na alta produção de mercadorias de consumo, fazendo com que, de maneira ampla, atinja todos os tipos de consumidores. Para Marx (1975 apud STAHEL; CAVALCANTI, 1995, p.107)[1] “a base de funcionamento do capitalismo como um todo está assim dada pela busca de expansão do capital, obtida na produção de mercadorias cujo valor de troca suplante o despendido na produção”.
Desta forma, o capitalismo busca lucro, fazendo com que a circulação do dinheiro propague-se por grandes extensões, sem observar os danos ambientais decorrentes desse modelo de produção.
Nesse viés, o consumidor é peça-chave, pois é ele quem dará andamento a essa estratégia, assim ele é levado a consumir vorazmente, sendo isso imposto em sua conduta diariamente pelos meios de comunicação.
Denota-se que o comportamento consumista gera devastação dos recursos naturais, pois muita matéria prima é utilizada na produção dos bens de consumo, gerando também inúmeros resíduos sólidos. Observa-se que esse modelo de sociedade não existe desde sempre, o excesso de consumo é algo recente, é algo criado.
Constata-se que estamos vivendo a febre do consumo, patrocinada por medidas de facilitação e de incentivo tanto por parte do governo, através da redução de impostos sobre produtos industrializados (IPI), por exemplo, como pelas empresas privadas, mediante a facilitação de crédito e de propagandas que alardeiam e incentivam a emergência social do ter, elemento chave do consumismo (VIEIRA; GIUSTI, 2013)[2].
Neste norte, as questões referentes ao excesso de consumo foram analisadas no presente artigo, juntamente com os motivos que levam tal modelo de sociedade a imperar de forma tão agressiva. Analisamos, também, o excesso de resíduos sólidos, que o sistema produtivo acaba produzindo e despejando no meio ambiente, isto em função das necessidades artificiais que os consumidores buscam preencher. Por fim, abordou-se a justiça ambiental como elemento norteador de um novo paradigma socioambiental, diante de realidades eivadas pelo hiperconsumo e pelo excesso de resíduos no século XXI.
2. A insustentabilidade do ter: obsolescência e hiperconsumo
O sistema capitalista tem sua origem nos primeiros séculos da Baixa Idade Média, na Europa, marcado pelas mudanças nas propriedades feudais, que passam de propriedades autossuficientes para serem arrendadas, surgindo, assim, a remuneração com salário para mão de obra.
Esse sistema capitalista foi se aperfeiçoando com o tempo, criando inúmeras estratégias para manter-se. Nota-se que tem como parâmetro de sucesso econômico a grande produção de bens de consumo, incentivado pelo discurso do marketing em torno da mercadoria, envolvendo promessas de felicidade, enquanto bem-estar, entre outros atributos. Tal busca revela uma percepção de sucesso equivocada, pois essa abundância de cada vez mais e mais, sem consciência dos limites ambientais e da inter-relação com a vida humana, traz prejuízos com consequências desastrosas para todos.
Foi na década de 1990 que aumentou a percepção do impacto ambiental causado pelo consumismo, abrindo espaço para um discurso sobre ambientalismo internacional. Começou-se a observar que o estilo de vida e os padrões das sociedades afluentes eram as principais causas dos problemas ambientais (PORTILHO, 2010)[3].
O comportamento consumista gera extração dos recursos naturais de forma agressiva, pois muita matéria-prima é retirada para a confecção dos bens de consumo.
Neste jaez, Milaré (2013)[4] ressalta que a forma distorcida com que o consumo é apresentado, nos seus mais diversos graus e modalidades, tem provocado sérios problemas à sociedade, impulsionando a população ao consumismo exacerbado, em que o ter é mais importante do que o precisar. Com isso, perde-se a capacidade de autocrítica, de pensar sobre as consequências que envolvem esse possuir desmedido; e que essa questão deve ser analisada levando-se em conta os aspectos cultural, social, econômico e psicológico, dada a sua interferência no modo de ser das pessoas.
Nota-se que os atuais hábitos de consumo não estiveram sempre presentes no modo de vida das sociedades passadas, pois esta forma de consumo irracional é algo recente, um perfil da sociedade contemporânea e insustentável de ser mantido em um futuro próximo.
Nesse momento, vale lembrar o conceito de desenvolvimento sustentável, cunhado no ano de 1987 pela Comissão Mundial sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento das Nações Unidas, no Relatório Brundtland. Referido documento, intitulado Nosso Futuro Comum (Our Common Future), ao conceituar desenvolvimento sustentável conjuga desenvolvimento, proteção ambiental e justiça social, esta última compreendida como satisfação das necessidades humanas básicas, conforme se observa abaixo:
O conceito de desenvolvimento sustentável é aquele que satisfaz as necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de satisfazer suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: o conceito de necessidades, sobretudo as necessidades essenciais dos pobres do mundo, que devem receber a máxima prioridade; a noção das limitações que o estágio da tecnologia e da organização social impõe ao meio ambiente, impedindo-o de atender as necessidades presentes e futuras.[5]
Infere-se do conteúdo acima exposto que o núcleo essencial do conceito de desenvolvimento sustentável possui ligação umbilical com a concepção de justiça ambiental que será tratada mais adiante no presente artigo. A seguir versa-se sobre o hiperconsumo e a obsolescência como sustentáculos do capitalismo.
2.1 Hiperconsumo e obsolescência como sustentáculos do sistema capitalista
A sociedade está sempre em transformação, tendo diferentes paradigmas para cada época. Desta forma, é possível analisar diferentes modelos de sociedade, como na época da industrialização em que a sociedade era baseada na ideia do homem-máquina. Na atualidade, tem-se a ideia de transformar a máquina em homem, ficando as novas tecnologias em busca da perfeição, sendo possível produzir máquinas pensantes.
Existem vários nomes dados para essa nova fase da sociedade. Para Bauman (2008)[6] seria “sociedade pós-moderna” ou “modernidade líquida”, para Giddens (1991)[7] “modernidade tardia”, “modernidade reflexiva” e “sociedade contemporânea”, para Beck (2010)[8] “sociedade do risco”.
Anteriormente, na sociedade industrial, o foco era a crise da sociedade em relação ao trabalho, tendo uma importância significativa para esta a questão a categoria do trabalho remunerado.
Anos depois, o trabalho acaba perdendo espaço, deixando de ser o cerne para a busca da identificação social, da proteção e da inserção, passando para a fase da sociedade pós-industrial, na qual o consumo assume e dita as regras da sociedade.
Corroborando, BAUDRILLARD (1995, apud PORTILHO, 2010, p. 72)[9] leciona que:
Durante o século XX, os muitos mecanismos através dos quais o capitalismo que ocultou seu caráter explorador têm mudado seu centro de gravidade, do campo da produção para o do consumo. O consumo tem substituído a produção como o principal reino da atividade social, no mundo crescentemente fragmentando das sociedades ditas ‘pós-modernas’.
Dessa forma, na sociedade líquida ou sociedade contemporânea, formada por indivíduos consumidores, muitas vezes despidos de consciência crítica, a força de trabalho humano é equiparada ao trabalho das máquinas, aparecendo como meio para atingir um fim, que é a produção.
Em outro viés, denota-se que o trabalho humano, visando à produção de bens de consumo, teve outro significado daquele labor do homem primitivo, no qual apenas produzia para suprir suas necessidades básicas, pois a partir desse trabalho mais complexo o homem consegue modificar a natureza e produzir coisas.
Lemos (2014)[10]. ressalta que com o surgimento do trabalho como atividade humana vinculada a uma relação de meio e fim, transforma o que era apenas bem de consumo em bem de uso, possuindo este uma utilidade mais permanente. Dessa forma, é do surgimento do trabalho que se percebe as mudanças na natureza e a tendência humana de dominá-la.
O consumo é um dos pilares dessa sociedade contemporânea, tanto que muitos autores, como Jean Baudrillard (1995) e Zigmund Bauman (2008), definiam-na como sociedade de consumo. Para Bauman (2008)[11], sociedade de consumo é muito mais ampla que apenas consumo, pois este é algo inerente à necessidade do ser humano para manter-se vivo.
Constata-se que a humanidade sempre esteve ligada ao consumo, mas essa relação não era algo danoso e prejudicial, pois o homem da Antiguidade consumia para sua alimentação e necessidades básicas, e não utilizava o consumo como o homem da sociedade contemporânea, o qual compra como forma de diminuir suas tristezas e frustrações.
Toda história da humanidade tem o consumo e suas atividades afins sempre presentes. Com o decorrer dos anos, contudo, em função da cultura e da imaginação do homem, essa atividade foi ficando complexa.
Nas sociedades antigas, o padrão de consumo era similar ao das sociedades medievais, onde os bens que eram comercializados eram produtos simples. Em função da precariedade da época, também as relações de troca acabavam sendo limitadas (LEMOS, 2014)[12]
Uma revolução de grande impacto foi a revolução consumista, trazendo a ideia do consumismo como forma de felicidade, fazendo com que comprar fosse a principal atividade de prazer na vida das pessoas. Conforme Bauman (2008)[13], o consumismo chega quando o consumo assume o papel-chave que na sociedade de produtores era exercido pelo trabalho. O consumo é uma característica dos seres humanos como indivíduos e o consumismo é um atributo da sociedade.
Em função das modificações advindas com o tempo, o consumismo aparece como uma solução benéfica para aumento do bem-estar da sociedade, fazendo com que a sociedade de produtores seja substituída pela sociedade de consumidores.
Nesse viés, foi necessário demonstrar para a sociedade de produtores que o primordial para se atingir a plenitude da felicidade era o consumo, quanto mais bens, mais coisas supérfluas fossem adquiridos, mais próximo se estaria da verdadeira felicidade.
Com a evolução da sociedade moderna para a sociedade contemporânea, o sistema de produção também ficou mais agressivo. Hoje, a sociedade está baseada em três pilares: excesso, efemeridade e desperdício. Pilares estes que tornam o modelo social e de consumo ora vivido insustentável, uma vez que se projetam dentro de um padrão econômico de consumo infinito que ocorre, todavia, dentro de um planeta com recursos finitos.
Nota-se que o homem contemporâneo já não tem limites, pois o mesmo consome em excesso, alimenta-se em excesso, trabalha de forma demasiada, ingere medicamentos de forma irresponsável e vive em uma constante angústia. Percebe-se que o excesso de consumo e de estímulos ao consumo que circunda uma considerável parte da sociedade contemporânea, reflete-se em um estilo de vida insustentável a longo prazo e que é catalisador de uma série de distúrbios emocionais e também financeiros.
Vivencia-se a falsa realidade de que tudo é rápido e leve, ao alcance de “um clique”, de alguns dígitos de um cartão de crédito, quando, então, obtêm-se a mais variada gama de produtos e serviços que enchem as casas, os escritórios e as vidas de muitos, sem, contudo, preencher o vazio existencial que crescentemente os assola.
Há, inclusive, estudos que alertam para a relação diretamente proporcional entre consumo e depressão, mostrando que quanto mais a humanidade consome, mas triste tem ficado, como se pode ver no vídeo “a história das coisas”[14]
No mesmo sentido, além dessa sociedade viver atrelada ao consumo e infeliz, a mesma possui um sistema econômico nefasto, o qual criou a estratégia da obsolescência planejada, em que o fabricante, de forma intencional, programa uma vida curta para os seus produtos, com o propósito de gerar maior lucratividade, aumento de demanda e de produção.
A obsolescência de qualidade pode ser inserida no momento da confecção do bem, quando é instalado um dispositivo que faz com que tal produto pare de funcionar depois de um tempo determinado, ou o produto é feito com material frágil, que após algumas vezes de uso, é danificado. No caso da obsolescência de desejabilidade, ou psicológica, somente sua aparência é modificada, criando frustrações nos consumidores, demonstrando que seus antigos bens estão ultrapassados. E, na de função, é lançada uma tecnologia superior, desqualificando os produtos já adquiridos.
Nesse viés, a publicidade aparece como aliada da obsolescência, pois busca atingir o desejo subjetivo dos compradores, criando necessidades que antes não existiam, tendo como objetivo principal criar um mal-estar permanente, para que, assim, se busque nos bens supérfluos a satisfação plena, mas nunca alcançada.
A propaganda é utilizada como instrumento que busca atingir o maior número de potenciais compradores. A mídia faz o papel de intensificar o desejo de aquisição entre consumidores, e estes acabam adquirindo produtos, muitas vezes sem necessidade, trocando equipamentos existentes e em bom uso por novos e, assim, consumindo cada vez mais, sem sequer se preocuparem com a geração de lixo e muito menos com os problemas que a produção pode causar ao meio ambiente (MAGERA, 2012)[15].
Tal modo de vida capitalista na sociedade contemporânea traz às pessoas a ideia de que comprar é uma atividade essencial e prazerosa, excluindo quem estiver fora dos padrões do consumo:
o capitalismo procedeu à ‘proletarização dos consumidores’. Para absorver a superprodução, os industriais desenvolveram técnicas de marketing que visam captar o desejo dos indivíduos a fim de incitá-los a comprar sempre mais (DUFOUR, 2008, p. 36)[16].
Para esse modelo de vida prosperar, tem-se a mídia como aliada. Com ela, é possível usar várias estratégias para atingir a fragilidade do homem. Trabalha a ideia de que adquirindo determinado objeto será possível alcançar a plenitude da felicidade, ou que, a falta dele trará exclusão social. O medo da exclusão e da solidão faz com que o homem siga um padrão imposto pela sociedade, em que todos seguem o que está na moda.
As consequências desse consumismo indiscriminado são graves. Verifica-se que muito se produz, muito se consome, e, além de utilizar os recursos naturais para a confecção das mercadorias, depois, no momento do descarte, é novamente o meio ambiente que sofre os danos, pois muito lixo se produz.
O meio ambiente não é capaz de absorver todos os resíduos deixados pela produção dos bens de consumo que se gera atualmente. Muito se tem confeccionado e desperdiçado, não ocorrendo uma reflexão sobre as questões ambientais.
A ideia de que desenvolvimento econômico estava ligado a desperdício de bens materiais e ao excesso de produção era tão intensa que as empresas nos Estados Unidos focaram em maneiras de levar o consumidor às lojas, ou pelo simples prazer de comprar ou pelo fato que o produto novo era mais em conta do que o produto velho ir para o conserto.
Conforme Leonard (2011)[17], num primeiro momento, criar no ser humano a necessidade de ter mais de um exemplar de cada produto era o primordial. Mas, o que fazer depois que cada consumidor tivesse preenchido seu estoque? Quando a maioria da população já tivesse adquirido sua segunda casa e seu segundo carro? Certo é que, em algum momento, todos teriam os produtos que desejassem e em quantidade mais do que suficiente, sem necessidade de novas aquisições, e com isso, os bens encalhariam nas fábricas. Isso significa que haveria um limite para o consumo. Contra isso é que foi criada uma nova estratégia para manter os clientes comprando, a da obsolescência planejada, segundo a qual alguns bens devem ser programados para o lixo.
Para Packard (1965)[18], o povo americano, ao longo de tempo, teve essa ideia de obsolescência planejada inserida como se fosse algo favorável à economia. Não parecia algo confortável o fato de possuir-se o mesmo automóvel durante vinte ou trinta anos.
No mesmo sentido, ficava demonstrado que um produto com muita durabilidade não era interessante para o desenvolvimento do país, pois não havendo a necessidade de trocá-lo, ou desperdiçá-lo, não estaria contribuindo para o crescimento das indústrias.
2.1.1 Obsolescência de desejabilidade: entre a moda e a mídia
Lipovetsky (2009)[19] traz a generalização do processo da moda como principal pilar da sociedade de consumo. Também a obsolescência, a sedução e a diversificação são as estruturas dessa sociedade, a qual conduz toda produção de mercadorias sob esses três enfoques. Na metade do século XIX, a lógica da aparência e do desperdício espalhou-se por todos os lados, atingindo o modo de confecção de bens de consumo e de serviços disponibilizados.
No mesmo sentido, a efemeridade, que traz como conceito algo de curta duração, temporário, é outra característica da sociedade de consumo, pois a produção está voltada a um mercado insatisfeito, sempre em busca de mais objetos com renovação premeditada, sendo indispensável oferecer ao consumidor uma infinidade de mercadorias inúteis, descartáveis. As empresas precisam criar necessidades novas em seus compradores, demonstrando produtos que as satisfaçam perfeitamente, pois somente assim irá auferir lucro e se manter perante a concorrência.
Outra questão que cabe trazer a tona é o automatismo dos objetos, hoje em dia tudo é elétrico: faca elétrica, panela elétrica, escova elétrica. O consumidor acaba se deslumbrando com produtos que façam o serviço sozinho. Nota-se uma patologia do funcional, um sistema econômico embasado no desperdício, na futilidade, não mais buscando a funcionalidade, mas sim a ornamentação da mercadoria.
Ainda, a moda aparece como processo que despadroniza os bens de consumo, trazendo inúmeros modelos - das mais variadas linhas, cores, versões, séries limitadas -, e design diferenciados ao consumidor, mas que em sua funcionalidade nada se diferenciam.
O surgimento da moda foi uma das alavancas para estimular o consumo, pois, com ela, a publicidade consegue atingir o desejo dos consumidores em adquirir novos produtos, usando propagandas que demonstram um mundo mágico ao redor do produto, sem o qual não é possível ser feliz.
Nesse viés, observa-se que a obsolescência planejada de qualidade, em que as mercadorias acabam-se deteriorando prematuramente, pelo fato de serem confeccionadas com materiais de baixa qualidade, era insuficiente. Dessa maneira, era preciso que a vontade de descartar as coisas partisse do próprio consumidor. Assim, a obsolescência de desejabilidade vem como uma das principais estratégias para fomentar o consumo, pois com ela o produto acaba-se desgastando na mente do consumidor.
Nesse contexto, mesmo que a mercadoria estivesse em perfeitas condições, ela seria substituída, pois, conforme Packard (1965, p. 63)[20], “o estilo pode destruir completamente o valor de bens ainda que sua utilidade permaneça inalterada”.
Seria muito fácil aplicar essa estratégia da obsolescência de desejabilidade com a obsolescência de função, em que novas tecnologias são aplicadas no produto, deixando-o muito mais satisfatório, consequentemente, tornando a versão antiga ultrapassada. Ocorre que, às vezes, não se tem nenhuma tecnologia para desenvolver outra versão, aí é preciso instigar a venda do bem apenas pelo fato de ter uma aparência moderna. Para isso, as empresas utilizam a publicidade e a propaganda, criando uma obsolescência psicológica.
Acentua Packard (1965)[21] que esse valor dado à aparência das mercadorias, fez com que os consumidores dessem grande importância ao estilo e não à funcionalidade ou à qualidade do bem, fazendo com que desenhistas introduzissem cada vez mais ornamentações nos desenhos dos produtos, deixando outras questões mais relevantes de lado, como durabilidade e eficácia.
A manipulação das indústrias é nítida, e, no caso da criação de estratégias para alavancar a moda feminina, foi mais fácil ainda, pois as mulheres eram alvos mais suscetíveis às influências externas que a mídia empregava. Assim, com o objetivo de usar a obsolescência de desejabilidade nas roupas, a cada estação, entra uma nova cor, um novo modelo de salto, muda o comprimento das saias, muda o tamanho da bolsa, muda o formato do bico do sapato, e assim inúmeras diferenças insignificantes que deixam o consumidor propenso a ir as lojas adquirir o lançamento.
As grandes empresas podem determinar a próxima moda, usando a mídia e utilizando estratégias que induzam o consumidor de que referida tendência está em alta.
Outra questão que as empresas estão sempre atentas, é que precisam de propagandas que realmente atinjam o consumidor. Em razão disso é que “os publicitários atuam em conjunto com psicólogos, neurocientistas e consumidores bem-informados; objetivo principal: causar-nos mal-estar com o que temos ou com o que nos falta, e estimular o desejo de comprar para nos sentirmos melhor” (LEONARD, 2011, p. 177)[22].
Corroborando, Giron; Pereira (2013, p. 19)[23] lecionam que:
A publicidade é a principal fonte de persuasão à mão do fornecedor para convencer as pessoas a adquirir seus produtos ou usufruir seus serviços. Ele, por meio de estudos e análises das percepções dos seres humanos, retira dessas constatações todos os elementos necessários para saber quais são suas preferências e predisposições, para que, assim, possa utilizar disso para vender mais.
Nesse mesmo sentido, Dufour (2008)[24] destaca que numerosos pesquisadores têm o trabalho de identificar os sentimentos dos consumidores, com a finalidade de descobrir e de antecipar suas necessidades. São analisados vários grupos de pessoas: velhos, jovens, ricos, pobres, para encontrar no mercado produtos que lhes correspondam. Ninguém fica fora dos estudos, todos são compradores em potencial.
Ademais, o declínio da religião fez com que o mercado se tornasse ainda mais forte. É possível notar que os espaços livres deixados pela religião foram preenchidos pelo consumo: antes se ia rezar; hoje se vai comprar. Antes, lugares onde se reuniam famílias para louvar a Deus, como as igrejas, foram trocados por shoppings centers, onde se busca apenas o consumo. A única exigência para o mercado continuar determinado as regras é que sejam produzidos bens em larga escala, com custos extremamente baixos.
Os indivíduos da sociedade contemporânea estão tão alienados, que eles não têm mais consciência do que realmente querem ou desejam,
eles se comportam de forma irrefletida, apenas vivem para consumir, sem pensar no que consideram ser seu objetivo de vida ou o que acreditam ser os meios corretos de alcançá-los. Eles ignoram o que realmente buscam, o que são, o que desejam, o que é relevante ou irrelevante para suas vidas (VIEIRA; GIUSTI, 2013, p. 51)[25].
Assim, a sociedade de consumo determina que o homem será reconhecido pelas coisas que possui, não importando quaisquer outros fatores. Outro viés é que o homem da atualidade, o que vive na sociedade consumo, está propenso a várias doenças mentais, pois a falta de limites gera vários tipos de compulsões.
Conforme Vieira e Giusti (2013, p.52)[26], as frustações e as ansiedades geram compulsões, pois é uma forma de compensação, “numa sociedade cujas relações humanas tornaram-se reificadas, cuja vida do homem é sem sentido e fragmentada, o resultado são as compulsões”.
3. Resíduos sólidos e hiperconsumo
Com o desenvolvimento tecnológico e científico, sucedeu uma melhora significativa na qualidade de vida da população, proporcionando maior bem-estar e grande diminuição nas enfermidades, as quais eram muito comuns nos séculos passados e responsáveis pela maioria dos óbitos. Assim, como consequência dessas melhorias, adveio crescimento do número de pessoas que habitam o planeta.
De acordo com Magera (2013, p. 50)[27], no ano de 1800, existia 1 bilhão de pessoas habitando o planeta, e no ano de 2010 passou-se para 6,7 bilhões, obtendo um crescimento de 570% em 200 anos, enquanto a humanidade demorou mais de 200 mil anos para atingir o número de 1 bilhão de habitantes.
Ocorre que com esse aumento populacional, vieram consequências desastrosas ao meio ambiente, pois, com a grande quantidade de habitantes no planeta, tudo mais se requer, como: mais alimentos, mais trabalhos, mais moradias, assim, extraindo-se cada vez mais da natureza e gerando ainda mais resíduos.
Também, em função do modelo de sociedade capitalista, o que rege esse sistema é a produção e vendas em grande escala, pois para manter este Estado do bem-estar (Welfare State) é preciso fazer com que a economia esteja sempre aquecida.
Nesse viés, foi visto que a obsolescência programada é uma das formas criadas para tal economia sustentar-se, trazendo como consequência inúmeras toneladas de resíduos, incluindo lixos eletrônicos, que na maioria das vezes são descartados de maneira errada.
Conforme Magera (2013, p. 52)[28], “essa nova ordem limita a reciclagem de lixo e a logística reversa como únicas alternativas momentâneas às questões da falta de recursos naturais e do excesso de lixo no planeta, acompanhadas da crescente preocupação da sociedade contemporânea com as questões ambientais”.
Também existe a necessidade de criação de políticas públicas que gerenciem as formas de descartar esses resíduos, da maneira que não sejam tão prejudiciais ao meio ambiente, como a Política Nacional de Resíduos Sólidos, sendo a reciclagem do lixo e a logística reversa de suma importância para a questão ambiental.
Diante do cenário acima mencionado emerge a discussão sobre Justiça Ambiental, tratada no tópico a seguir.
4.Justiça ambiental como novo paradigma socioambiental
É notório que a desigualdade social acaba por expor de forma desigual diferentes parcelas da sociedade aos riscos da poluição e degradação ambiental. A justiça ambiental busca apresentar-se como novo paradigma socioambiental, através da retomada de princípios éticos de justiça social e de equidade ambiental na era do hiperconsumo.
De acordo com Acselrad, Mello e Bezerra (2009)[29] as pesquisas que buscam examinar, na forma de indicadores, a coincidência entre áreas de degradação ambiental e locais de moradia de população despossuídas ainda são recentes no Brasil. Tal fato, segundo os autores, deve-se ao pensamento ecológico hegemônico, bem como parte da pesquisa acadêmica, que não opera com a articulação entre condições ambientais e sociais.
Leonardo Boff (2016) assevera no mesmo sentido de Acselrad, Mello e Bezerra (2009), ao mencionar que:
A responsabilidade social é insuficiente, pois ela não inclui o ambiental. São poucos os que perceberam a relação do social com o ambiental. Ela é intrínseca. Todas as empresas e cada um de nós vivemos no chão, não nas nuvens: respiramos, comemos, bebemos, pisamos os solos, estamos expostos à mudanças dos climas, mergulhados na natureza com sua biodiversidade, somos habitados por bilhões de bactérias e outros microorganismos. Quer dizer, estamos dentro da natureza e somos parte dela. Ela pode viver sem nós como o fez por bilhões de anos. Nós não podemos viver sem ela. Portanto, o social sem o ambiental é irreal. Ambos vêm sempre juntos.[30]
Continuando com Acselrad, Mello e Bezerra (2009)[31], observa-se que a compreensão de que o risco ambiental é democrático, ou seja, que atinge a todos de forma equânime é de uma percepção problemática visto que, semelhantemente às consequências relacionadas para a perspectiva antropocêntrica, ela viabiliza o isolamento da dimensão ambiental em relação às demais dimensões, excluindo do debate os cenários em que se produzem e nos quais são sentidos os problemas ambientais.
Além disso, segundo Acselrad (2010)[32], ao identificar a todos como igualmente afetados, também induz a compreensão de que todos se apresentam homogeneamente como responsáveis pela produção dessa realidade.
Acselrad, Mello e Bezerra (2009)[33] alertam que esse conjunto de consequências decorrentes da predominância da perspectiva utilitária e mercadológica a respeito da questão ambiental promove processos de desigualdade ambiental.
No que tange a uma conceituação, o Movimento de Justiça Ambiental, assim define justiça ambiental:
É a condição de existência social configurada através do tratamento justo e do envolvimento significativo de todas as pessoas, independentemente de sua raça, cor ou renda, no que diz respeito à elaboração, desenvolvimento, implementação e aplicação de políticas, leis e regulações ambientais. Por tratamento justo entenda-se que nenhum grupo de pessoas, incluindo-se aí grupos étnicos, raciais ou de classe, deva suportar uma parcela desproporcional das consequências ambientais negativas resultantes da operação de empreendimentos industriais, comerciais e municipais, bem como das consequências resultantes da ausência ou omissão destas políticas (BULLARD, 1994, p. 16).[34]
Vale ressaltar que a noção de Justiça Ambiental implica em um direito a um meio ambiente seguro, sadio e produtivo para toda a comunidade, onde o “meio ambiente” é considerado em sua totalidade, o que inclui as dimensões ecológicas, físicas construídas, sociais, políticas, estéticas e econômicas (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009)[35]. Assinala-se com esse entendimento que existe uma forte relação entre a degradação ambiental e a injustiça social
Nesse momento é válido lembrar do famoso “Memorando Summers”, que em 1991 trazia a seguinte informação, que apesar de restrita, acabou “vazando” para o conhecimento público. O teor do memorando dizia em um de seus trechos: “Cá entre nós, o Banco Mundial não deveria incentivar mais a migração de indústrias poluentes para os países menos desenvolvidos?” (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009, p. 07).[36]
Diante de problemas complexos como o hiperconsumo, obsolescência e resíduos em demasia, a solução simplista e ao mesmo tempo monstruosa externada no Memorando Summers de alocar as indústrias poluentes em países menos desenvolvidos demonstra que é possível a existência de desigualdade em termos de proteção ambiental no planeta, pois conforme indica o referido Memorando, é para as regiões pobres que se têm dirigido os empreendimentos econômicos mais danosos em termos ambientais.
Da mesma forma, costuma-se observar que nas áreas de maior privação social e econômica e/ou habitadas por grupos sociais e/ou étnicos sem acesso às esferas decisórias do Estado e do Mercado concentram-se em maior dimensão a falta de recursos em infraestrutura de saneamento, a ausência de políticas de controle dos depósitos de lixo, a moradia de risco, a desertificação, entre outros componentes que concorrem para as más condições ambientais de vida e trabalho.[37]
A respeito do conteúdo ofertado pelo autor do memorando do Banco Mundial, Galeano observou que o mesmo não era uma espécie de “poeta surrealista, mas sim um autor da exitosa corrente do realismo capitalista” (GALEANO, 2009, p. 08).[38]
Um pouco antes, em 1990, o Ministro do Meio Ambiente da Colômbia declararia: “é preciso colocar a natureza fora do conflito social” (ACSELRAD; MELLO; BEZERRA, 2009, p. 91).[39]
Na contramão dessa visão mercadológica apresenta-se a proposta propugnada pela justiça ambiental. Neste sentido A. A. Rossotto Ioris (2009, p. 01)[40] menciona a importância de não se perder de vista a função protetiva e preventiva presente em princípios da justiça ambiental, afirmando:
Se é inegável que as questões do meio ambiente atraem uma atenção cada vez maior nos dias de hoje, falta ainda reconhecer a centralidade dos princípios de justiça ambiental para a proteção ecológica, a atividade econômica ou mesmo o futuro da democracia brasileira. A importância da noção de justiça ambiental decorre da constatação de que a crescente escassez de recursos naturais e de que a desestabilização dos ecossistemas afetam de modo desigual, e muitas vezes injusto, diferentes grupos sociais ou áreas geográficas.
Depreende-se do todo acima exposto que assim como o consumo é desigual e afeta desigualmente diferentes parcelas da população em diferentes partes do planeta, necessário se faz atrelar-se à discussão do hiperconsumo e resíduos a justiça ambiental como elemento norteador e catalisador de um novo paradigma socioambiental, que venha a ser regido por elementos sociais e ambientais de forma equânime e ética.
5.Conclusões articuladas
5.1 Analisando a problemática do hiperconsumo e da obsolescência é evidente os danos advindos dessa estratégia de consumo, pois o objetivo principal do modelo de produção que impera na atualidade é o excesso de bens supérfluos.
5.2 Muitos recursos naturais não conseguem se regenerar em função da voracidade com que são extraídos, assim como não existe ainda uma gestão adequada de resíduos e o planeta já demonstra sinais de esgotamento.
5.3 A crise do hiperconsumo, aqui entendido como uma ideologia consumeirista, também tem profundas relações com a crise socioambiental contemporânea, pois o objetivo maior do homem, que seria a aquisição de bens materiais, é seu maior erro.
5.4 Diante do cenário do hiperconsumo e resíduos emergem conflitos que devem ser analisados sob a ótica da justiça ambiental que surge como novo paradigma socioambiental a ser conhecido e aplicado.
Notas e Referências:
[1] CAVALCANTI, Clóvis (Org.). Desenvolvimento e natureza: estudos para uma sociedade sustentável. São Paulo: Cortez, 1995.
[2] VIEIRA, Ricardo Stanziola; GIUSTI, Karina Gomes. Consumo, desenvolvimento e psicanálise: qual pode (deve) ser o papel do direito da sustentabilidade em tempos de crise socioambiental global? In: PILAU SOBRINHO, LitonLanes; SILVA, Rogério (Org.). Balcão do consumidor: do consumo ao desenvolvimento sustentável. Passo Fundo: UPF; Itajaí: UNIVALI, 2013.
[3] PORTILHO, Fátima. Sustentabilidade ambiental, consumo e cidadania. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2010.
[4] MILARÉ, Édis. Direito do ambiente. 8 ed. rev. atual. e ref. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013.
[5] COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso Futuro Comum. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1991, p. 46.
[6] BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
[7] GIDDENS, Anthony. As consequências da modernidade. São Paulo: Unesp, 1991.
[8] BECK, Ulrich. Sociedade de risco: rumo a uma outra modernidade. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ed. 34, 2010.
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Artigo originalmente apresentado no Congresso do Instituto O direito por um planeta verde.
. . Cristiane Bastos Scorsato é Advogada. Mestre em Gestão de Políticas Públicas (UNIVALI) e professora universitária. . .
. . Cristiane Silva é Advogada. Mestre em Gestão de Políticas Públicas (UNIVALI). Doutoranda em administração (UNIVALI) e professora universitária. . .
. . Roberta Oliveira Lima é Advogada, Doutoranda em Sociologia e Direito pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Mestre em Gestão de Políticas Públicas (UNIVALI). Professora Universitária.. .
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