Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Fernando Albuquerque, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Josiane Petry Veronese
Recentemente acompanhamos com grande entusiasmo a exibição das Olimpíadas, ocorridas em Paris, e dentre tantas histórias de superação dos representantes brasileiros nas mais diversas modalidades, destaca-se a de Flávia Maria de Lima, esportista da modalidade de atletismo e mãe de uma criança de 6 (seis) anos.
Para além das dificuldades inerentes ao desenvolvimento da carreira de atleta, Flávia expôs como um dos principais entraves para sua participação no evento mundial e que, curiosamente, em nada se relacionava ao esporte em si a delicada situação familiar com que se deparou.
Divorciada, mãe de uma única filha e detentora de guarda compartilhada, explicou que passou a sofrer perseguições judiciais por parte de seu ex-marido e genitor da criança a cada competição que disputava em razão das viagens eventualmente realizadas.
As provas são necessárias para obtenção de boa classificação e, portanto, seleção futura para eventos maiores, como as próprias Olimpíadas. Porém, a cada convocação, o processo judicial era alimentado com a informação de que a mãe estaria abandonando a criança.
Este tipo de estratégia não é tão incomum e pode ocorrer nos mais diversos ramos do Direito, sob várias formas[1], como, por exemplo: ofensas, ameaças, o ajuizamento de ações indevidas, falsas alegações, o prolongamento do processo judicial com intuito protelatório e que acarreta mal estar psicológico e maior dispêndio financeiro, entre outros.
O que há em comum nestes comportamentos é a expressão do machismo direcionado à mulher e seu manejo no âmbito processual, camuflando, por vezes, seu caráter de intimidação e que tem sido denominado como litigância abusiva, violência processual ou assédio processual.
Outra definição para o termo, que não é conceituado na lei processual brasileira, pode ser extraída a partir da norma estrangeira aprovada no Estado de Washington, nos Estados Unidos, como sendo o uso de processos judiciais para “controlar, assediar, intimidar, coagir e/ou empobrecer o parceiro abusado” (Washington State Legislature, 2021).
Embora não se confunda com a litigância de má-fé apresentada no art. 80 do CPC/15, por conter um viés de gênero, as condutas apontadas podem coincidir, além das sanções previstas também poderem ser aplicadas. Isto porque a prática da violência processual viola o princípio da boa-fé que se refere ao dever de honestidade e lealdade entre as partes componentes da relação processual.
É possível perceber a existência de concorrência entre os atos de litigância abusiva e as violências patrimonial e, especialmente, a psicológica ambas especificadas na Lei Maria da Penha. Em relação a esta segunda espécie são abrangidas as “condutas omissivas ou comissivas que provoquem danos ao equilíbrio psicoemocional da mulher, privando-a de autoestima e autodeterminação” (Hermann, 2008 apud Ramos, A., 2019, p. 92).
Enfatizando o Direito das Famílias[2], é frequente o envolvimento dos filhos não somente pela discussão relativa à fixação de alimentos ou à definição da guarda, como forma de coerção contra a mulher tal qual verifica-se no caso de Flávia[3].
Em decorrência disto, recai-se em outro tipo de violência que, diferentemente dos supramencionados, não figura em lei: a violência vicária. Esta pode ser definida como “espécie autônoma de violência contra a mulher, na qual as agressões são praticadas contra terceiros, mas, desde o início, com a intenção de causar dor e/ou sofrimento à determinada vítima do sexo/gênero feminino” (grifo do autor), de acordo com Heemann (2024).
Deste modo, verifica-se certa objetificação da criança e sua utilização como forma de agressão de um genitor para com o outro, indicando os reflexos de um relacionamento abusivo anteriormente travado entre os pais e a tentativa de manutenção da relação de poder e submissão que se espraia para o campo judicial.
Neste sentido, enfatiza-se que a complexidade dos casos ligados à seara familiarista envolvendo filhos deve ser orientada pelo princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, observando-se que a sua fruição está intimamente relacionada à responsabilidade desempenhada pelos pais e o Estado, em especial.
O princípio em tela implica na adoção de outros recursos paralelos ao instrumental jurídico, como os provenientes da Psicologia, Serviço Social e Pedagogia, que auxiliem na sua consecução (Ramos, P., 2016), e reforça a necessidade de cooperação entre os genitores, no que Patrícia Ramos (2016, p. 82) destaca:
A estruturação democrática que deve permear a sociedade familiar está demonstrada pelo art. 226, § 5º, da Carta Magna, que dispõe que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher, pelos arts. 16, 28, § 1º, 111, V, 161, § 2º, e 168 do Estatuto da Criança e do Adolescente, que asseguram o direito à opinião e expressão dos filhos, bem como a determinação expressa de que a autoridade parental é exercida em igualdade de condições pelos pais, princípio também consagrado no Código Civil.
Com isto, busca-se resguardar o direito à convivência familiar (art. 19 do ECA), à inviolabilidade psíquica e moral (art. 17 do ECA) e à dignidade (art. 18 do ECA), considerando que as violências cometidas entre os pais, e especialmente as incidentes sobre as mães, provocam danos transgeracionais sobre a personalidade dos filhos e sua perpetuação em virtude da naturalização de papéis de gênero pelos mesmos (Paixão et al, 2015).
Frente a isto, necessário dizer que o Direito não é blindado contra o machismo, porém, em contrapartida, isto coloca em xeque a imparcialidade do julgador e, consequentemente, o deslinde processual, pois tanto a convicção do magistrado como o processo judicial se imiscuem com os atravessamentos daquele e enfraquecem a propalada imparcialidade almejada pelas partes[4].
Importa mencionar que, com esta exposição, não se busca minimizar o instituto da guarda compartilhada ou atribuir de forma generalizada uma conduta violenta praticada pelos pais, mas, sim, de visibilizar a ocorrência do fenômeno retratado como consequência da falta de uma perspectiva crítica sobre as estruturas sociais, como o próprio machismo e o racismo. Com isto, tanto a percepção de confiabilidade no Judiciário resta prejudicada quanto o reforço de estereótipos e práticas vigoram em detrimento da igualdade de gênero.
Tendo em vista que as mulheres seguem, na atualidade, como as principais cuidadoras dos filhos, questiona-se: a violência praticada contra a mulher não atinge a integridade dos filhos? E ainda: a quem o Judiciário protege quando deixa de coibir as violências praticadas pelos pais?
Notas e referências
GAMBA, Karla. CNJ: ano de 2024 já tem mais denúncias de violência contra mulheres no Judiciário que 2023. Pública. 29 abr. 2024. Disponível em: https://apublica.org/nota/cnj-ano-de-2024-ja-tem-mais-denuncias-de-violencia-contra-mulheres-no-judiciario-que-2023/. Acesso em: 29 jul. 2024.
JUÍZA condena homem por violência processual contra ex-esposa de amigo. Migalhas. 06 jun. 2024. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/408809/juiza-condena-homem-por-violencia-processual-contra-ex-esposa-de-amigo Acesso em: 19 ago. 2024.
PAIXÃO, Gilvânia et al. Mulheres vivenciando a intergeracionalidade da violência conjugal. Revista Latino Americana de Enfermagem. Ribeirão Preto, v. 23, n. 5, p. 874-9, set.-out., 2015. Disponível em: https://www.scielo.br/j/rlae/a/d375TF8qJCLBKBVZFzjNyWF/?format=pdf&lang=pt. Acesso em: 19 ago. 2024.
RAMOS, Ana Luisa Schimidt. Violência psicológica contra a mulher: o dano psíquico como crime de lesão corporal. Florianópolis: EMais, 2019.
RAMOS, Patricia Pimentel de Oliveira Chambers. Poder familiar e guarda compartilhada: novos paradigmas do direito de família [formato digital]. São Paulo: Saraiva, 2016.
VECCHIOLI, Demétrio. Minha história. UOL. 22 jul. 2024. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/reportagens-especiais/minha-historia-flavia-maria-de-lima-do-atletismo/. Acesso em: 19 ago. 2024.
WASHINGTON STATE LEGISLATURA, 2021. Disponível em: https://app.leg.wa.gov/RCW/default.aspx?cite=26.51.010. Acesso em: 29 nov. 2023.
[1] A título de exemplo, ver https://www.migalhas.com.br/quentes/408809/juiza-condena-homem-por-violencia-processual-contra-ex-esposa-de-amigo
[2] Expressão adotada por Maria Berenice Dias com o intuito de evidenciar a pluralidade dos núcleos familiares.
[3] Importa mencionar que toda a problemática aqui apresentada encontra eco nos casos de alegação de alienação parental. Sobre o assunto, consultar a série de reportagens intitulada “Em nome dos pais” produzida pelo portal Intercept Brasil, em 2023.
[4] A despeito da obrigatoriedade do Protocolo do CNJ (Resolução 492/2023), a questão de gênero ainda não é vista com seriedade por grande parcela dos juízes, como pode ser percebido em reportagem do portal Pública: https://apublica.org/nota/cnj-ano-de-2024-ja-tem-mais-denuncias-de-violencia-contra-mulheres-no-judiciario-que-2023/
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