Coluna O Direito e a Sociedade de Consumo / Coordenador Marcos Catalan
O Capote, de Nikolai Gógol versa sobre a história de Akaki, um funcionário público, o qual trabalhava em uma repartição, fazendo cópias. Akaki era um sujeito muito simples e levava uma vida pacata. Não tinha ambições, tampouco se importava com o que não estivesse relacionado ao trabalho. Sua alegria era fazer cópias e um capote velho, o qual usava todas as manhãs.
Com o frio de Petersburgo, cidade em que morava, Akaki viu-se obrigado a reformar o seu capote; pois, demasiadamente velho, não o protegia, suficientemente, do frio que fazia naquela época. Procurou, então, um alfaiate conhecido, o qual informou a Akaki que o remendo do capote já não seria possível; ele havia de mandar fazer um capote novo. Com a triste notícia em se desfazer de seu velho companheiro e, principalmente, por ter que despender suas economias em um capote novo, Akaki, relutantemente, decidiu por assentir com o serviço do alfaiate. Embora o preço, proposto pelo costureiro, fosse demasiadamente alto e injusto, Akaki não teve margem para negociações; a partir daquele instante, passou a ter uma vida mais regrada; limitou-se a comer menos, economizar com lazer, privar-se das leituras noturnas – para que as velas fossem apagadas mais cedo – , de forma que conseguisse economizar o suficiente para efetuar o pagamento do capote.
Após meses de privações, o capote de Akaki, finalmente, restou finalizado. Com o primeiro uso, Akaki já pode perceber a diferença. Além de quentinho, o comportamento de seus colegas de trabalho mudou abruptamente. Akaki passou a ser notado, querido, incluído no grupo social; ganhou, inclusive, uma festa de seu chefe para celebrar o seu capote novo. Infelizmente, ao voltar para casa, naquela mesma noite, Akaki teve seu capote roubado. As autoridades da cidade, sequer, ouviram sua queixa sobre o roubo; Akaki voltou a ser invisível, diante daqueles que lhe rodeavam. A tristeza que abateu Akaki foi tanta, que o pobre não resistiu e morreu, sem ao menos recuperar o seu querido capote de volta.
A partir da triste história de Akaki, pode-se perceber o tipo de sociedade ilustrada na época: consumista, em que a necessidade de pertencimento se torna visível, como bem elucida Gastal e Pilati[1] “[...] ela se refere não só a necessidade de estar inserido em um grupo, mas à qualidade dos laços estabelecidos com outros indivíduos e o sentimento de aceitação presente.” Com efeito, percebe-se que, a partir da compra do novo capote, Akaki se tornou parte do grupo, corroborando com o pensamento de que tu és o que tu possuis;
Ademais, ao longo da história, observa-se uma relação contratual totalmente injusta, instaurada entre o alfaiate e Akaki, por meio de mero assentimento. Como elucida Rizzardo[2] “O silêncio, em inúmeros casos, se erige em um ato de vontade positivo, isto é, se traduz em um assentimento”. No entanto, sabe-se que para a formação de um negócio jurídico, é necessária a exteriorização da vontade, de forma bilateral, por meio do consentimento expresso e declarado[3]. Além disso, sem margens para negociação, o preço do serviço foi, unilateralmente, proposto pelo costureiro. Um valor que proporciona o desequilíbrio econômico do contrato e vai de encontro aos princípios constitucionais de igualdade, elencados pela Constituição Federal[4], bem como nas previsões feitas pelo Código de Defesa do Consumidor[5], em seu Art. 4º, III. Aliás, assevera, Venosa[6], que é nula a compra e venda quando a fixação de preço é feita, arbitrariamente, por uma das partes.
Não obstante, em tal relação contratual, resta clara, a não observância ao princípio da boa-fé objetiva, que permeia as relações contratuais, buscando a eticidade, lealdade e o comportamento probo das partes[7]. Com efeito, para Tartuce[8], o Código Civil em consonância ao CDC, objetivam atender as necessidades dos consumidores, respeitando e priorizando a sua dignidade, saúde, segurança, bem como os seus interesses econômicos[9]. Percebe-se, entretanto, a falta de consideração do alfaiate aos interesses de Akaki. Notadamente, no que tange à relação negocial imposta pela parte, Akaki se colocou numa situação econômico-financeira instável e inadequada.
Além dos princípios básicos de uma relação contratual que, visivelmente, foram ludibriados, ao longo da história, quais sejam, o equilíbrio econômico do contrato, o consentimento como declaração de vontade, o acordo e ajuste no preço, bem como a boa-fé objetiva; volta-se a atenção do leitor às imposições feitas pela sociedade, tais e quais, são observadas ainda hoje. Infelizmente, a necessidade de pertencimento[10] é muito presente na sociedade atual. Impõe-se ao outro, que o ter é mais importante que o ser; somente com o poder de compra, será aceito e incluído nessa sociedade de desiguais.
Notas e Referências
[1] GASTAL, Camila Azevedo; PILATI, Ronaldo. Escala de Necessidade de Pertencimento: Adaptação e Evidências de Validade. Psico-USF, Itatiba, v. 21, n. 2, p. 286. Ago, 2016.
[2] RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. – 18. Ed, p. 37. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[3] _______. Contratos. – 18. Ed – Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[4] BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal: Centro Gráfico, 1988.
[5] BRASIL. Lei nº. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.
[6] VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: contratos. – 19. ed. – São Paulo: Atlas, 2019.
[7] TARTUCE, Flávio. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie – v. 3. – 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[8] _______. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie – v.3. – 14. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[9] _______. Direito Civil: teoria geral dos contratos e contratos em espécie – v.3. – 14. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019.
[10] GASTAL, Camila Azevedo; PILATI, Ronaldo. Escala de Necessidade de Pertencimento: Adaptação e Evidências de Validade. Psico-USF, Itatiba, v. 21, n. 2, p. 285-292. Ago, 2016.
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